Contato em Pequim

É cansativo, ir a Pequim em uma viagem só. Onze horas de São Paulo a Paris, quatro horas em Paris, mais nove horas até Pequim. Eu tinha até planejado um belo almoço no restaurante do Charles de Gaulle, onde já fora de outras vezes, mas o terminal em que cheguei e saí era bem terceiro-mundista, com casas de pasto à altura: uma sanduicheria italiana e uma lanchonete popular, com freguesia condizente. Restou-me, ao chegar a Pequim, antes de dormir uma tarde e uma noite para acertar o fuso horário, saborear o Pato à Pequim do hotel, um dos patos tradicionais da cidade. Afinal, Da Gong-ji não iria me convidar para degustar aves, principalmente o pato laqueado inventado por Ahmed ibn Saddam, o perverso vizir de Cublai Cã, para induzir o grande imperador mongol a devorar a própria Fênix encarnada.

Avelino Falcão já me avisara que a Grande Fênix, como de costume, usaria o Princípio de Hollywood: não os procure, eles o acharão. Mais do que nunca, esse princípio seria usado, em vista das rigorosas precauções de segurança que seriam tomadas. Eu deveria seguir o roteiro normal de um turista em Pequim e, em algum ponto do circuito, eles fariam contato.

Assim, fui seguindo o roteiro turístico padrão; começando, é claro, pela Cidade Proibida. Para muitos, a grandiosa cidadela dos imperadores manchus evoca as imagens do filme de Bernardo Bertolucci. Para mim, como sabem os leitores do primeiro livro, O Último Imperador tem um significado mais concreto: foi das mãos de Pu Yi que meu mestre em Oxford, o Dr. Fuk Yu-meng, recebeu um dos importantes manuscritos que me levaram à Grande Fênix. Lembro que o último dos soberanos manchus, após cumprir a pena a que fora condenado por colaborar com os invasores japoneses, passou o final da vida como pacato funcionário do Jardim Botânico de Pequim, onde o mestre Fuk, escondido da Revolução Cultural, veio a conhecê-lo.

A Cidade Proibida parecia ainda mais grandiosa que em minha visita anterior, muitos anos antes, com alguns dos pavilhões restaurados em cores brilhantes, e outros, infelizmente, fechados para restauração, como sempre acontece nos grandes sítios históricos. Mas ninguém da Fênix me procurou lá. Tive, em certos momentos, a impressão de estar sendo observado, mas um recinto histórico tão importante seria ativamente vigiado em qualquer lugar do mundo, e mais ainda na China, ao lado da Praça da Paz Celestial. Achei que um dos jardineiros parecia familiar, mas a gente tem aquele preconceito de achar que, nesses países asiáticos, todos são parecidos...

No dia seguinte, percorri o parque do Templo do Céu, e nada. Almocei de novo o pato laqueado, dessa vez um mais famoso, em um restaurante onde os patos são numerados, e as paredes são ornamentadas por fotos de celebridades que degustaram o pato, de Bush pai a Fidel Castro. Na foto, Fidel faz o conhecido gesto de deste tamanho. Referia-se ao pato, imagino.

Depois, uma visita ao Templo do Lama, o principal templo budista da cidade. A procissão, o incenso e o salmodiar dos monges, a multidão de devotos e as fileiras de lojas de artigos religiosos comprovavam o que eu já tinha lido: na China, as religiões que não criam problemas para o Estado são permitidas, e dizem que seus religiosos são remunerados pelos cofres públicos, a título de fomento do turismo. O mesmo não acontece com religiões tidas como politicamente incorretas. Não é invenção do regime comunista; com os imperadores, era a mesma coisa.

Pelo menos, os artigos que vendiam nas lojinhas eram bem mais interessantes do que os da lojas equivalentes nos santuários católicos, e nem tudo necessariamente com ligação direta com o budismo. Achei que um leque com um dragão era interessante e quis pedir um par para ele, mas a vendedora não falava inglês.

Long, disse eu, apontando o dragão. Feng?

Fui corretamente entendido: a moça trouxe outro leque similar, mas com uma fênix.

Depois de apreciar a pompa budista, segui pela rua em frente, também cheia de lojinhas budistas, mas com artigos mais populares que as do Templo. No final dessa rua movimentada, entrei em outra bem mais tranqüila, para visitar o Templo de Confúcio. Embora o confucionismo não seja propriamente uma religião, é tradicionalmente mal visto desde a época de Mao, por considerar-se que valoriza a aristocracia e as diferenças de classe. Confúcio era o patrono dos mandarins, e mandarins são malquistos; não se considera aceitável chamar de Mandarim o idioma principal chinês, como é habitual nas referências ocidentais. O Templo de Confúcio é um lugar tranqüilo, porque praticamente ninguém vai lá, e bastante mal conservado, embora haja algum trabalho de restauração, provavelmente também por interesse turístico.

Ao sair do Templo de Confúcio, fui abordado pelo dono de um pedicab, que vem a ser uma espécie de combinação de riquixá com bicicleta. O inglês do rapaz era bem precário, mas o folheto que ele me entregou explicava suficientemente bem que se tratava de um passeio pelas hutong, as ruelas tradicionais da cidade. Aceitei, sabendo que Pequim é uma cidade bastante segura, e o passeio de fato foi interessante, passando por ruelas frescas e limpas, apesar da aparência modesta. Depois de meia hora de pedaladas, o ciclista propôs uma parada em uma casarão tradicional, que tinha sido transformado em uma espécie de museu. Eu tinha alguma curiosidade em visitar uma daquelas casas retratadas em tantos filmes chineses, mas tinha alguma premência de tempo, e era preciso pagar uma entrada na casa. Fiz as contas do dinheiro que eu tinha no bolso, e concluí que ficava um pouco apertado para depois pagar o ciclista e um táxi de volta ao hotel. Falcão me tinha dado um cartão de crédito da Ordem, mas eu duvidava que pudesse pagar essas despesas com cartão, e já tinha observado que caixas automáticos não eram tão comuns em Pequim.

O ciclista pareceu surpreso e desapontado, e depois fiquei imaginando que a visita dos turistas à tal casa era o momento em que ele aproveitava para descansar um pouco. Mas o passeio prosseguiu por mais meia hora, e ele me entregou direto a um guia turístico, que ofereceu uma breve visita à Torre do Sino. E assim se foi mais um dia.

O passo seguinte era visitar as atrações que ficam nos arredores da cidade. Não gosto de dirigir e, mesmo que gostasse, alugar carros é muito pouco recomendado, dado o tráfego caótico das grandes cidade chinesas. Já bastavam as loucuras dos motoristas de táxi. Portanto, tratei de procurar uma excursão adequada. Muitos anos atrás, eu tinha ido à Grande Muralha e aos Túmulos Ming em um passeio de um congresso, perfeitamente satisfatório, apesar da infra-estrutura turística rudimentar da China de então.

Agora, o meu livrinho turístico avisava que boa parte das excursões a essas atrações perdia muito tempo visitando arapucas comerciais com o óbvio propósito de garantir comissões aos guias, e que as piores de todas eram as visitas a clínicas de medicina chinesa. Segundo o livrinho, havia menos chance de que isso acontecesse com agências estatais, e, como o hotel intermediava uma excursão da agência da ferrovia estatal, fiquei com essa. Não adiantou; tome visita a fábrica de objetos de jade, fábrica de objetos de cloisonné (metal esmaltado), e, o pior de tudo, a tal da clínica. A guia, uma senhora gorducha mais para o fim da meia idade, fazia comentários sobre como a medicina chinesa garantia uma velhice virilmente feliz. As histórias de centenários funcionando a mil iam ficando mais maliciosas, quanto mais ela falava no assunto. Em mostruários da clínica, a parafernália supostamente milagrosa, de raízes de formatos os mais estranhos a chifres de rinoceronte e pintos de tigre. A fama destes, entusiasticamente louvada pela guia, explica por que os pobre coitados estão em extinção.

E assim, depois de ter passado tão rapidamente pelos Túmulos Ming que desta vez nem vi os famosos animais de pedra, fiquei sentado diante de um médico que me segurou no pulso, olhou minha língua e conclui um monte de coisas sobre o fluxo do qi e o equilíbrio do yin e do yang. Disse que minha situação era problemática, embora não explicasse como, e não mencionasse nada de minhas mazelas reais. Enfim, concluiu, embora eu tivesse problemas, tudo poderia ser facilmente curado por certos medicamentos chineses, que por acaso a clínica tinha para fornecer. Agradeci e dispensei, deixando-o com uma expressão que eu não sabia se era de piedade pelo ocidental descrente da verdadeira sabedoria curativa milenar, ou se de surpresa por encontrar um que não tinha caído nessa conversa.

Pelo menos, a última parada comercial da excursão foi a melhorzinha. Era uma loja de chás, e uma vendedorinha graciosa explicou tudo sobre as propriedades e a maneira de preparar várias espécies de chá, proporcionando-nos uma pequena sessão de degustação. Gostei principalmente de uma variedade de Oolong Tea chamada de Oriental Beauty, criada especialmente para homenagear a rainha britânica, que visitara a China pouco tempo antes. Mostrou como se testava a temperatura da água despejando-a sobre um bonequinho de barro embebido em água fria; se a temperatura fosse suficiente, o peepee boy faria xixi. Além disso, a temperatura correta fazia com que o dragão verde pintado na taça se tornasse vermelho. A garota mostrou também como um chá tão especial devia ser comido e não bebido, ou seja, devia ser sorvido fazendo-se barulho, e depois submetido na boca a um movimento de mastigação.

Achei que era uma interessante piece of conversation, e resolvi levar o chá, mais um de jasmim, os utensílios e o peepee boy. Enquanto embrulhava as coisas para mim, a vendedorinha, no meio de algumas explicações adicionais, me disse algo bem inesperado:

— O Grande Galo o espera. Os dados estão dentro de seu pacote.

Enfim, o contato. Quando cheguei no hotel, abri os embrulhos. Dentro havia um papelzinho, com o número de reserva de um vôo da Air China, e o nome de um hotel. Em Xian, uma das mais antigas capitais chinesas, cidade dos guerreiros de terracota, a uns mil quilômetros dali.

 

     

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