Incidente Amazônico

No fim de tarde em Manaus, fazia calor, é claro, mas temperado, no calçadão da Ponta Negra, por uma brisa do rio. Fiz uma caminhada, e fui depois para a piscina do hotel. Quem estava dentro nela, ou nas mesas em volta, tinha a ilusão de que a água da piscina, corrente, formava uma cachoeira que caía diretamente no Rio Negro, alguns metros abaixo. Achei que o gim-tônica que Cockburn e Falcão tomavam era uma boa escolha para a hora, e pedi o mesmo.

Donald Cockburn concordou comigo que, se aceitas como verdadeiras as alegações dos Csífodas, elas acabariam por reforçar as teses de Connie Hawke. Estaria comprovado que, embora houvesse envolvimento dos Confrades, como em outras Encarnações, o sacrifício de Geralda teria sido puramente acidental e sem sentido, ao contrário daquelas ocasiões. E a posse do DNA completo de Geralda traria a possibilidade de que ela fosse imediatamente clonada, eliminando um arriscado processo de tentativa e erro, que aconteceria com o uso dos fragmentos das aves aparentadas. Restaria a argumentação mística, contrária à manipulação dos nodos do espaço-tempo, que certamente não bastaria para convencer a Ordem, como não convencera Da Gong-ji e Ibrahim al-Dajaj.

Mesmo assim, Cockburn estava longe de ser convencido:

— Antes de tudo, tenho que conversar com aquele caseiro, e só a partir disso vou começar a formar uma opinião e uma estratégia. Continuo com a sensação de que estão faltando peças. Exatamente porque a história dos Csífodas é too neat. Na vida real, as coisas nunca se encaixam com tanta perfeição.

Combinamos de visitar o laboratório do Grande Empresário no dia seguinte, pela manhã. Quando me levantei, dava para ter, através dos vidros do quarto de hotel, a visão magnífica do Rio Negro, de vez em quando cortado por alguma lancha ou jet-ski, sob um céu muito azul e entre florestas muito verdes. Desci para o café da manhã. Cockburn, que, como bom inglês, gostava de hearty breakfasts, elogiou os quitutes regionais, principalmente o caldo de piranha.

Eu esperava que fôssemos de táxi até o laboratório, no distrito industrial de Manaus, do outro lado da cidade. Mas Cockburn anunciou que tinha alugado uma lancha, que nos aguardava no ancoradouro do hotel, e preferia levar um pouco mais de tempo, passeando pelo rio.

— Afinal, por que não fazer como os Csífodas, que sempre procuram casar os interesses de suas empresas com os de sua Irmandade? Quem sabe, vou expandir meus negócios além dos circuitos dos castelos ingleses e franceses, e trazer meus turistas para estes cenários tropicais?

Fiquei um pouco surpreso ao ver que não havia tripulantes, e que o próprio Cockburn pilotava a lancha. Aprendi na Marinha Real de Sua Majestade, disse ele. Acrescentando: e antes que você pergunte, nos navios em que eu servi não havia aquela tal barrica.

Passamos em frente ao centro da cidade, e chegamos ao porto próximo ao distrito industrial, onde um táxi nos esperava. Em poucos minutos, chegamos ao laboratório. Sempre estranho o distrito industrial de Manaus, povoado de indústrias limpas, sendo alguém tão acostumado a ver a poluição pesada da Cidade Industrial de Contagem, que eu avistava de meu caminho para a Universidade.

No laboratório, recebemos muitas explicações detalhadas sobre o trabalho com o sangue de Geralda, que ali tinha sido feito. O Grande Empresário nos avisara que os pesquisadores de lá não saberiam quem éramos, e pediu que fôssemos discretos a respeito. Para os pesquisadores, éramos apenas representantes de um grupo de possíveis clientes, o que era parcialmente verdadeiro.

Depois dessa visita, voltamos ao porto, e fomos de lancha até um restaurante flutuante, onde, por recomendação minha, saboreamos costela de tambaqui. Donald Cockburn curtiu o exotismo de um peixe cujas espinhas eram tão grossas quanto costelas de leitão, e não se intimidou diante da perfumada pimenta amazônica. Durante o almoço, contou histórias de sua passagem pela Marinha britânica.

Servira na Guerra das Malvinas, que ele, como todos os ingleses, chamava de Falklands. Naquela época, já pretendia dedicar a vida à Grande Fênix, e, já que tinha que fazer o serviço militar, procurou um posto de elite, que trabalhasse com alta tecnologia. Acabou servindo no HMS Invincible, como colega do Duque de York, o príncipe Andrew. Fez o melhor que pode, mas achava aquela guerra uma idiotice; coisa da Thatcher, que até então ele achava que estava a serviço dos Csífodas, na qualidade de Musa do Extremo Capitalismo, mas desde então lhe parece uma agente dos Outros, crença reforçada anos depois, quando reveladas as ligações da Dama de Ferro com Pinochet.  

Contou como temiam os aviões argentinos, com seus mortíferos mísseis Exocet. Aproveitei para comentar o caso do psicanalista de François Mitterrand, que alega ter recebido de seu paciente a informação de que entregara aos ingleses os códigos de desativação dos Exocet, para evitar que a Thatcher cumprisse a ameaça de detonar uma bomba atômica sobre Córdoba. Cockburn achou que, se Thatcher realmente trabalhava para os Adversários, a história era plausível. Comentou que, para sorte dos ingleses, o ditador argentino de plantão era um bêbado incompetente, que mandou para a guerra um Exército tão despreparado quanto a Aviação era perigosa. Nem botas de frio deram aos soldados; os médicos britânicos tiveram que amputar dedos dos pés de muitos prisioneiros argentinos.

Terminado o almoço, voltamos para a lancha. Avelino Falcão abriu uma caixa e tirou armas, pegando uma para si e entregando outra a Donald Cockburn. Eu confirmei que aquele tipo de armas não ia ter serventia para mim; se tivesse uma cartucheira, talvez eu conseguisse acertar umas caixas de marimbondo. Cockburn comentou que não esperava realmente que aquelas armas viessem a ter alguma utilidade, mas que a Guarda dos Falcões gostava de seguir todas as rotinas preventivas. Seja como for, disse ele, Falcão era um policial e ele próprio tinha sido atirador de elite na Marinha, de maneira que não fariam besteiras.

Passamos o Encontro das Águas, a linha que marca a fronteira entre as águas escuras do Negro e as águas barrentas do Solimões. A estação de coleta genética ficava a uns quantos quilômetros, Solimões acima. A lancha seguiu, e, depois de uns vinte minutos de viagem, Falcão comentou:

— Aquela lancha está atrás de nós há algum tempo. Parece que estamos sendo seguidos.

A lancha de que ele falava parecia moderna e equipada como a nossa, mas maior. Mantinha a mesma distância. À nossa frente, havia muitas ilhas, separadas por canais do rio. Cockburn disse:

— Vamos sair um pouco da rota e entrar nos canais, para ver o que acontece.

Entramos nos canais, e a lancha grande veio atrás. Voltamos ao braço principal, e ela também. Cockburn passou a Falcão a pilotagem da lancha, e foi para a popa com uma das armas, dizendo:

— Fiquem fora da linha de tiro deles. Vou mandar um aviso.

Cockburn atirou na água, de um lado e de outro da lancha, mostrando que só não acertou porque não queria. Responderam com dois tiros semelhantes e aumentaram a aproximação. Falcão acelerou nossa lancha, e eles aumentaram mais ainda. Cockburn atirou de novo, desta vez no casco da lancha grande. Responderam com dois tiros, que passaram bem perto dele. Cockburn disse:

— São dois atiradores. Desta vez, vou tirá-los do jogo.

Dois tiros, e tive a impressão de ouvir os gritos dos sujeitos que ele acertou. Impressão, é lógico, pois a distância e o barulho não o permitiriam. Houve alguns segundos de silêncio deles, e, em seguida, uma rajada de metralhadora. Cockburn continuou fleumático:

— Não podemos competir com isso. Temos mais chances se nos dividirmos. Avelino e Basileu, coloquem os coletes salva-vidas e pulem na água.

Só me ocorreu perguntar:

— Mas, e as piranhas? E os candirus[1]?

Foi a vez de Falcão responder:

— Eles só ficam perto das margens!

Em segundos, colocamos os coletes e pulamos juntos, para não nos separarmos na água. A lancha grande mandou mais fogo de metralha. Cockburn deu uma guinada, dirigindo-se para um canal. Aparentemente, pretendia fazer um slalom através dos canais, apostando em sua perícia como piloto e na maior agilidade de uma lancha menor.

A resposta da lancha grande foi um foguete. Cockburn desviou-se e evitou um impacto em cheio, mas onde pegou foi o suficiente para que nossa lancha começasse a pegar fogo. Sem dúvida, haveria outro foguete, e esse seria o fim.

Cockburn fez então o que eu nunca esperaria. Fez um cavalo-de-pau e partiu com a lancha diretamente em cima dos adversários. Segundos depois, as duas lanchas colidiram e explodiram.

Enquanto isso, flutuávamos na corrente do Solimões. Falcão havia tirado um aparelho de rádio de uma bolsa à prova d’água, e pedido auxílio. Minutos depois, chegaram três helicópteros. Falcão me disse:

— Um vai levá-lo de volta ao hotel. Outro vai investigar os restos do desastre e procurar corpos. Sobreviventes, duvido. Vou no terceiro até a estação de coleta.

Achei o helicóptero fantasticamente seguro, depois de tudo aquilo. Cheguei ao hotel, e fiquei em dúvida entre um Lexotan e um uísque. Acabei optando pelo uísque, concluindo que me deixaria em melhores condições para o que ainda pudesse acontecer naquele dia.

Umas três horas depois, Falcão apareceu no hotel. Contou que, de fato, não havia sobreviventes, mas a lancha tinha sido identificada como pertencente a piratas de rio. Do tipo que costuma estar interessado em cargas, e não em lanchas como a nossa. E nem costumam usar foguetes. Portanto, pareciam ter sido contratados para o serviço, talvez acompanhados de gente mais qualificada. Quanto a Cockburn, o corpo não tinha sido achado.

Quanto à estação de coleta, todos manifestaram muita surpresa como o acontecido. Duas horas antes, chegara uma lancha pequena, com desconhecidos que se identificaram como seguranças contratados. Disseram que tinha havido uma mudança de planos, e que os visitantes não poderiam se afastar de Manaus. Portanto, o Chefe solicitava que o caseiro fosse eles até Manaus, para conversar com os visitantes, levando a esposa, pois os forasteiros queriam falar com ela também. Assim, colocaram toda a família na lancha e partiram.

— É claro que essa lancha foi achada abandonada, e não há sinais de seus ocupantes. Acho que não voltaremos a ver esse caseiro, tão cedo.

***

Voltei para casa. Não tinha sido uma viagem das mais relaxantes, e tentei descansar dessa pequena extrapolação da rotina acadêmica. Mas fiquei esperando ansioso o contato de Avelino Falcão, para saber se ele tinha conseguido descobrir algum sentido naquilo tudo.

De fato, ele apareceu em minha casa, dias depois. Disse que tinha vindo conversar pessoalmente, pois era mais fácil do que tentar arrumar algum meio de comunicação suficientemente seguro. Achei um tanto exagerado, mas ele insistiu em fazer uma varredura eletrônica, antes de começara a falar.

Disse que o caseiro e sua família continuavam desaparecidos, e o corpo de Donald Cockburn não tinha sido encontrado.

— Provavelmente, foi levado para a margem. Aí, as piranhas, os jacarés...

Tinha dado uma prensa no Grande Empresário, daquelas de tough cop, de um jeito que ele mesmo não se julgava capaz de dar em um sujeito tão poderoso. A raiva ajudou. Mas o capitão de indústrias jurou de pés juntos que não tinha a menor idéia do que acontecera, e que estava igualmente perplexo. Argumentou que seria muita burrice da parte dele armar uma cilada tão espalhafatosa, dirigida contra um cidadão britânico, um policial federal e um conhecido cientista, e atraindo atenção e suspeitas para o negócio dele, que ele estava interessado em conduzir de forma a mais discreta possível.

No fim, Avelino Falcão teve que aceitar a argumentação do empresário, pelo menos por enquanto. Mas não deixou de pensar que, exatamente por ser estapafúrdia, a hipótese de envolvimento dos Confrades estaria bem disfarçada. Lembrei-me daquele caso do político mineiro: Ele diz que vai para São João del Rei porque quer que eu pense que ele vai para Barbacena; portanto, ele vai para São João del Rei, mesmo. Efeito Palimpsesto, dizem os xenoetólogos: uma narrativa que se apresenta em sucessivas camadas; na medida em que se raspa cada camada, emergem mais alguns aspectos até então escondidos. Como antigos pergaminhos, nos quais a escassez e alto do custo do material faziam com que os textos antigos fossem apagados e sobrescritos.

Finalmente, deu-me notícias da Ordem da Grande Fênix. A comoção tinha sido geral. Os Falcões estavam estabelecendo esquemas de segurança reforçados para os líderes restantes. O próprio Avelino Falcão julgara que situação de Mafalda Rosas era particularmente perigosa, pela proximidade aos eventos, e tinha sido executado um plano preparado pelo próprio Donald Cockburn. Ela tinha deixado o Brasil, e estava agora escondida, sob a proteção de uma sociedade ainda mais secreta e talvez tão poderosa quanto a Grande Fênix, e que devia a esta alguns favores. Não era a primeira vez, ao longo de muitos séculos, que alguém de destaque na Ordem recorria a esse refúgio.

Enquanto isso, Da Gong-ji, agora no comando da Ordem, pelo menos até a próxima sessão do Conselho Supremo, pretendia agir. Estava disposto a revirar o que fosse preciso para descobrir os assassinos de Donald Cockburn, e retaliar, se outra grande sociedade estivesse envolvida.

Neste ponto, Falcão perguntou o que eu achava de uma viagem à China. Da Gong-ji gostaria de ouvir minhas impressões, e, como fizera Cockburn anteriormente, retribuiria com informação. Se eu estivesse disposto, era só preparar as malas de novo, e embarcar.

O bom senso me dizia para, desta vez, ficar longe da Ordem da Grande Fênix e de seus nebulosos assuntos. O friozinho em certas partes da anatomia, também. Mas, como sempre, a curiosidade xenetológica falou mais alto. Poucos dias depois, embarquei rumo a Pequim.

 


 

[1] Minúsculo peixe amazônico, mais temido que as piranhas, por penetrar nos orifícios das pessoas. O  pior caso é quando ele entre na uretra; a remoção requer uma cirurgia complicada que, dizem, só os cirurgiões da Amazônia sabem fazer.

 

     

Anterior

Basileu

Próxima