O Clã do Legítimo Dragão

No hotel, desta vez a opção foi pelo Lexotan. Mesmo assim, a noite foi agitada e cheia de sonhos. No dia seguinte, quando cheguei à portaria para fazer o check-out, Fuk Yu Two já me esperava. Mostrou-me um jornal do dia. Tinha a foto de Da Gong-ji. Perguntei:

— O que diz aí?

— Que Da Gong-ji, ilustre engenheiro e dirigente do Partido, morreu quando fazia serão no escritório dele. Estava sozinho e teve um infarto fulminante.

— Mas, e a luta? E os corpos todos?

— Cada organização recolheu os seus, e a limpeza pública apagou os vestígios. Nesse tipo de luta corre pouco sangue, mas mesmo esse pouco seria ruim para a imagem da cidade.

— Então não vou precisar dar depoimento à Polícia?

— Se formos embora logo, eles não se sentirão obrigados a virem fazer perguntas.

Durante a viagem de táxi, Fuk Yu Two conversou sobre amenidades e não tocou no assunto. Quando chegamos no aeroporto, ele me entregou uma passagem para Xangai, o que me surpreendeu.

— Da Gong-ji disse que lá é a capital dos Csífodas na China. Vamos colocar a cabeça na boca do leão?

— Eu diria na boca do lobo. Mas esse é adestrado e sabe que tem que se comportar em público. Lembre-se: os Csífodas não sujam a água que bebem. Vamos ficar na região central de Xangai, um dos lugares mais iluminados e cheios de gente do mundo. No mínimo, é mais seguro do que voltar para Pequim ou ficar aqui. Mas vamos evitar mais conversas sobre o assunto, principalmente no avião. Depois que deixá-lo no hotel de lá, vou atrás de instruções.

Fiquei em um dos hotéis mais tradicionais de Xangai, na Praça do Povo, que é enorme e bem central, sede do Parque do Povo. Combinamos de nos encontrar de novo no fim da tarde; aproveitei o tempo indo a mais um museu, na vizinhança. No fim da tarde, Fuk Yu Two veio me buscar. Seguimos pelo calçadão da Rua Nanjing, cheio de gente e de letreiros luminosos à Las Vegas. Caminhamos até o Bund, bairro à margem do rio Huangpu, que formava a antiga Concessão Anglo-americana. O nome dessa área nada tem a ver com Portugal ou a África, como se poderia imaginar; é uma palavra indiana que significa margem do rio, e foi dado pelos colonizadores ingleses. Claro, no tempo das concessões, quando no Parque do Povo ficava o Jockey Club, e havia uma placa dizendo: Proibida a entrada de cachorros e chineses.

A Rua Nanjing chega ao Bund no Peace Hotel, como foi narrado anteriormente; a partir deste, por vários quarteirões ao longo do rio, sucedem-se os prédios Art Déco ricamente iluminados, ressuscitando o esplendor da Cidade do Pecado.  Do outro lado da rua, na margem do rio, um calçadão elevado, cheio de gente, bares e cais onde atracam os barcos que fazem passeios pelo rio. Do outro lado do rio, outro calçadão, e, além dele, Pudong, o centro financeiro e empresarial de Xangai. Erguem-se aí a Torre Jin Mao, um dos prédios mais altos do mundo, e a Torre da Pérola Oriental, que parece saída diretamente de um desenho dos Jetsons.

Fuk Yu Two foi respondendo a minhas perplexidades, primeiro durante o caminho, e depois em um bar no calçadão do Bund. A participação dele nessa história começou com um contato entre Da Gong-ji e o Dr. Fuk Yu-meng. Desde a época em que Fuk Yu Two e seu ilustre tio tinham conseguido para mim o endereço da Sede em Londres, Gong-ji tinha feito contato com eles, renovando seculares alianças e trocando informação. Quando teve a idéia de me convidar para uma visita à China, Gong-ji se sentiu obrigado a discutir com meu velho orientador os aspectos de segurança. Esclareceu que seríamos protegidos o tempo todo pela Guarda dos Falcões local. Fuk Yu-meng, entretanto, fez questão de que o sobrinho também fizesse parte do esquema de segurança. Ficou combinado, então, que Fuk Yu Two se concentraria em minha proteção, ficando os Falcões por conta de Gong-ji.

Perguntei então:

— Quando eu o conheci, você era dono de um restaurante na Gerrard Street, o coração da Chinatown londrina. Segundo me disse seu tio, você resolveu seguir o caminho do que ele chamou de Extremo Capitalismo, e que convencionalmente se chamaria de Crime Organizado. O que tem isso a ver com suas espantosas habilidades nas artes marciais?

— Veja bem, professor. Como meu ilustre tio lhe disse, sou diretor de uma Sociedade Beneficente da colônia chinesa, para a qual o restaurante serve como uma espécie de sede. De fato, minha Sociedade Beneficente é, como tantas, fachada para uma organização secreta, ou tong. Tongs foram criadas originalmente para lutar contra o racismo anti-chinês e dar auxílio mútuo aos compatriotas, mais ou menos nos moldes da Maçonaria. É verdade também que muitas se tornaram tríades, ou seja, organizações criminosas, atuando principalmente nos ramos da prostituição, tráfico de drogas, tráfico de gente e extorsão. O Mal dentro do Bem, para os ocidentais, o Yin dentro do Yang, para nós. E minha tong não é exceção; somos uma espécie de corretores do submundo: intermediamos negócios entre outros grupos. Por isso você me viu em uma reunião com um chefe da Cosa Nostra, um traficante colombiano e um perigosíssimo agente da Máfia russa.

Já que ele era tão franco, eu também fui:

— Entendo que na Inglaterra não seja tão problemático manter uma fachada respeitável, mas você se sente seguro aqui na China? Pelo que ouvi dizer, gângsteres aqui são fuzilados primeiro e interrogados depois.

— Aqui nós somos uma associação política, organizada legalmente, conforme as regras do regime. Ao contrário do que se imagina, a China tem muitos partidos políticos, embora o PCC tenha o monopólio do poder formal. Formal, note bem, e aqui as formalidades contam muito menos do que no Ocidente; os dirigentes só se tornam realmente poderosos quando se aposentam, e passam a não ter cargo algum. Deng Xiaoping nos comandou com mão de ferro, sendo apenas dirigente da Associação Chinesa de Bridge...

Mas Fuk Yu Two fez a expressão de quem tinha chegado à parte realmente importante da conversa:

— Essa conexão política é detalhe. O que importa é que, assim como a tong serve de fachada para a tríade, a tríade serve de fachada para outra tong muito, muito mais poderosa, Yang dentro do Yin. Diria um ocidental que usamos uma organização do Bem como fachada para uma organização do Mal, que por sua vez é fachada para outra organização do Bem, muito mais secreta e forte. E nossas atividades no campo do Mal são muito úteis para obter informação que usamos no campo do Bem. Esse tipo de informação, por exemplo, tem-me ajudado em minha missão de proteger você na China.

— Era você o jardineiro na praça de Xian?

— Sim, e também na Cidade Proibida. O disfarce como jardineiro é tradicional nas artes marciais chinesas. Muitas armas úteis podem ser camufladas como ferramentas de jardinagem.

Muito estranho, pensei, e perguntei:

­— Mas então, quem são vocês, afinal?

— Somos conhecidos pelo nome de Clã do Legítimo Dragão. Surgimos durante a dinastia Yuan, no reinado de Cublai Cã. Pode parecer que a Encarnação da Fênix nessa época tenha terminado em fracasso, sendo a Nobre Ave devorada pelo Imperador na forma de um Pato a Pequim. Mas sempre que a Fênix se encarna, muitos prodígios acontecem. Gong-ji lhe contou como os Guerreiros do Dragão foram criados para serem o braço armado dos Inimigos. Dentre eles, entretanto, nem todos passaram de forma total e absoluta para o Lado Escuro da Força. O resto de Bem que existe dentro do Mal pode ser resgatado, em circunstâncias muito especiais. E os mais poderosos sacerdotes da Grande Fênix tiveram, na época, força suficiente para resgatar nossos ancestrais do Seio do Dragão. Esses foram os primeiros Dragões Brancos.

Fuk Yu Two continuou narrando como os guerreiros do Clã do Legítimo Dragão têm participado da história chinesa, de forma oculta porém ativa e decisiva, desde a época da dominação mongol. Sobreviveram às dinastias Ming e Qing, às agressões imperialistas do Século XIX, à República, aos Senhores da Guerra, ao Kuomintang, à invasão japonesa, e às várias convulsões da era comunista. Continuam sendo uma tong poderosa, tanto na China Popular, como em Taiwan, Hong-Kong, Macau, Singapura e na diáspora chinesa. Exímios em todas as artes marciais, os guerreiros do Clã do Legítimo Dragão dominam tanto as técnicas de combate sem armas, quanto as armas brancas, como a espada e a adaga, quanto armas chinesas tradicionais, como aquelas que eu vi em ação: a Corda com Dardo e o Martelo Meteoro, os Chifres de Veado e as ferramentas de jardinagem. Não desprezam nem mesmo os dardos envenenados, que outros grupos reservam às mulheres, nem as estrelas ninja, apesar da origem japonesa.

Para combatê-los, os Guerreiros do Dragão formaram um núcleo de elite, chamado de Clã do Tradicional Dragão, simbolizado pelo Dragão Vermelho. Os clãs inimigos têm lutado ferozmente entre si, há mais de sete séculos. Perguntei então:

— Foram esses então os nossos atacantes?

— Sim. Infelizmente, os Falcões confiam demais em armas de fogo, à maneira ocidental. Por isso, agora estão mortos Da Gong-ji, e seus quatro guarda-costas, e vários outros que formavam as linhas anteriores de defesa, e que certamente já estavam mortos quando os Dragões Vermelhos desceram da muralha. Talvez dezenas. Infelizmente, não pude intervir nos primeiros segundos, pois minha obrigação era defender a você, e se você conseguisse fugir, eu teria de ir atrás. Só quando você ficou ameaçado eu pude entrar em ação.

E suspirou:

— Nós usamos armas de fogo eventualmente, mas conhecemos as limitações delas. De que adiantam contra quem consegue se desviar de balas?

— Mas como é possível se desviar de balas? Transcorrem apenas milissegundos desde que uma bala sai do cano, até chegar ao alvo.

— É pouco tempo. Mas, se você começar a projetar no tempo os movimentos dos inimigos, saberá quando ele atirará e em que direção, muitos segundos antes. E pode se movimentar de uma maneira que ele não consiga projetar.

Diante de minha incredulidade, acrescentou:

— Não é tão difícil quanto parece. Não é fácil acertar alvos móveis e, se você se movimenta na direção que é certa para você e errada para o inimigo, ele não acertará. É apenas o seu cálculo contra o dele. A diferença é que nós aprendemos a fazer esses cálculos e aplicar os resultados aos músculos de maneira subconsciente. O consciente é lento demais e atrapalha. Todo esportista profissional sabe disso.

— E vocês têm formação em cálculo e física?

— Sim. Não para aplicá-los diretamente, mas para acreditar que todos os movimentos que aprendemos são possíveis. Por isso é que conseguimos executar movimentos que parecem impossíveis, e que os atores de cinema só conseguem reproduzir suspensos por fios de aço. Voamos porque sabemos usar todas as possibilidades de movimento, inclusive o momento angular.

— Sei... seria mais ou menos como o chute com efeito do futebol, que faz uma curva porque a bola não é um ponto e sim um objeto em rotação?

— Exatamente. Mesmo o ângulo da última falange do dedo mindinho é importante para determinar a atitude correta. E, naturalmente, não desperdiçar o menor movimento: cada um é ataque e defesa, e a volta do movimento é também ataque e defesa. Dizem que era esse o diferencial do grande Musashi. Aprendeu com nossos agentes no Japão.

— E onde você aprendeu tudo isso?

— Meu ilustre tio aprendeu a apreciar a arte chinesa da guerra durante os anos em que foi companheiro de armas do Presidente Mao. Por isso, fez questão de que eu chegasse aos mais altos níveis do Clã, e providenciou para mim os melhores mestres de artes marciais. Como acha que eu consigo lidar com gente tão perigosa quanto Don Tommaso Menefrego, Cornelio Escobar e Mafyey Mafyeyev? Meu tio também fez com que eu freqüentasse o curso de Física em Oxford. Mas o mais importante dos treinamentos, ele me deu pessoalmente: o treinamento filosófico e espiritual.

Achei isso surpreendente:

— Espiritual? Mas o doutor Fuk não é marxista e ateu?

— Sempre foi, e continua sendo. Mas os verdadeiros budistas também são ateus... Associar espiritualidade com esse conceito chamado de Deus é um vício ocidental.

 

     

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