A Dinastia da Fênix

Surpreendeu-me que Da Gong-ji julgasse importante me contar mais sobre a Grande Fênix na China, pois ele sabia que eu conhecia o manuscrito entregue por Pu Yi, o Último Imperador, ao Dr. Fuk Yu-meng. Os pontos importantes desse documento foram resumidos no primeiro livro. O mais relevante de todos é o que narra como a Ordem ajudou os Mongóis a tomarem o poder na China, fundando a Dinastia Yuan. Para o Ocidente, fixou-se a imagem de Gêngis Cã como chefe de hordas arrasadoras de bárbaros; mas seu neto Cublai Cã organizou e estabilizou o Estado Chinês. Embora a dinastia mongol tenha sido uma das mais breves, depois dela nunca mais a China passou por séculos ou mesmo décadas de guerra civil e anarquia, como acontecera tantas vezes antes.

E Cublai foi um Favorito da Fênix, embora a Nobre Ave tenha sido tragicamente devorada na forma de Pato a Pequim, graças a dois traidores: o primeiro-ministro Ahmed ibn-Salim al-Mufaddin, na realidade Ahmed ibn-Saddam al-Ikat, neto do último Velho da Montanha, o líder da Seita dos Assassinos, que assim vingou sua seita, esmagada pelos mongóis; e Sen Ku-liang, o Grande Eunuco Imperial, membro[1] da Confraria de Csífodas.

Mas minha curiosidade teve que esperar, pois nossa conversa se estendera até tarde, e Gong-ji ficou de continuar suas explicações no dia seguinte, quando me levaria para conhecer as principais atrações de Xian: o Grande Pagode do Ganso Selvagem e os Guerreiros de Terracota. Retomou a narrativa quando chegamos ao sítio do primeiro, não muito longe do centro da cidade. Os sete andares do Pagode dominavam um parque e, sem que Gong-ji tocasse no assunto, entendi que ali ficava a sede chinesa da Grande Fênix, em algum lugar da imponente estrutura. A Seita não se considera dona da Verdade Absoluta, como geralmente acontece com as religiões monoteístas, ou, como eles dizem, transcendalistas. Portanto, nenhum problema em hospedar-se em um templo budista.

De certa forma, eles são precursores do moderno pensamento xenoetológico, para quem a Verdade tem múltiplas facetas (Efeito Elefante), múltiplas camadas (Efeito Palimpsesto) e múltiplas perspectivas (Efeito Rashomon). Ou da Física Moderna, para quem matéria e energia são partículas, mas ao mesmo tempo são também ondas. Para não falar da Política, que sempre praticou o doublethink, em formas mais amenas ou mais perversas, antes que Orwell inventasse o próprio termo. Para politeístas, ou imanentistas, Zeus pode ser Amon, Iansã pode ser Santa Bárbara, a Deusa Mãe tem muitos nomes, e a Fênix pode se hospedar na casa de Asclépios, de Ahura Mazda ou de Buda.

Gong-ji me explicou que, na tradição ocidental da Ordem, ela se tornou uma Sociedade organizada e poderosa no Egito, durante o reinado de Ramsés II; difundiu-se e ganhou poder nos mundos mesopotâmio e helênico; e chegou ao centro do Poder, tanto no Império Persa quanto no Romano. Mas na China, ela já existia desde tempos muito mais longínquos; dezenas de milhares de anos, se acreditarmos nos lendários Três Augustos e Cinco Imperadores, míticos fundadores da civilização chinesa.

Na época a que chamamos de Século IV, o desastre atingiu a Fênix no Ocidente. O Império Romano aderiu ao Cristianismo, para quem a Ordem não só era uma seita de desprezíveis pagãos, mas instigadores das perseguições aos cristãos, e, ainda por cima, praticantes de rituais imorais. O Imperador Juliano, o Apóstata, piorou a situação, com sua desastrada tentativa de restauração do paganismo, e sua ainda mais desastrada guerra contra a Pérsia, que lhe custou a vida. Sabendo que Juliano pertencia à Ordem, o Rei dos Reis persa se sentiu traído, na qualidade de tradicional protetor da Grande Fênix, e a baniu a também de seu Império, onde fora muito bem acolhida e convivia intimamente com o Zoroastrismo, há muitos séculos. Seus membros ou mergulharam na clandestinidade no Oriente Médio e na Europa, ou tiveram que migrar para os países do Oriente mais distante, como os reinos indianos e a China.

A chegada dos irmãos do Ocidente trouxe uma postura até então desconhecida da Fênix chinesa. Para os chineses, a Fênix significava a Imperatriz, o feminino, a tranquilidade e a discrição, contrastando com o Imperador, o masculino, o ímpeto e o poder, encarnados no Dragão. Assim, a Fênix chinesa enfatizava o aperfeiçoamento pessoal, de maneira algo semelhante à Escola Theravada do Budismo; seus adeptos não se interessavam pelos negócios mundanos, e suas comunidades monásticas cuidavam da própria vida, embora de uma forma que consideraríamos nem um pouco ascética. Para os recém-chegados dos Impérios Persa e Romano, entretanto, a Fênix era associada a forças poderosas como os Anjos de Zoroastro e a Águia Imperial, e dominar os centros do Poder, mesmo que nos bastidores, fazia parte da Missão de preparar e dar continuidade às Encarnações da Nobre Ave.

Desde a queda da poderosa dinastia Han, a China vivia um período de guerra civil e desunião, que durou quase quatro séculos. O período de anarquia foi encerrado pela dinastia Sui, que reformou o Estado e a Grande Muralha, expandiu o budismo, o comércio e a burocracia imperial e, principalmente, construiu o Grande Canal: 1.800 quilômetros de extensão, unindo as bacias dos rios Yangtze e Amarelo, de Pequim a Hangzhou, ao sul de Xangai! Não admira que o Estado Sui, embora brilhante, fosse tirânico e odiado, e se tornasse uma das mais breves dinastias.

O cansaço com os períodos de anarquia e tirania, afinal, levou a teoria ocidental a predominar dentro da Grande Fênix chinesa. Pela primeira vez na história do país, a Ordem se envolveu nas tramas que levariam ao poder e consolidariam a dinastia Tang, talvez a mais brilhante das dinastias imperiais. Como disse Gong-ji:

— O século VII foi pródigo em grandes reviravoltas no destino humano. Na América, a Encarnação da Nobre Ave marcou o auge do Império Maia e a queda de Teotihuacán. No Oriente Médio, caiu o Império Persa para que subisse o Império Islâmico. E, na China, começou a Era de Ouro dos Tang.

Repeti uma pergunta que fizera um dia a Donald Cockburn:

— Mas como poderiam acontecimentos do outro lado do mundo influenciar o Oriente Médio e a China? Nem os mitos mencionam viagens entre o Novo e o Velho Mundo, nessa época.

A resposta de Gong-ji não foi muito diferente:

— A História oficial também não registra nossa Ordem, nem nossas rivais e aliadas. Mas o contato físico não é necessário. Os acontecimentos seguem as geodésicas do espaço-tempo, sem que precise haver causalidade física entre eles... Como engenheiro, detesto as extrapolações que o espiritualismo new age faz da Física Quântica. Mas isso poderia ser chamado de ação fantasmagórica à distância, como diria Einstein... Não quero dizer que o emaranhamento de partículas distantes seja a mesma coisa que o emaranhamento dos acontecimentos históricos remotos, apenas que um serve de analogia para explicar o outro, como os físicos usam análogos sônicos para entender os buracos negros.

Balancei a cabeça, como quem não ficou muito convencido, mas aceita provisoriamente uma hipótese de trabalho, e Gong-ji continuou:

— No século VII AC, mil e trezentos anos antes, o mesmo problema aconteceu. A Encarnação da Águia coincidiu com o auge do Império Olmeca, mas também com o surgimento da filosofia grega, de Zoroastro, Lao Tse, Confúcio e Buda. Por falar nisso, e voltando à época dos Tang, a lenda budista diz que a ascensão dos Tang coincidiu com a chegada a Xian de um sagrado dente de Buda, juntamente com as relíquias e manuscritos trazidos da Índia pelo monge Xuanzong,  e a construção do Grande Pagode do Ganso Selvagem. Os muçulmanos lembram que coincidiu com a construção da Grande Mesquita de Xian, marcando a chegada do Islã pela Rota da Seda. Eu diria que são visões válidas, dentro do Efeito Rashomon, mas a nossa está em uma camada mais profunda do Efeito Palimpsesto...

Consolidada a dinastia, os Tang combinaram o domínio de vasta extensão territorial, um grande corpo de funcionários públicos organizado segundo os preceitos de Confúcio, a riqueza que fluía pela Rota da Seda, a difusão do Budismo e o florescimento das artes e da cultura. A influência dos Tang ia do Japão e Coréia à Cachemira, da Ásia Central ao Vietnam. Taizong foi o primeiro grande Imperador da Dinastia, conhecido como General do Céu, e, depois de sua morte, como Wenwu-dasheng-daguang Xiao Huangdi, ou seja, Filial Imperador que é Civil e Marcial, Grande Santo e Muito Expansivo. Sabiam bajular, naquele tempo.

Taizong realizou grandes feitos como governante e general, mas sua vida privada também era notável. Por exemplo, dava conta de 3.000 concubinas, resultado, segundo Gong-ji, de seu treinamento na Grande Fênix, ou, segundo outros, da medicina chinesa. As mais sábias concubinas o ajudavam a governar o país (sacerdotisas, segundo meu guia). Talvez tenha inventado a garantia da qualidade, contratando funcionários especialmente para criticá-lo. O maior destes foi Wei Zheng, que se gabava de ter criticado o Imperador mais de duzentas vezes; como recompensa, foi Primeiro Ministro por muitos anos. Taizong o chamava de meu espelho, por mostrar seus defeitos, e Wei Zheng é reverenciado até hoje como exemplo de sabedoria.

O Grande Pagode do Ganso Selvagem foi construído pelo Imperador Gaozong, filho de Taizong, a pedido do monge Xuanzang. Como foi dito, tinha o objetivo de abrigar as muitas relíquias budistas que esse monge trouxera de sua famosa viagem à Índia. A parte historicamente comprovada dessa viagem já é bastante fantástica. Taizong havia proibido viagens ao exterior por causa de uma guerra com os turcos, mas o monge conseguiu se evadir e, durante dezessete anos, percorreu toda a Índia, visitou todos os lugares sagrados do Budismo, e freqüentou a Universidade Budista de Nalanda, provavelmente a maior do mundo, na época.

Uma versão fantástica da viagem é descrita no livro Viagem para o Oeste, um dos Quatro Grande Romances Clássicos da literatura chinesa. Ali, Xuanzang viaja montado em um cavalo mágico que na realidade é um Príncipe Dragão transformado por castigo, e tem ajuda de discípulos fantásticos, como o Rei dos Macacos. Segundo Gong-ji, Xuanzang seria um irmão de Ordem, enviado por esta com a aprovação do Imperador, para entrar em contato com os irmãos de outros países, e coletar o conhecimento e a sabedoria deles. Um exemplo de Efeito Palimpsesto.

Ora, até hoje existem ramos budistas que comem carne, e outros que não a permitem.  Naquela época, essas escolas disputavam a predominância; e conta-se que os monges do pagode, que eram do grupo carnívoro, ficaram um dia sem carne. Um monge viu um bando de gansos selvagens passando, e pediu que Buda lhes mandasse um pouco de carne. Imediatamente, o ganso líder caiu ao chão, de asas quebradas. Isso foi interpretado como uma condenação de Buda ao consumo de carne, e desde então aqueles monges se tornaram vegetarianos, e o pagode passou a ser chamado de Pagode do Ganso Selvagem, depois chamado de Grande, para distingui-lo de um pagode similar e um pouco menor, construído em Xian poucas décadas depois.

Bom, eu interpretaria o recado de Buda exatamente ao contrário: pediram carne, e ele deu. Mas não comentei com Gong-ji, que, logo depois da versão tradicional, deu a versão da Ordem para a história. O pagode representaria, além de sua finalidade ostensiva, o agradecimento dos Tang pela contribuição da Grande Fênix ao seu brilhante império; e o significado do episódio do ganso selvagem seria a proibição, não de qualquer carne, mas da carne de aves, em especial. Efeito Rashomon...

 Mas, como lembrou Gong-ji, o yin tem sempre dentro de si a semente do yang (inclusive com as devidas conotações sexuais que, no caso, são sérias). Gaozong reinou por mais de três décadas, mas, pouco depois da construção do Grande Pagode, o poder de fato passou para as mãos da famosa Wu Zetian. Esta era uma descendente dos Sui, que, aos quatorze anos, já com fama de grande conhecedora de Literatura, História e Música, tornou-se Concubina de Quinto Grau de Taizong. Doze anos depois, quando Taizong morreu, tornou-se monja, como era costume; mas Gaozong se apaixonou por ela, e afinal retirou-a do convento e a tomou como concubina, para escândalo geral.

No começo, Wu foi protegida pela Imperatriz Wang, que via nela um contrapeso à influência da Primeira Concubina Xiao. Mas o ciúme tornou a Imperatriz uma inimiga, e suspeitou-se dela, quando o bebê de Wu morreu misteriosamente; segundo outras versões, foi Wu quem assassinou a própria filha, para incriminar a Imperatriz. A partir daí, Wu conseguiu obter do Imperador os títulos de Primeira Concubina, e depois de Imperatriz. Quando isso aconteceu, mandou que os braços e pernas de Wang e Xiao fossem esmagados, e elas deixadas a morrer dentro de tonéis.

Poucos anos depois, Gaozong sofreu um derrame e perdeu a fala. Wu passou a se sentar atrás do trono e tomar as decisões. Depois que o Imperador morreu, ela fez o mesmo com os filhos de ambos, os Imperadores Zhongzong e Ruizong. Finalmente, depôs os dois filhos e assumiu ela mesma o título de Imperador, caso único na história chinesa. Fez um governo tirânico mas muito competente, com a ajuda de dois de seus muitos amantes, os irmãos Zhang, declarando a dinastia Zhou, em substituição aos Tang.

Como exemplos de seu lado positivo, Wu gostava de ser criticada, como Taizong; fortaleceu o sistema imperial de exames para os altos funcionários; fomentou a agricultura de várias maneiras, inclusive patrocinando uma coleção de livros de técnicas agrícolas; e fortaleceu a posição das mulheres na sociedade, contrariando os ensinamentos de Confúcio. Por outro lado, era muito cruel, como já se pôde ver, e estabeleceu uma feroz polícia secreta. Finalmente, aos 80 anos e doente, Wu foi deposta pelo filho Zhongzong, e teve os amantes executados.

Mas ainda viveu o suficiente para colocar um sobrinho favorito como amante de sua nora, a nova Imperatriz Wei, e novo poder atrás de Zhongzong... Depois de várias reviravoltas do gênero, o poder chegou poucos anos depois às mãos do Imperador Xuanzong, filho de Ruizong, que executou Wei e reinou por quarenta e quatro anos, sendo considerado o maior dos Tang. Mas, durante o reino dele, quem mandava mesmo era sua consorte Yang Guifei...