Incidente em Xian

No dia seguinte, Da Gong-ji tinha que resolver assuntos lá dele, e aproveitei para visitar o excelente Museu Histórico da Província de Shaanxi. Voltamos a nos encontrar durante o almoço, quando fiz um relato da cilada na Amazônia. Gong-ji perguntou sobre muitos detalhes, mesmo já tendo conversado bastante com Avelino Falcão, por telefone e pela Internet. Julgava importante ouvir em primeira mão o depoimento de uma testemunha ocular, para formar o juízo que embasaria suas decisões como líder provisório da Grande Fênix. No final do almoço, perguntei se já dera para concluir algo. Disse que iria passar a tarde refletindo sobre o assunto. Recomendou que eu fosse passear na muralha da cidade e depois, no começo da noite, assistisse ao show folclórico da Dinastia Tang. Comentou que embora fosse, assumidamente, um espetáculo no estilo de Las Vegas, o show era bonito e valia como diversão. Depois do show, iria me procurar, para dizer a que conclusões tinha chegado.

As muralhas de Xian foram completamente restauradas e contornam novamente todo o quadrado que forma o centro histórico, como faziam nos tempos antigos. Uma maneira popular de percorrer seus quatorze quilômetros é alugar bicicletas, mas nunca consegui acreditar que seja possível alguém se equilibrar sobre duas rodas. Assim, caminhei por alguns pedaços, e percorri outros de trenzinho turístico. Desci em um ponto onde havia uma praça com uma feirinha de artesanato. Tive a sensação engraçada de que já conhecia um jardineiro que cuidava das flores da praça, como na Cidade Proibida; mas o jardineiro nem olhou para o meu lado. Depois, fui ao show, que era como Gong-ji tinha prometido.

Ele estava esperando por mim na saída do teatro. Este fica fora das muralhas, mas não muito longe, e fomos caminhando até um dos portões da cidadela. Perguntei se chegara a alguma conclusão quanto à culpa dos Csífodas no atentado.

— Como alega o Grande Empresário de São Paulo, a participação dele, à primeira vista, realmente não faz sentido. Os Csífodas são abomináveis sob muitos aspectos, mas não costumam sujar a água que bebem. Têm a mesma lógica de contrabandistas e traficantes: pelo menos nos assuntos de negócio, precisam manter a credibilidade. Mas esse empresário brasileiro não está no topo da hierarquia mundial, e os que estão acima dele podem ter planos que ele desconhece. Rodas dentro de rodas, planos dentro de planos, Efeito Palimpsesto.

Perguntei:

— Mas o que ganhariam com a cilada? Certamente o Grande Empresário estava autorizado a negociar a venda do DNA de Geralda. Por que não levar o negócio adiante?

— Ainda não sei. Mas o negócio não foi cancelado. A proposta deles continua de pé, e eu tenho que tomar uma decisão: aceitamos comprar dos imundos Csífodas o DNA de nossa entidade mais sagrada? Mas eu defendi no Grande Conselho o uso racional da tecnologia para avançar nossa Causa, e a racionalidade me diz que aceitar o negócio é menos ruim do que deixar com os Cães o monopólio do sangue da Nobre Ave.

Gong-ji suspirou, fez uma expressão de desalento, e continuou:

— Mas se eles propuseram o negócio, é porque para eles é melhor ainda. Então, se foram eles que armaram a cilada, só resta uma explicação: a venda do DNA interessa, mas não queriam vender para Donald Cockburn. Por alguma razão, eles precisam de outra pessoa à frente de nossa Ordem, para chegarem onde querem chegar. E eu tenho que descobrir o que é que eles querem que eu faça, para não o fazer.

Tínhamos entrado no quadrado histórico, na rua que acompanha a muralha. À noite, não era possível subir nelas, mas formavam também um cenário bonito quando vistas de baixo. Paramos algum tempo para uns lambiscos em uma barraquinha de rua, e para tomar uma Qingdao bem gelada. Perguntei a Gong-ji:

— E quanto à possibilidade de que a cilada tenha sido armada pelos Outros?

— Algum envolvimento eles sempre têm. No mínimo, eles têm algo a ver com a gangue de piratas contratada para a cilada. Qualquer grupo um pouco mais importante do Crime Organizado paga algum tributo a eles. Mas falta um objetivo que justifique um envolvimento mais proposital.

— Jogar vocês numa guerra contra os Csífodas?

— Talvez, mas já odiamos suficientemente a Confraria, e vice-versa. Se algum dia pudéssemos destruí-los, nós o faríamos, e a recíproca é verdadeira. Antes de qualquer retaliação contra quem quer que seja, certamente faremos uma investigação muito cuidadosa. Nosso encontro aqui é apenas uma pequena parte disso.

Tínhamos voltado a caminhar, e chegamos a um trecho da rua bastante deserto. Um brasileiro se sente naturalmente desconfortável passando por um lugar desses, mas Gong-ji parecia tranqüilo. Assaltos à mão armada, segundo dizem, são muito raros nas cidades chinesas, mesmo em lugares como Xian, onde o movimento turístico atrai um número de batedores de carteira maior do que o normal.

Gong-ji percebeu minha inquietação, e disse:

— Meu caro professor, eu não estaria tão tranqüilo em Pequim. Embora lá seja até muito mais policiada, os Adversários têm agentes em toda parte, inclusive na polícia, no governo, e em cada hutong. Não quer dizer que não possam atacar aqui também, pois, como você ouviu, a história de Xian também é cheia de ciladas e traições. Chiang Kai-shek que o diga. Mas, embora você não os veja, os nossos Falcões estão vigilantes para nos defender, caso surja algum problema. Se eu não tomasse precauções, estaria sendo culpado de exibicionismo e ostentação. Ou, como dizemos nós, seria um exemplo de long fei feng wu – dragão voa, fênix dança. Gong-ji aproveitou a luz de um poste para escrever num papel os respectivos caracteres.

Mal me entregou o papel, pareceu ter percebido alguma coisa, e olhou em volta. Também levantei a cabeça, e vi que, ao longo de todo o quarteirão, muitos sujeitos desciam silenciosamente a muralha, usando cordas. Vestiam uma espécie de pijama escuro, com um dragão vermelho nas costas. As cabeças estavam cobertas por um pano enrolado, que só deixava os olhos à mostra. Gong-ji gritou:

— Corra!

Foi o que tentei fazer, mas os tipos já bloqueavam as duas esquinas. Achei um nicho em uma das casas, do lado oposto à muralha, e me encolhi dentro dele. A esta altura, tinham aparecido mais quatro sujeitos, saltando do telhado das casas. Usavam roupas semelhantes, mas nas costas havia falcões dourados. Postaram-se em volta de Gong-ji, com armas na mão, e começaram a atirar nos do primeiro grupo.

A cena seguinte durou poucos segundos. Os tipos pisavam no chão, na ponta dos pés, e já davam saltos enormes, fugindo dos tiros; pareciam voar e se desviar das balas, exatamente como a lenda dizia que os Boxers faziam! E, enquanto saltavam, tiravam punhais das mangas, e os atiravam nos Falcões. Apenas duas balas dos Falcões atingiram os alvos, mas todas as adagas chegaram aos pescoços e corações deles. Quando eles caíram, Da Gong-ji tinha também uma arma na mão e atirou, mas sem acertar ninguém, e imediatamente caiu com uma adaga no pescoço e outra no peito.

A cena se congelou por instantes, enquanto os atacantes olhavam na minha direção, talvez decidindo o que fazer. E, logo em seguida, mais outra figura saltou de um telhado. Usava também pijama escuro, mas com um dragão branco. Não caiu no chão diretamente; primeiro, as pontas de seus pés quebraram os pescoços de dois dos atacantes.

Novamente, houve poucos segundos de luta. Mal tocou o chão, o Dragão Branco já saltava, atingindo com os pés mais dois pescoços. Nas mãos surgiram-lhe armas do tipo Adaga Chifre-de-veado, formadas por duas meias-luas soldadas, uma das quais pode ser segura, enquanto a outra têm lâmina cortante. Cortou com elas as gargantas dos dois atacantes mais próximos, e em seguida atirou-as contra dois outros, cortando mais duas. Pisou no chão e saltou novamente, sempre desviando-se das adagas que eram jogadas contra ele.

Enquanto os pés despachavam mais dois, surgiu-lhe na mão esquerda uma corda com um grande cravo na ponta. A corda se esticou até que o cravo atravessasse um pescoço. Na outra mão, uma corda ainda mais longa, com um peso na ponta: o Martelo-meteoro. Enrolou a corda em torno das pernas de outro, derrubando-o, pisou no pescoço deste, quebrando-o, e já tomou impulso para outro salto. Ao mesmo tempo, desenrolou o Martelo-meteoro, atingiu com o peso a cabeça de mais um, e a outra mão já empunhava uma ferramenta de jardinagem. A mesma que estava na mão do jardineiro na praça. A ferramenta foi cravada no peito de um, imediatamente retirada, e cravada em outro.

Mas três atacantes estavam por trás do recém-chegado, e disparam adagas contra as costas dele. O Dragão Branco se desviou das adagas, sem precisar olhar para elas. Então aconteceu algo ainda mais espantoso: soltou uma bola de fogo, que engolfou o atacante que estava diretamente atrás. Ajeitou ligeiramente o traseiro, primeiro para a direita, depois para a esquerda, e mais duas bolas de fogo calcinaram os outros dois. Não houve tempo para gritos: a combustão foi breve e extremamente violenta, deixando apenas três corpos carbonizados.

Restava um único Dragão Vermelho, que parecia ser o líder do grupo. Ele e o Dragão Branco se encararam fixamente, por mais alguns segundos. Os olhos de um e de outro se moveram em todas as direções. Finalmente, o Dragão Vermelho apertou os olhos, como se sentisse dor profunda, e caiu fulminado. Morto.

O Dragão Branco já me segurava pela manga, e disse, em ótimo inglês:

—Para o hotel, já. Amanhã de manhã vamos embora daqui.

Como se respondesse à pergunta que não cheguei a formular, tirou os panos da cabeça e me mostrou o rosto. Era Fuk Yu Two, o sobrinho predileto de meu mestre Fuk Yu-meng.

 

     

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