O Grande Empresário

O magnata da indústria paulista nos recebeu em seu escritório, no último andar de um edifício moderníssimo, desses todos de vidro fumê, na Marginal do Pinheiros. O panorama alcançava até o prédio do campus da USP onde eu havia começado minha carreira acadêmica. O inglês do Grande Empresário era fluente, e era patente que sua educação e cultura estavam muito acima do baixo clero Csífodas, que era o que eu conhecia dessa gente. Sua tranqüilidade e cordialidade tinham toda aparência de serem reais, ao contrário da impressão que João Tupi passara. Ele realmente parecia alguém que nada tinha a temer, e por isso podia ser absolutamente franco.

Começou dizendo, sem maiores rodeios, que tinha sido ele o idealizador e comandante da operação de vigilância sobre Geralda, sendo João Tupi escolhido como operador simplesmente por ser de confiança, e pela feliz coincidência de que estivesse construindo uma casa exatamente no local da aparição da suposta Encarnação da Fênix. Coincidência ou nodo no tecido do espaço-tempo, como fez questão de lembrar, para mostrar que conhecia bem a interpretação que a Ordem daria ao fato.

Lembrou que, embora a Confraria estivesse bem longe de partilhar a visão religiosa da Ordem, ou aliás de qualquer outra religião, ela sempre considerara as Encarnações como eventos de grande importância histórica, que deviam ser monitorados de perto. Ele próprio se sentia muito honrado de ter desempenhado um papel que tocava a apenas um homem no curso de muitos séculos, como tocara aos ilustres confrades, o romano Marco Antônio e o Grande Eunuco Imperial chinês Sen Ku-liang.  Naturalmente, apenas para mencionar a importância histórica, sem querer reavivar ranços incompatíveis com a atual era civilizada, em que a Confraria mantinha excelentes relações com o comunismo chinês, e até a Ordem da Grande Fênix estava em paz com a Igreja Católica.

Já sabiam desde a Antiguidade que a Fênix, embora não fosse para eles uma divindade, não era uma ave qualquer, mas um ser dotado de poderes extraordinários, relacionados especialmente com a atividade sexual e a longevidade; os dois mais persistentes sonhos humanos, o que significa, na visão dos Csífodas, os de maior valor comercial, para colocar as coisas em termos bem francos. Até o início da Era Moderna, a Confraria julgava que as Encarnações acontecessem com intervalos de mil e trezentos anos, já que essa era a crença da própria Ordem. Mas, estando profundamente envolvidos nos Descobrimentos, quando os agentes da Ordem descobriram que havia Encarnações no continente americano, na metade desse período, os Confrades receberam essa informação logo em seguida. Assim como seus participantes no programa da bomba atômica americana não deixaram de ficar cientes, quando, por causa desse programa, a Ordem constatou que a próxima Encarnação seria na América do Sul, e não na do Norte, como se imaginara.

Naturalmente, depois da grande descoberta dos doutores Watson e Crick, a Confraria, tal como a Ordem, percebera que os segredos da Fênix tinham de estar codificados em seu DNA (“A propósito, dr. Cockburn, gostei de sua brincadeira com o nosso João Tupi. Interessante, o duplo sentido do dr. Watson: seria o J. de John, o do Sherlock, ou de James, o do DNA?”). E, claro, tinham acompanhado todo o programa de rastreamento do DNA da Fênix, empreendido pela Ordem. Pude perceber que Donald Cockburn não conseguiu dissimular o choque com a revelação; embora os serviços de espionagem e contra-espionagem da Ordem da Grande Fênix fossem superiores até aos das principais potências, isso parecia indicar que, como se diz em Minas Gerais, enquanto eles estavam indo com o milho, os Csífodas já estavam voltando com o fubá.

Cockburn mal conseguiu segurar o Gasp!, quando, na seqüência, o Grande Empresário contou como tinham aproveitado as visitas de Geralda ao canteiro de obra de João Tupi para retirar amostras de seu sangue. Sem dúvida, tinham feito isso com todos os devidos cuidados, contratando um veterinário da mais alta qualificação para essa simples coleta de material. Imaginava que tal idéia tivesse passado pela cabeça dos ilustres líderes da Grande Fênix, mas não fora realizada por causa de seus tabus religiosos.

Mas, uma vez que o que estava feito estava feito, não havia por que ocultar que, desde então, o DNA de Geralda viesse sendo objeto dos mais aprofundados estudados. Calhara que ele, o Empresário, fosse sócio de uma das multinacionais líderes em tecnologia, permitindo-lhe aliar, como freqüentemente acontece, o papel na Confraria com a própria atividade empresarial. E, como ia nos mostrar agora, o seqüenciamento do DNA da Fênix estava pronto!

Ligou um projetor e passou a mostrar as imagens gravadas no notebook em sua mesa.

— Não somos cientistas da área, meu prezado dr. Cockburn, mas aposto que reconhece pelo menos alguns dos padrões mostrados nas imagens, assim como eu mesmo aprendi a reconhecê-los. Uma vez passado um pequeno choque inicial, veja o lado positivo: aí está a confirmação definitiva, até para os céticos, de que no mínimo a Ordem estava certa na identificação dos ancestrais da Fênix... Realmente, parece o programa do Kwisatz Haderach[1]! Até eu fiquei arrepiado... Mas, agora, vamos à parte de que eu mais gosto: falar de negócios!

Donald Cockburn ficou lívido, visivelmente confirmando a autenticidade das imagens. Avelino Falcão, pela primeira vez desde que o conhecera, demonstrou nervosismo, refletindo o susto do líder. Nessa hora, tive que entrar na conversa:

— Se os senhores já tinham conseguido o DNA da Fênix, por que deixaram que o caseiro matasse a pobre Geralda?

—Não deixamos, professor Basileu. Esse foi realmente um infeliz acidente. Veja, o nosso bom e leal João Tupi tem, às vezes, o defeito de não pensar grande. O professor não se ofenderá, bem o sei, se eu comentar que essa é, talvez, uma característica mineira; diz a anedota: o fazendeiro paulista exagera o tamanho da fazenda para conseguir mais empréstimos, e o mineiro minimiza o tamanho da sua, para pagar menos impostos. Com tantos interesses grandiosos em jogo, o João tinha que ser sovina com a ceia de Natal de seus empregados! A mulher do caseiro ficou furiosa, e, só de vingança, convenceu o marido a comer a Geralda! Quando o João soube do acontecido, advertiu severamente o caseiro. Mas não era razão para mandá-lo embora por justa causa, e, além do mais, trata-se de um bom rapaz, que apenas foi influenciado por uma esposa vingativa, como acontece em tantas tragédias. Tanto assim é, que depois ofereci a ele um emprego: atendendo aos interesses dele, que agora está melhor remunerado, e aos nossos, retirando-o daquele cenário.

Minha intervenção deu tempo para que Donald Cockburn se recompusesse. De volta a seu jeito habitualmente tranqüilo, perguntou:

— E de que negócio se trataria, Senhor Confrade?

— Um negócio altamente satisfatório para ambas as partes. Por um preço justo, os senhores poderão comprar de nós esses dados, e, seja qual for o rumo de suas pesquisas futuras, partir de bases muito mais sólidas.

Donald refletiu um pouco, e respondeu, agora já bastante seguro:

— As imagens são convincentes, certamente. Mas, para estar realmente seguro, eu gostaria de ter uma conversa com o caseiro.

O sorriso do Grande Empresário se tornou mais largo:

— Sem dúvida, Dr. Cockburn, um Confrade experimentado não seria menos prudente! E sua condição me dará, pessoalmente, a oportunidade de lhes mostrar uma das jóias de minhas empresas de biotecnologia. Nosso laboratório em Manaus, onde parte desse trabalho foi feito. E, não longe de lá, nossa estação de coleta de material genético, em plena selva amazônica. É lá que nosso caseiro está agora empregado.


 

[1] No Universo da série Duna, concebido por Frank Herbert, uma programa de aperfeiçoamento genético conduzido pela ordem das Bene Gesserit, com o objetivo de produzir uma espécie de Messias ou Super-homem.

 

     

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