O Grande Dragão

O sítio arqueológico dos Guerreiros de Terracota fica a algumas dezenas de quilômetros de distância da cidade atual, e Da Gong-ji aproveitou a viagem para me passar alguns dados preliminares. Começou falando sobre como a tradição chinesa reverencia as sociedades secretas. Várias delas tiveram papel importante na história da China, muitas vezes sendo assunto de romances e filmes. Das que sobrevivem até hoje, muitas residem nas franjas da legalidade, confundindo-se às vezes com grupos do Crime Organizado.

Sobre a Sociedade do Grande Dragão, disse que ela é a terceira grande Sociedade Secreta, talvez ainda mais poderosa do que a Ordem da Grande Fênix e a Confraria de Csífodas. Mas dela, pouquíssimo se sabe, inclusive o nome verdadeiro, de tão secreta que é. Os chineses costumam chamá-la de Sociedade do Grande Dragão, lembrando a oposição dialética entre Fênix, feng, e Dragão, long, os dois grandes animais míticos do Império do Meio, associados, respectivamente, ao Yin e ao Yang. Para os irmãos ocidentais, outras associações são comuns: aves versus serpentes, anjos versus demônios, Eros versus Tânatos, o Foder versus o Poder.

Os mais temerosos os chamam de Adversários. Esse, é bom lembrar, é o significado original da palavra Satã. Há os que os chamam de Outros, lembrando a advertência de Sartre: O Inferno são os Outros. Acrescentou Da Gong-ji:

— Ao mesmo tempo, necessitamos dos Outros para sermos nós mesmos, um pouco à maneira de Sartre. Pois não há Yin sem Yang. Então, essa comparação com anjos e demônios é uma descrição aproximada, mas só uma aproximação bem grosseira. Bem, não tente entender: é mais complicado do que Sartre. E não é preciso entender.

Continuando, disse que o Grande Dragão parece ser a única Sociedade temida pela Confraria de Csífodas. Na maioria das vezes, as duas parecem atuar de forma concorde, mas, ocasionalmente, a Sociedade dispensa os serviços da Confraria, e pode mesmo atacá-la; foi o que aconteceu quando os Nazistas, tidos como controlados pelo Grande Dragão, se voltaram contra os Capitalistas. Suspeita-se que a Sociedade esteja por trás de outros dos piores momentos da Humanidade, como a Inquisição, a Ku-klux-klan (seus líderes não se chamam Grandes Dragões?), o Stalinismo, o Fascismo, o Apartheid, as ditaduras militares, como as latino-americanas, a Gangue dos Quatro, o Khmer Vermelho, o terrorismo, o crime organizado... Mesmo imbecis como George W. Bush têm seu lugar na estratégia dos Outros.

Até onde se pode deduzir, a filosofia do Grande Dragão parece ser uma espécie de social-darwinismo, ou seja, a crença (sem sustentação científica) de que a teoria da sobrevivência dos mais aptos pode ser aplicada a sociedades humanas. A guerra é vista como o supremo instrumento de seleção dos mais fortes, e por isso é favorecida por eles, assim como todas as espécies de fanatismo.

Assim sendo, é muito comum que a Sociedade do Grande Dragão apóie vários lados em luta, pois não importa tanto o vencedor, e sim a guerra em si; eles jamais apostam apenas em um cavalo. Na Segunda Guerra Mundial, a aposta principal foi nos nazistas e seus aliados do Eixo, mas, ao mesmo tempo, sustentavam o stalinismo e as ditaduras fascistas que também havia do lado aliado (como a de Getúlio Vargas). Hoje, apostam no governo Bush, mas também em Osama bin Laden, nos extremistas judeus, cristãos, sunitas e xiitas, nos seguidores de Saddam e dos aiatolás, e em quem mais for útil. E por aí vão: na ex-Iugoslávia, apoiavam todas as facções em conflito; na Índia, atiçam hindus, muçulmanos e sikhs, todos contra todos...

A União Soviética foi fundada com base nos ideais socialistas, que representam exatamente o oposto dessa filosofia. Mas o Grande Dragão, muito influente na época dos czares, tratou de recuperar a influência através do dogmatismo político, que pouco difere do religioso. E logo conseguiu novamente uma posição de eminência na era de Stalin. Que, provavelmente, tinha sido recrutado pela Sociedade ainda nos seus tempos de seminarista. Os paralelos com a China, Gong-ji me apresentaria depois.

De resto, tudo na Sociedade é misterioso. Aparentemente, eles têm um culto próprio, que é vagamente descrito como de orientação satânica, mas isso é apenas uma interpretação ocidental, talvez influenciada pela visão cristã. Com o objetivo de fomentar o fanatismo e a intolerância, infiltram-se em qualquer religião que seja conveniente. Por exemplo, a Inquisição teria resultado da infiltração deles na Igreja Católica, assim como teriam semeado dentro do Islã a Seita dos Assassinos e grupos similares, dos quais, para alguns, o grupo Al Qaeda seria uma das encarnações modernas.

Enquanto Gong-ji contava isso, lembrei-me de um livro que li quando menino, escrito por um pastor ou coisa parecida. A maior parte do dito no livro era baboseira, mas me ficou a lembrança de que, segundo o tal pastor, o Mundo Moderno teria abandonado o Deus verdadeiro para idolatrar Príapo, Mamona e Wotan, ou seja, as personificações do Sexo, do Dinheiro e da Força. Coincidência ou não, os primeiros moventes, respectivamente, da Grande Fênix, dos Csífodas e do Grande Dragão.

Para quebrar um pouco o clima que tinha ficado pesado pela simples referência aos Inimigos, Gong-ji me perguntou:

— Por falar em dragões, sua guia da Grande Muralha não lhe falou do Combate do Tigre com o Dragão?

— Sim, disse que era um prato preparado com um gato e uma cobra assados e montados em uma posição de combate.

— O prato original incluía também um frango, e se chamava O Tigre, o Dragão e a Fênix. Foi uma invenção dos Csífodas para se vingarem dos pratos com cachorros. Mas o frango não tinha muita graça, e ficou só a versão com os outros dois bichos, para escandalizar os turistas.

Perguntei qual o papel do Tigre nessa história; correspondia a alguma outra sociedade secreta? Gong-ji me disse que responderia isso depois, pois havíamos chegado ao sítio dos Guerreiros de Terracota. O camponês que o descobrira estava lá, como sempre, disse-me Gong-ji. Cobrava módica taxa para posar para fotos, junto com os turistas. Naturalmente, todo mundo já viu pelo menos fotos das estátuas e leu ou assistiu a algum documentário sobre os 8.099 guerreiros e cavalos em tamanho natural, de modo que vou me concentrar nos aspectos da História Secreta que lhes dizem respeito. Tal como narrada por Da Gong-ji, a história de Shi Huang-di, o Primeiro Imperador. 

Dizem os registros da Ordem que os Adversários dominavam a China desde os primórdios de sua civilização, fazendo com que o país alternasse períodos de longas guerras civis com o domínio de monarcas extremamente autoritários, dos quais o maior de todos foi Shi Huang-di. Como retratou o filme Herói, transformou-se de monarca do reino de Qin em imperador da China unificada, e Gong-ji achava que esse feito só fora possível porque os Outros acharam que tal momento era chegado. De fato, algumas das ações desse monarca são tipicamente influenciadas pelo Grande Dragão, como a construção da versão inicial da Grande Muralha, e a política de queimar os clássicos e enterrar os eruditos, formulada por seu primeiro ministro Li Si, provavelmente um representante direto da Sociedade. Li Si ordenou a queima de todos os livros clássicos das Cem Escolas de Pensamento, com exceção dos de sua própria escola; 460 intelectuais que protestaram, na maioria seguidores de Confúcio, foram enterrados vivos.

O Grande Dragão teria organizado o poderoso exército que foi imortalizado nas estátuas dos Guerreiros de Terracota. A elite dos guerreiros teria sido transformada em uma nova sociedade secreta, os Guerreiros do Dragão, de ação independente, mas subordinada aos interesses de sua sociedade mãe. Os Guerreiros, por sua vez, ao longo da História, tiveram muitas ramificações que mantinham seus ideais de aperfeiçoamento através da luta permanente; por exemplo, o Clã das Adagas Voadoras, durante a dinastia Tang, ou a Sociedade das Pequenas Espadas, já no século XIX.

Quando Li Si ordenou o massacre daquelas centenas de discípulos de Confúcio, os Guerreiros do Dragão foram encarregados de executar o massacre. Tradicionalmente, intelectuais são muito respeitados na China; portanto, quando perseguições aos eruditos acontecem, como no reinado do Primeiro Imperador, ou durante a Revolução Cultural, pode-se apostar que a maligna Sociedade está por trás. No caso do massacre de Li Si, os Guerreiros seguiam os ditames de um intelectual rival de Confúcio, malévolo e misterioso, que talvez tenha sido um dignitário da Sociedade do Grande Dragão. Chamava-se Pa Feng-shi, que significa Guerreiro-Erudito temido pela Fênix. Deve-se a ele a fundamentação filosófica dos terríveis atos dos Guerreiros. Esse personagem permaneceu praticamente desconhecido dos não iniciados, pois pronunciar o nome dele era tido como um ato de péssimo agouro.

Dizia-se que Pa Feng-shi em pessoa havia treinado os Guerreiros do Dragão, apesar de ser contemporâneo de Confúcio, que viveu três séculos antes. Mirando-se nesse exemplo, Shi Huang-di buscou desesperadamente a imortalidade, provavelmente atiçado pelos Outros. Morreu quando procurava as Ilhas dos Imortais, que deteriam o segredo da Vida Eterna, envenenado pelas pílulas de derivados de mercúrio, que os médicos da corte diziam prolongar a vida. Li Si ocultou durante algum tempo a morte do Imperador, cujo cortejo continuou a viagem; entrava todo no dia na carruagem onde estava o corpo do Imperador, fingindo discutir assuntos de Estado. Para disfarçar o mau cheiro, mandou que uma carroça com peixes seguisse à frente da carruagem, e outra atrás dela.

Ao chegar à capital, Li Si forjou um testamento imperial, forçou o filho mais velho do Imperador a se suicidar, e colocou no trono um outro filho, escolhido por ele. Este durou apenas quatro anos: uma nova guerra civil substituiu a dinastia Qin pela dinastia Han, que restaurou os ensinamentos de Confúcio. Isso também teria feito parte da estratégia do Dragão. Cumprida uma fase de seu plano, abandonaram a participação ostensiva no Estado chinês, e voltaram ao seu papel mais tradicional de agir nas sombras.

Após o término da dinastia Qin, histórias estranhas continuaram a circular sobre Pa Feng-shi. Durante o período Ming, no século XVI, o serviço secreto português tomou conhecimento dessas histórias. Sendo seus agentes baseados em Macau, conheceram-no pela versão cantonesa do nome, ou seja, Pa Fung-si, que foi aportuguesada para Pafúncio. A informação foi enviada ao Rei Dom Sebastião, que, pouco depois, morreu muito jovem, na batalha de Alcácer-Quíbir. Concluíram os agentes portugueses que era mesmo um nome de mau agouro, como diziam os chineses, e encerraram a informação em uma caixa com a inscrição “Ultra-secreto: não ler”. Até hoje, ninguém mais abriu essa caixa, e só sabemos da história porque a Grande Fênix, que se infiltra em qualquer serviço secreto, não deixou de fazê-lo no lusitano.

A fama de mau agouro do nome de Pafúncio veio da época de Confúcio. Este grande sábio era um exemplo de equilíbrio e ponderação. Por exemplo, ao exercer as funções de juiz, costumava moer chá por horas, até que este saísse irretocavelmente fino e uniforme do moedor; só então sabia que tinha atingido naquele dia o equilíbrio necessário para pronunciar uma sentença. Esse costume foi preservado pelos juízes chineses, durante séculos, o que, é verdade, atrasava um pouco o andamento da justiça. Uma vez preparado o chá, Confúcio completava o ritual, perfumando-o com uma gota de orvalho colhida de uma pétala de jasmim; daí o costume do chá de jasmim[1].

Pois o grande Confúcio detestava e desprezava profundamente seu rival Pafúncio, e nada o aborrecia mais do que ser confundido com este. Ficava então furioso, e proferia uma ofensa à genitora do infeliz interlocutor, responsável pelo engano. Daí a fama de mau agouro.

Como Gong-ji dissera anteriormente, após a queda da dinastia Han, a China vivera séculos de barbárie e a breve tirania dos Sui, até que a Grande Fênix resolveu entrar no jogo político, e ajudar na ascensão da brilhante dinastia Tang. Invejosos dos sucesso dos rivais, os Adversários não deixaram nunca de trabalhar para minar os Tang. Há relatos de que Pafúncio teria sido visto em conchavos tanto com Wu Zetian quanto com Yang Guifei. Finalmente, conseguiram que a China voltasse à guerra civil, no século X de nossa era. Com participação não desprezível do Clã das Adagas Voadoras, que, como vimos, era uma das ramificações dos Guerreiros do Dragão.

Como foi relatado no manuscrito que o Último Imperador entregou a meu mestre Dr. Fuk Yu-meng, a Ordem da Grande Fênix finalmente apostou nos mongóis, como melhor instrumento para a reunificação da China. Apesar de sua grande ferocidade e crueldade, seguros sinais de influência dos Inimigos, o tempo urgia, pois sabia-se que a próxima Encarnação da Nobre Ave aconteceria no século XIII, na Ásia, e provavelmente na China. Trabalhando com afinco, a Ordem conseguiu, no espaço de apenas duas gerações, que surgisse como líder mongol o grande estadista Cublai Cã, fundador da dinastia Yuan.

Como sabem os leitores do primeiro livro, a tragédia levou a que a Fênix, em lugar de consumida em uma pira sagrada, fosse degustada na forma de Pato à Pequim, até hoje o grande prato nacional do País do Meio. Eu já tinha conhecimento de que o traidor responsável pela entrega da Nobre Ave fosse o corrupto Sen Ku-liang, o Grande Eunuco Imperial, notório Confrade de Csífodas. Mas agora Gong-ji me informava que o cérebro da trama, o perverso primeiro-ministro Ahmed ibn-Saddam al-Ikat, tinha fortes conexões com os Adversários. Com efeito, ele era filiado à Seita dos Assassinos que, segundo me informava meu guia, era outro dos muitos e terríveis tentáculos do Grande Dragão. E surgiu a lenda de que o plano tinha sido passado a Ahmed por ninguém menos do que Pafúncio em pessoa.

A luta entre Fênix e Dragão continuou, séculos afora. Como a Fênix apoiara os Yuan, os Inimigos apoiaram a dinastia Ming, fundada pelo poderoso Hongwu. A Ordem respondeu, três séculos depois, apoiando a tomada do poder pelos Qing, a dinastia manchu, um povo tido pelos chineses como bárbaros do norte, como os mongóis. Mais três séculos e chegamos ao século XIX, quando os Inimigos se teriam juntado aos Csífodas para fomentar as Guerras do Ópio e os ataques das potências imperialistas à China, que acabaram levando ao colapso dos Qing. Colapso que foi finalmente provocado pela tirania de Ci Xi, a Imperatriz Viúva.

Neste ponto, certos boatos diziam que Pafúncio em pessoa aconselhara a Imperatriz a apoiar a Rebelião dos Boxers. Como se sabe, esse movimento foi conduzido pela Sociedade dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros; segundo Gong-ji, mais uma ramificação dos Guerreiros do Dragão. Esse grupo dominava certas técnicas de artes marciais, semelhantes ao kung-fu, que, segundo a lenda, permitiam que fossem capazes de voar e de se desviarem de balas. A rebelião terminou com a intervenção das oito maiores potências da época, a conseqüente pilhagem da China, e, poucos anos depois, a queda do Império.

Seguiram-se ainda muitas décadas de turbulência: a ditadura de Yuan Shi-kai, o período dos Senhores da Guerra, a ditadura de Chiang Kai-shek, a invasão japonesa, a guerra civil. E veio o período comunista, com suas idas e vindas: as Cem Flores, o Grande Salto para a Frente, as grandes fomes causadas pelo fracasso econômico simultâneo com desastres naturais, a Revolução Cultural, a Campanha contra Confúcio e Lin Biao, a Campanha contra a Gangue dos Quatro, os acontecimentos da Praça da Paz Celestial. Dizem até que, em certa época, Pafúncio foi visto dando conselhos a Jiang Qing, a atriz que se tornaria a última esposa de Mao, e líder da Gangue dos Quatro.

Gong-ji concluiu a narrativa dizendo que, desde o final da Revolução Cultural, os Inimigos estão ocultos nas sombras, permitindo que a China finalmente viva algo parecido com a existência de um país normal. Mas estão sempre prontos a intervir quando julgarem necessário, como aconteceu em 1989, na Praça da Paz Celestial. E Pequim continua sendo a cidade deles, onde tanto os Csífodas quanto a Grande Fênix só andam com muito cuidado.


 

[1] Naquele tempo, não existia ainda o Crivo do Zé, e Confúcio não precisava se preocupar se isso era Coisa de Macho.

 

     

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