A Preciosa Concubina

Guifei, cujo nome significa Preciosa Concubina, é considerada uma das Quatro Beldades da China Antiga. Isso, apesar de alguns problemas; era cheinha, mas, até aí, tudo bem: esse tipo físico estava na moda, durante a Dinastia Tang. Um problema mais sério era que cheirava mal, o que fez com que construísse muitas piscinas para estar sempre tomando banho, e inventasse uma espécie de talco perfumado. Como se vê, boba não era.

Yang já era casada com um príncipe, quando encontrou o sogro, o Imperador Xuanzong, através das armações de Gao Lishi, o Grande Eunuco Imperial. O Imperador se apaixonou pela nora, e obrigou o filho a se divorciar, compensando-o com outro casamento de alto nível. Uma vez tornada consorte, Guifei tratou de colocar muitos parentes em altos postos. Gostava muito de lichias, que só dão no sul da China, e eram trazidas especialmente para ela, pelos correios imperiais, usando os cavalos mais rápidos, noite e dia.

A história da Preciosa Concubina foi contada por Da Gong-ji já na segunda etapa do passeio, nas Fontes Térmicas de Huaqing. Na realidade, trata-se de um palácio, formado por um conjunto de pavilhões, jardinas e piscinas, construído por Xuanzong para homenagear Yang Guifei.  Ou para tirar o cheirinho peculiar da amada; e, para não embaraçá-la, havia piscinas para todo mundo: a Piscina do Lótus, para o Imperador; a Piscina das Estrelas, na qual Guifei se banhava ao ar livre; e piscinas para as outras concubinas, os príncipes, os altos funcionários... E outras construções grandiosas, como a represa chamada de Lago dos Nove Dragões, onde se ergue a estátua da concubina, ou o Pavilhão do Fulgor Esvoaçante, feito especialmente para que Guifei lá secasse os longos cabelos.

Entre os poetas que cantaram a beleza de Yang Guifei, estava Li Bai, mais conhecido no Ocidente como Li Po, talvez o maior dos poetas chineses, cujos versos Gustav Mahler usou para compor a Canção da Terra. Li Bai era um raríssimo caso de intelectual que fez pouco caso da carreira de mandarim, desprezou os exames imperiais e preferiu viver como vagabundo e boêmio, geralmente bêbado. Mas Xuanzong o convidava para partilhar a mesa imperial, nos quais Guifei estava sempre com tinta e papel, pronta para anotar os improvisos do poeta, que ele sabia fazer sobre qualquer assunto. Seu erro foi, estando bêbado, ordenar ao Grande Eunuco Imperial que lhe tirasse os sapatos. O eunuco intrigou Guifei contra o poeta, até que Li Bai foi exilado. Passou a beber mais ainda, e escreveu poemas como Bebendo Só com a Lua:

De um pote de vinho entre as flores,

Bebi sozinho. Ninguém estava comigo,

Até que, levantando a taça, pedi à brilhante Lua,

Para trazer minha sombra, e ficamos em três.

Que pena, a Lua não bebia,

E minha sombra apenas me imitava,

Mas, pelo menos, tive esses companheiros,

Para me alegrarem até o fim da Primavera...

Numa dessas, Li Bai estava em uma ponte sobre um lago, e quis abraçar o reflexo da Lua na água. Morreu afogado.

Afinal, o nepotismo acabou causando a perdição de Yang Guifei, quando nomeou seu bobo da corte favorito, o turco An Lushan, como general, duque e governador de províncias. Embora considerado engraçado por ser extremamente gordo, o turco era realmente um general competente. Quando percebeu que o Primeiro Ministro Yang Guozhong, corrupto, incompetente e primo de Guifei, conspirava contra ele, rebelou-se e tomou Xian, obrigando o Imperador a fugir.  A Guarda Imperial, culpando os Yang pela rebelião, exigiu a cabeça deles; Guozhong foi executado, e Guifei se suicidou. Ou, em outra versão, foi assassinada pelo Grande Eunuco Imperial, talvez a pedido, talvez para evitar sorte pior nas mãos dos rebeldes, ou talvez por oportunismo. Ou ainda, na versão com final feliz, conseguiu fugir para o Japão, e lá viveu o resto dos dias, tranquilamente. Efeito Palimpsesto, dos bons.

Embora afinal Xuanzong abdicasse em favor do filho, e Lushan fosse assassinado pelo respectivo filho quando se tornou um louco perigoso, a guerra civil durou mais oito anos; estima-se que tenha custado 36 milhões de mortos, número só superado pela Segunda Guerra Mundial. Haja tragédia. Nunca mais o poder dos Tang foi o mesmo, embora, nominalmente, a dinastia ainda durasse mais cento e cinqüenta anos. Foi um longo período de decadência: a época do Clã das Adagas Voadoras. Depois seguiram-se mais de cinqüenta anos de divisão e anarquia, o tempo das Cinco Dinastias e Dez Reinos.

Durante nosso almoço, em um restaurante em frente às Fontes Térmicas, perguntei a Gong-ji que significados ele, ou a Ordem, enxergavam nessas histórias. Ele me disse que várias leituras podiam ser feitas, à maneira do Efeito Palimpsesto. A mais óbvia seria a de que a Política é sempre a arte da traição feita às pessoas certas, no momento certo e no lugar certo. Talvez fosse assim no mundo todo, mas em nenhum lugar essa arte atingiu tanto requinte quanto na China. Gong-ji aproveitou para falar do Incidente em Xian, que tinha acontecido exatamente naquele local.

A China vivia, desde 1927, a guerra civil entre o Partido Comunista, liderado por Mao, e o governo do Partido Nacionalista, o Kuomintang, liderado por Chiang Kai-shek; os leitores do primeiro livro devem se lembrar da participação de Fuk Yu-meng, que combatia pelo PCC. Mas os japoneses tinham invadido a Manchúria, instalado Pu Yi como imperador fantoche, e estavam estendendo o domínio sobre a China. Muitos generais de Chiang defendiam uma trégua com os comunistas para unir forças contra os japoneses, mas Chiang dizia que era preciso primeiro resolver o problema doméstico, ou seja, derrotar o PCC. Em dezembro de 1935, veio a Xian inspecionar o cumprimento das ordens por parte de seus generais Zhang Xueliang e Yang Hucheng, hospedando-se nas Fontes Térmicas. Durante a noite, a comitiva de Chiang foi atacada, por ordem dos dois generais; alguns guarda-costas foram mortos, e Chiang fugiu de camisola, para se esconder em uma caverna da mata vizinha. No dia seguinte, foi capturado.

Zhou Enlai foi enviado a Xian, para decidir o destino de Chiang, em nome dos comunistas. Mao era a favor de executar Chiang, por sinal assassino da esposa do Grande Timoneiro, tida como a favorita entre as quatro que teve. Os americanos pressionavam contra, pois, embora favoráveis à união do Kuomintang com o PCC contra o Japão, julgavam Chiang a melhor opção como líder da China. De Stalin, dizia-se que tinha sido inicialmente favorável à invasão japonesa, pois pretenderia dividir a China com o Japão, como viria a dividir a Polônia com a Alemanha; mas, já desconfiado da ambição japonesa, passara também a favorecer a união das forças chinesas, e foi quem, afinal, bateu o martelo do lado comunista. Zhou Enlai e os dois generais concordaram em libertar Chiang, em troca da união contra os japoneses.

A união durou até o final da Segunda Guerra Mundial, mas Chiang se vingou do que considerava a maior humilhação de sua vida. Yang foi para um campo de concentração e depois foi executado; Zhang foi condenado a dez anos de prisão. Daí para a frente, acontecem várias coisas estranhas: Chiang comuta a pena de Zhang para prisão domiciliar, mas não o liberta ao final dos dez anos, e ainda o leva preso, ao fugir para Taiwan. Zhang passa mais cinqüenta anos na prisão domiciliar, provavelmente um recorde mundial para prisioneiros políticos. Mas dedica-se apenas ao estudo da poesia e nunca quis comentar o incidente, mesmo depois de libertado, quando foi viver no Havaí e lá morreu, aos 100 anos. Há suspeitas de que Zhang fosse agente do PCC desde o início, mas ele nunca atendeu aos convites para voltar à pátria, alegando neutralidade entre comunistas e nacionalistas.

— Como vê, meu caro professor Basileu, as vidas dos grandes políticos chineses costumam ter grandes reviravoltas, e traições dentro de traições. E os grandes do século XX não foram exceção: Pu Yi, o Último Imperador, e Sun Yat-sen, o Pai da República; Chiang Kai-shek e Zhang Xueliang, Mao Zedong e Zhou Enlai, a Gangue dos Quatro e Deng Xiaoping; e mesmo os nosso velhos Fuk Yu-meng e Fuk Kwik-li... Só os dirigentes atuais são exceção; a política econômica é de Fuk Kwik-li, mas acho que Fuk Yu-meng aprova o estilo de carreira política deles: subir na vida como tecnocratas competentes, governar por algum tempo razoável, e depois não encher muito o saco...

Respondi:

— A história do Incidente em Xian está me parecendo um caso de Efeito Elefante, em que só conhecemos uma faceta da verdade, e ficamos achando que o elefante é uma cobra, como o cego que tocou na tromba... Mas se as histórias de ambição política desmesurada estão na primeira camada do palimpsesto, qual seria a segunda?

— Um problema que acontece com nossa Ordem, de tempos em tempos, através das eras. Todas as nossas altas sacerdotisas recebem profundo treinamento em nossas doutrinas, práticas e ritos. Algumas se destacam pela inteligência, perspicácia, astúcia, ou uma combinação de tudo isso. Dessas, algumas também aprender a usar o treinamento recebido, colocando-o a serviço das artes da sedução, embora os motivos originais sejam exclusivamente religiosos. Uma combinação perigosa, ainda mais quando se junta algo que não deveria existir entre nossos sacerdotes ou sacerdotisas, que é a ambição. Quando isso acontece, temos ao mesmo tempo grandeza e tragédia, como aconteceu com Wu Zetian, ou com Yang Guifei.

Só para confirmar, eu perguntei:

— Seria esse o caso de rainhas notáveis por qualidades e defeitos semelhantes, em outras civilizações? Vêm-me à cabeça Hatshepsut, Cleópatra, Teodora de Bizâncio, Catarina, a Grande...

— Sim, embora eu não me sinta autorizado a comentar mais sobre essas. Mas tivemos pelo menos mais um caso famoso na História de China: Ci Xi, a Imperatriz Viúva. Que, ao contrário de Wu Zetian, nunca governou em nome próprio... Aliás, é mais uma personalidade relacionada com as Fontes Térmicas de Xian. Ela se refugiou aqui, quando as potências imperialistas tomaram Pequim, na Rebelião dos Boxers. Coincidências, nodos do espaço-tempo, karma?...

O velho xenoetólogo aqui não podia de deixar de especular sobre os porquês.

— E vocês têm alguma teoria, ou doutrina, sobre o que leva essas mulheres a aceitar o Mal em troca do Poder? Mesmo no seio de uma organização tão antiga e disciplinada quanto a Grande Fênix?

— O que levou Fausto a se entregar a Mefistófeles? De onde vem o poder de sedução do Lado Escuro da Força? A oposição radical entre Luz e Trevas, ou Bem e Mal, é um conceito transcendentalista e ocidental, não nosso. Para nós, há Yang e Yin, masculino e feminino, Dragão e Fênix, claro e escuro, água e fogo, terra e ar. Mas quem pode dizer que Yang seja bom e Yin mau, ou vice-versa? Yang e Yin não se excluem, dependem um do outro, transformam-se um no outro; Yang é parte de Yin, e Yin é parte de Yang.

Gong-ji saboreou um pouco minha surpresa com a tirada, e completou:

— Vamos então conversar sobre os que nossos irmãos ocidentais chamam de Outros ou de Adversários, e que nós chamamos de Grande Dragão... Esses que são tudo de ruim e perverso que dizem deles, mas são mais do que isso. Mas é melhor falarmos disso lá onde eles resolveram assumir o poder em nossa terra, um poder sem maiores disfarces... Lá na morada do Primeiro Imperador... e de seu exército.

 

     

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