Da Gong-ji

Meu hotel em Xian era moderno e confortável, bem no ponto central da parte tradicional da cidade, agora novamente cercada por muralhas restauradas. Na praça em frente, cruzam-se as quatro avenidas principais, orientadas para os pontos cardeais, e batizadas com os nomes deles; formando os eixos de um sistema de ruas planejadas em ângulos retos, como faziam os chineses milênios antes que tal idéia chegasse aos urbanistas ocidentais. Bem no centro, a Torre do Sino, mais monumental que a de Pequim.

À falta de outras instruções, supus que deveria continuar percorrendo os pontos turísticos, à espera do contato. Comecei por ali, passando depois à Torre do Tambor, que, como em Pequim, ficava ao lado. Logo depois, começava o bairro muçulmano, onde as ruas principais eram ocupadas por um mercado que, sem deixar de ser chinês, também lembrava um suq árabe. Eu procurava a Grande Mesquita da cidade, aberta aos turistas, e custei um pouco a achá-la dentro de um bequinho coberto.

Parte da dificuldade de achá-la vinha do fato de que eu esperava alguma cúpula majestosa, como, digamos, as grandes mesquitas do Marrocos, e, em lugar disso, havia um recinto ajardinado, como muitos pequenos pavilhões, que pouco diferia de um templo budista, ou, melhor ainda, de um confucionista, pela austeridade e sobriedade. Poucos pavilhões eram de acesso exclusivo dos fiéis, e acabei parando diante de uma placa que a comunidade muçulmana de Xian agradecia ao governo a restauração da mesquita. Nessa hora, ouvi alguém dizer a meu lado:

— Como vê, professor Basileu, religiões bem comportadas continuam sendo recompensadas pelo governo, como faziam os imperadores. Mas você certamente já pensou nisso, lá no Templo do Lama.

A intervenção foi ainda mais surpreendente porque o inglês era muito bom, bem diferente do chinglês que eu tinha ouvido em toda parte, nos dias anteriores. O homem que estava a meu lado tinha a mesma altura que eu, ou seja, era muito alto para os padrões chineses, embora estes já sejam bem mais altos que os dos países vizinhos. E era bem mais forte e corpulento, lembrando um típico pirata chinês de filme, daqueles que são fortes e ágeis apesar de barrigudos. Não tive a menor dúvida de estava diante de Da Gong-ji, o Grande Galo. Trocados os cumprimentos de praxe, comentei:

— As coisas estão assim tão ruins? Vejo que tomaram muitas precauções para se encontrarem comigo.

Da Gong-ji riu, coisa que fez com freqüência durante todo o tempo em que conversamos, e disse:

— As precauções são porque não sabemos o quanto estão ruins, ou mesmo se estão. Esperamos que nos ajude a decidir isso. Não sei se o que vou lhe dizer melhora ou piora, mas não é ao Governo que estamos despistando. A polícia secreta é sempre vigilante, mas está interessada em ativistas democráticos, em tibetanos e uigures que ainda sonham com a independência, nos Falun Gong, em católicos fiéis ao Papa e em muçulmanos fiéis a Bin Laden. Nós somos uma das religiões bem comportadas. Aqui, sempre fomos.

Fez um gesto de convidar a caminhar:

 — Já deve ter visto o que interessava, aqui na Mesquita. Vamos caminhar pelo bairro muçulmano, enquanto conversamos. A comida dos vendedores de rua é gostosa. Só não garanto que seja compatível com a flora intestinal ocidental, mas, se estiver disposto a arriscar...

A primeira revelação surpreendente de Gong-ji foi que o ciclista do pedicab era gente deles. Eles me esperavam para fazer contato na casa-museu do hutong; daí o desconcerto do ciclista, quando eu não quis visitá-la. Foi preciso esperar que eu decidisse meu passeio à Grande Muralha, para ativar a vendedorinha da casa de chá. Mas, de qualquer maneira, um encontro em Xian seria marcado. Depois, Gong-ji perguntou o que eu achara de Pequim.

— Bem diferente da primeira vez em que estive lá. A cidade ainda estava cheia de ruínas do terremoto de 1976, e boa parte da população morava em favelas, diante de seus próprios prédios de apartamento, que tinham desabado. Campos de sorgo por toda parte. Agora, é uma grande metrópole como qualquer outra. Se tem algo de diferente, são os congestionamentos e a quantidade de obras.

— O Grande Terremoto de Tangshan... Diz a lenda chinesa que os grandes terremotos anunciam a morte dos grandes imperadores. De fato, Mao morreu poucas semanas depois. Pouco tempo antes, tinham morrido Zhou Enlai e Zhu De, dois dos últimos grandes da Revolução; pouco depois, caiu a Gangue dos Quatro, e veio Deng Xiaoping. E depois, não a liberalização política esperada por seu mestre Fuk Yu-meng, mas a liberalização econômica pregada por Fuk Kwik-li. Os Csífodas, em suma.

Gong-ji se referia a meu velho mestre de Oxford, exilado depois de ter sido conselheiro de Mao e Deng; e ao primo e adversário dele, Fuk Kwik-li, tido como o idealizador desse capitalismo chinês, misturado de forma tão estranha com a ortodoxia política marxista. Em seguida, acrescentou:

— Foi uma grande mudança de era, mas essas coisas da política interessam a poucos. O que os avós contam aos netos é como, antes do terremoto, a água ficou barrenta em alguns poços e subiu em outros. Como, na véspera, muita gente viu luzes estranhas. Em Tangshan, as cobras saíram dos buracos, os cachorros latiam sem parar, e mil galinhas se recusaram a comer. Por isso, Nós sabíamos, e Eles também, e os Outros também, e por isso poucos de nós todos estavam entre os mais de duzentos mil mortos, e pudemos lutar entre nós pelas fatias de poder da Nova Era.

A referência era enigmática, mas conseguiu perceber que Gong-ji se referia a sua própria Ordem e às sociedades secretas rivais. Ele continuou:

— No final, como sempre, as coisas não mudam muito. Mas continuamos com nossa fatia, que não é a maior, mas é suficiente. E nossa cidade é esta: Xian, onde ficam o Grande e o Pequeno Pagodes do Ganso Selvagem. Por isso é que nosso encontro está sendo aqui; aqui podemos ter mais segurança do que em qualquer outro lugar da China. Principalmente Beijing.

Perguntei:

— E quem controla a capital, então? Os Csífodas?

Este foi o único momento do dia em que o bom humor de Gong-ji pareceu sumir:

— Por mais astuto que Fuk Kwik-li tenha sido, e que os sucessores dele sejam, isso nunca conseguirão. Sabia que ele morreu? Ele dizia que ia se encontrar com Adam Smith, mas espero que esteja fazendo uma turnê por todas as dezoito câmaras de Di Yu, o inferno budista e taoísta. E fique na última delas, a Câmara de Avici, a dos piores traidores, da qual ninguém se reencarna. Mas sabe o que é pior? O líder atual dos Csífodas chineses é o filho dele, Fuk Kwik-li Er, ou seja, Fuk Kwik-li, o Segundo, ainda mais amoral e mercenário do que o pai.

Feita essa espécie de desabafo, voltou a seu estado normal de ironia ligeira:

— Pelo menos isso está fora do alcance deles: controlar Beijing. Eles podem ganhar muito dinheiro, e vão, com certeza. As milhares de obras, as novas avenidas, os hotéis de luxo, os shoppings, o calçadão da Wangfujing... Grandes imperadores constroem grandes obras, e sorte de seus construtores. Os Ming e os Qing refletiam a grandeza no Império na Cidade Proibida; Mao simbolizou a imensidão do Partido na Praça Tiananmen e no Grande Hall do Povo; os dez ou quinze engenheiros que agora nos governam querem deslumbrar o Mundo com Beijing inteira, nas Olimpíadas. Muito dinheiro girando... Entretanto, sequer conseguiram acabar com a degustação de cachorros...

Isso me deixou uma pulga atrás da orelha[1]:

— Corre-se risco de comer carne de cachorro nas barraquinhas de rua?

— Não aqui em Xian, pois muçulmanos têm mais horror a comer cachorros do que os ocidentais. E até pelas razões opostas: eles consideram o cachorro um animal desprezível, como o porco. Como muitos muçulmanos são mercadores, desconfio que os próprios Confrades tenham espalhado essa teoria no mundo islâmico, para proteger o animal-símbolo deles... Mas na maior parte da China, você só tem essa garantia nos Anos do Cachorro, quando se considera que saborear caninos dá azar.

O líder da Fênix acrescentou que, atualmente, a imitação dos costumes ocidentais leva alguns chineses a terem cachorros de estimação. E que o Governo não gosta nada disso; na época de Mao, dizia-se que os cachorros competiam com os humanos por recursos escassos, e atualmente alega-se o controle da raiva canina. Em Pequim, vigora a política do cachorro único, semelhante à política do filho único. De fato, vi muito menos gente com cachorro do que no Brasil, e se formos comparar com a cinófila Europa, então... Comentei, entretanto, que os poucos cachorros que eu tinha visto eram bem gordinhos. Gong-ji respondeu que isso tanto pode significar que estão sendo bem tratados, como que estão sendo cevados para virarem Cachorro de Ano Novo. Mais ou menos como fazemos com o Peru de Natal, pensei, mas não disse, em respeito à sensibilidade religiosa de meu interlocutor.

Gong-ji continuou sua preleção sobre os Csífodas na China, traçando um breve panorama da evolução da classe mercantil no país. Na Antiguidade, embora houvesse intenso comércio com os povos mediterrâneos, como egípcios, gregos, romanos e árabes, através da Rota da Seda, isso dependia muito de intermediários, principalmente persas, e mais tarde outros povos muçulmanos. Guerreiros mandavam na China, como no resto do mundo, e intelectuais também eram importantes, como em poucos lugares eram, mas mercadores e banqueiros formavam uma classe secundária, apenas tolerada pelos governantes, como mal necessário. Não havia potentados de origem comercial, como príncipes mercadores ou nababos; considerava-se como menos digna aquela riqueza obtida na troca e não na produção de bens.

Meu interlocutor reconheceu que uma grande oportunidade histórica foi perdida pelos chineses por causa disso; talvez a maior oportunidade antes da era atual. Poucas décadas antes das grandes navegações européias, o almirante Zheng He realizou sete fabulosas viagens, à frente de gigantescas frotas, chegando até à África (quiçá, dizem os mais imaginativos, até as Américas). Sendo eunuco, Zheng estava excluído da classe guerreira, e, sendo muçulmano, era um membro da cultura Hui, que valoriza o comércio, como se podia bem ver, ali no bairro deles em Xian. Mas o enorme sucesso não impressionou muito os imperadores, para quem os bens que chegavam de outros países eram tributos de reis vassalos, e os bens que lá deixavam eram incentivos e recompensas para súditos fiéis.

Como a motivação primária dessas viagens era política e não econômica, eventualmente apareceu um imperador que achou a despesa excessiva, e cancelou o programa. Hmm... mais ou menos como o programa de exploração da Lua, imagino. Mas, se não conseguiu tomar dos europeus o privilégio da Era dos Descobrimentos, Zheng He mudou a História, de qualquer jeito. Levando grande número de chineses, principalmente muçulmanos, para o Sudeste da Ásia, estabeleceu nesses países uma numerosa classe mercantil de etnia chinesa, que é ativa e próspera até hoje. No continente, por sua vez, navios privados continuaram o comércio marítimo; mas, sem o patrocínio oficial, e até reprimidos, em certas épocas, os mercadores chineses, que não se deixavam abater por tão pouco, freqüentemente descambavam para o contrabando e a pirataria. Tradição que continua até hoje, segundo Gong-ji...

A Confraria permaneceu meio misturada com grupos como as tongs e as tríades, e só começou a emergir de forma mais respeitável quando, no século XIX, os europeus, principalmente os britânicos, enfiaram sua forma de comércio goela abaixo da China. Inclusive, e principalmente, como é sabido, o tráfico de ópio. Das Guerras do Ópio nasceu Hong-Kong; os Csífodas ingleses acorreram em busca de fortuna rápida, e precisavam de Confrades chineses, que lhes servissem de parceiros. Macau, presenteada a Portugal séculos antes, tornou-se outro entreposto, e mais um surgiu quando a Alemanha ocupou Qingdao (Tsingtao, na grafia usual na época), onde os alemães fundaram a cervejaria que até hoje produz a cerveja mais tradicional da China (e que é boa mesmo).

E foi do comércio do século XIX que surgiu Xangai, a capital dos Csífodas chineses, segundo Gong-ji. Antes um lugarejo sem importância, passou a ser a porta da China para o mundo, dividida em concessões, nas quais os cidadãos das grandes potências gozavam de extraterritorialidade, até a Segunda Guerra Mundial. Ingleses e americanos fundiram suas concessões, formando a parte mais tradicional da cidade; os franceses, naturalmente, não quiseram entrar nesse bolo, mantendo a área que até hoje é chamada de Concessão Francesa. Nos anos 20 e 30, a Concessão Anglo-americana tomou o aspecto Art Déco que tem até hoje; Xangai era chamada de Cidade do Pecado e controlada por gângsteres; celebridades a visitavam, hospedando-se no magnífico Hotel Cathay, da lendária família Sassoon. Judeus iraquianos de origem, os Sassoons fizeram fortuna no tráfico de ópio, e tornaram-se primeiro a família mais rica da Índia, depois os reis de Xangai e finalmente lordes da Coroa Britânica. Depois da Revolução, o último Sassoon teve que trocar tudo que tinha na China por um visto de saída, mas sobrou o suficiente para que vivesse muito bem até o fim. Hoje, o restaurado Hotel Cathay se chama Peace Hotel; continua sendo o hotel mais luxuoso de Xangai, e um dos mais charmosos do mundo. E uma referência para todos os Confrades de suficiente ambição.

E Xangai é a maior e mais rica cidade da China, a capital econômica, como outras que o são sem ter o poder político: São Paulo, Nova Iorque, Frankfurt, Milão, Bombaim... E em nosso governo atual, disse Gong-ji, muitos são membros da Clique de Xangai, levada ao poder pelo ex-presidente Jiang Zemin, que viera da prefeitura da cidade. Mas, ressaltou, se Xangai é da Confraria, como Xian é de nossa Ordem, Pequim continua não sendo deles, clique ou não clique...

— Entendi, disse eu. Pequim é daqueles que são chamados de Outros, ou de Adversários.

— Muito bem, professor, eu já esperava que percebesse isso... Mas não temos aqui o hábito supersticioso de chamá-los por eufemismos, como fazem nossos irmãos do Ocidente. Para os chineses, é bem entendido que nós e eles somos duas faces da mesma moeda: Imperatriz e Imperador, yin e yang... em suma, Fênix e Dragão. Para lhe contar a história de um, tenho de contar a do outro.


 

[1] Sem intenção de fazer piada infame.

 

     

Anterior

Basileu

Próxima