João Tupi

Basileu Xilóforo narrando, novamente. No dia seguinte, concordei em acompanhar Donald Cockburn e Avelino Falcão em uma visita ao escritório de João Tupi. A prudência me dizia para não me envolver nessa história, mas a curiosidade xenoetológica, como sempre, levou a melhor.

Tupi nos recebeu com um largo sorriso, semelhante ao de certos animadores de televisão, sorriso que continuaria a ostentar nos minutos seguintes. Lembrou que sempre tivera muito apreço por seu ex-vizinho, o professor Basileu, e afirmou que era um grande prazer receber os amigos do professor, principalmente porque lhe fora dado a entender que o assunto da visita era uma excelente oportunidade de negócio. Na realidade, nunca tínhamos tido maior contato, limitando-nos a eventuais cumprimentos de vizinhos; quanto ao possível negócio, eu não sabia do que se tratava, mas não deixei que isso transparecesse.

O suposto negócio ficou mais claro logo em seguida. O inglês de João Tupi não era dos melhores, por isso Donald Cockburn usou um bom espanhol, quando passou a tratar do objetivo da visita. Entregou a João Tupi algum material de sua agência de turismo, em que seu nome verdadeiro não era mencionado. Apresentou um cartão de visita com o nome de Dr. J. Watson, e contou uma história um tanto esdrúxula. Segundo ele, um de seus principais clientes na Inglaterra era um rico empresário do ramo imobiliário, entre outras várias atividades como acontecia com o próprio Tupi. Esse cliente seria bisneto de um diretor da velha St. John Del Rey Mining Company, e estaria interessada em recuperar a memória dos empreendimentos britânicos no Brasil, no século XIX e princípios do século XX.

Se o leitor nunca ouviu falar dessa companhia, ela foi fundada em 1830 para explorar o ouro na região de São João del Rei. Logo perceberam que esse ouro, abundante na época colonial, estava em vias de esgotamento, e, de fato, a mineração de ouro só voltaria ali nas últimas décadas, graças à tecnologia mais recente. A companhia mudou-se então para Nova Lima, onde construiu a grande e famosa mina de Morro Velho, atualmente propriedade da sul-africana Anglo-Gold Ashanti.

Segundo Donald Cockburn, o cliente teria ouvido do avô muitas histórias de caçadas nas serras mineiras, em época em que ainda era possível encontrar grande quantidade de tatus, coelhos, raposas, veados, onças, lobos guarás e seriemas. Essas terras tinham sido vendidas há muito tempo, mas o cliente estaria interessado em recuperar uma parte delas, para montar um empreendimento turístico diferente do convencional. Claro que não haveria mais caçadas, pois isso era politicamente incorreto, hoje em dia, e sim uma reserva ecológica em que aquelas espécies pudessem novamente prosperar. Como capitalista esclarecido, o cliente queria montar um sistema auto-sustentado, na forma de um eco-resort, a ser chamado de Seriemas’ Hideout, o Esconderijo das Seriemas. Cockburn viera procurar Tupi, pois apurara que parte dessas terras fazia parte de seu estoque imobiliário, e gostaria de saber do interesse do empresário brasileiro em associar-se ao empreendimento.

Era quase possível enxergar os cifrões nos olhos de João Tupi. Respondeu que sim, que de fato contemplava a possibilidade de investir no ramo dos resorts, como extensão natural de seus negócios imobiliários. Confirmou que, realmente, em alguns lugares dessas terras, ainda era possível encontrar seriemas, e que, com o investimento e o know-how adequados, certamente seria possível restaurar as condições ambientais do século XIX. E concordou que um empreendimento desse nível comportaria um hotel de cinco de estrelas e um restaurante de luxo, com direito a temporadas de grandes chefs internacionais.

Cockburn pediu então licença para uma pergunta relacionada com uma pequena excentricidade de seu cliente. Grande apreciador de venison, a carne de caça (embora, como bom ambientalista, se limitasse a consumir animais criados para o abate), o cliente era muito curioso a respeito de carne de seriema, que nunca provara.

Isso bastou para que o sorriso de João Tupi piscasse por um segundo, e fosse possível vislumbrar uma expressão de quem se põe mentalmente em guarda. Cockburn, como se não percebesse, mencionou a narrativa de meu livro, sobre como Geralda fora preparada pela mulher do caseiro, e servida aos pedreiros como se fosse um peru de Natal. Na maior cara de pau, perguntou se João Tupi havia chegado a provar do acepipe. Tupi respondeu com expressão condoída:

— Meu caro Dr. Watson, eu mesmo só fiquei sabendo do caso por alusões dos pedreiros, e só entendi o que o evento significava para certas pessoas, depois de ler a narrativa do nosso prezado professor Basileu. De qualquer maneira, mesmo sem saber desse suposto significado religioso, eu não teria concordado com tal depredação do meio ambiente. O caseiro e os pedreiros foram severamente advertidos, mas não se configurava motivo para despedi-los por justa causa, e o caseiro, afinal de contas, era um rapaz honesto e trabalhador.

Donald Cockburn retrucou com expressão igualmente hipócrita:

— Em todo caso, já ajudaria bastante a atender a esse capricho de meu cliente, se pudéssemos entrevistar o caseiro a respeito do episódio.

— Gostaria muito de ajudá-lo, Dr. Watson, e fiquei eu mesmo curioso, sob o enfoque gastronômico. Mas infelizmente não conto mais com os serviços desse caseiro. Ele me disse que tinha arrumado um excelente emprego em outra cidade, que não podia perder a oportunidade, e desde então não tenho mais notícias dele.

Neste momento, Avelino Falcão pediu licença para entrar na conversa. Começou mostrando a carteira da Polícia Federal, que foi recebida por João Tupi com um sobressalto quase imperceptível. Disse que o cliente do Dr. Watson era muito preocupado com a legalidade de seus investimentos no estrangeiro, e tinha amigos na Scotland Yard, que por sua vez eram amigos dele, Falcão, e haviam pedido que desse uma conferida nos dados do empreendimento em perspectiva.

João Tupi respondeu que, como cidadão e empresário, tinha todo o empenho em colaborar com as autoridades policiais, sempre que pudesse ser de alguma utilidade, o que raramente ocorrera até então. Falcão disse que logo teria oportunidade de prestar essa colaboração, quando fosse chamado a depor naquele caso em que uma de suas empresas estava envolvida em conhecido escândalo político.

Tupi, pela primeira vez, deixou transparecer a irritação, dizendo que, se aquela agradável conversação ia se transformar em um interrogatório policial, ele seria obrigado a aguardar a presença de seus advogados. Além disso, como já tivera oportunidade de dizer à imprensa, ela era um entre vários sócios daquela empresa, e não tinha a menor idéia da ocorrência de tais irregularidades, que não eram afetas à diretoria que exercia. E estava perplexo quanto a que relação esse assunto poderia ter com um empreendimento imobiliário que, até então, se afigurava promissor. Falcão respondeu:

— Sr. Tupi, infelizmente tem tudo a ver. Acontece que nós, da Polícia, estávamos querendo conversar com esse caseiro, já que, às vezes, caseiros podem ser excelentes fontes de informação sobre quem freqüenta determinada residência. Acontece que esse seu antigo caseiro simplesmente desapareceu, e com ele mulher e filhos.

— Dr. Falcão, isso para mim é novidade. Mas acredito, pois, como lhe disse, não tenho mais contato com ele há um bom tempo.

— Sr. Tupi, quando falo em desaparecer, quero dizer desaparecer mesmo. Por exemplo, localizamos os seus pedreiros, que por sinal acharam muito magro e duro o tal peru de Natal. Eles também nunca mais ouviram falar do caseiro, de quem tinham ficado razoavelmente amigos. Pior ainda: pais, irmãos e outros parentes do caseiro não sabem onde ele está. Segundo eles, o caseiro lhes disse que ia mudar de cidade, pois o senhor tinha arrumado um bom emprego para ele, e, desde então, igualmente não têm notícias dele. Estão muito preocupados, é claro. Diante disso, começo a achar que esse caseiro talvez tivesse realmente coisas muito importantes a dizer.

A resposta de João Tupi ainda foi desafiadora:

— Evidentemente, nada disso prova alguma coisa contra mim. E agora estou certo de que esta é uma conversa que deixarei para meus advogados.

Falcão respondeu, sem se alterar:

— Por enquanto, não o estou acusando de nada. Mas fico imaginando o que a imprensa pode especular. Queima de arquivo? De uma família inteira, mulher, crianças? Sabe, Sr. Tupi, sei que o senhor tem excelentes advogados, e, de fato, eu sinceramente recomendo que se faça acompanhar por eles, quando for chamado a depor sobre esse assunto. Afinal, podemos estar diante de um caso de assassinato, e dos mais escabrosos.

A postura de João Tupi, inicialmente cordial e amável, depois de passar rapidamente pela arrogância, agora refletia profundo medo. Foram talvez um ou dois minutos de silêncio, que Falcão tratou de acentuar envergando a expressão adequada de interrogador policial. Finalmente, com o suor já lhe cobrindo a testa, João Tupi disse:

— Senhores, pensando bem, acho que me lembrei de alguma informação que lhes poderá ser útil. Mas não estou autorizado a divulgá-la, e gostaria que me dessem algumas horas para consultas. Entro em contato com os senhores ainda hoje.

Para minha surpresa, Falcão aceitou imediatamente a proposta, e passou-lhe o número do celular. À noite, saboreávamos uma bela comida mineira num restaurante (mas nada de frango, seja ao molho pardo ou com ora-pro-nóbis), o celular de Falcão tocou. O delegado atendeu e passou para Donald Cockburn:

— É para você.

Terminou uma garfada e acrescentou:

— Quer falar com o Dr. Cockburn. Acho que fomos descobertos.

Donald conversou algum tempo em inglês e, terminada a ligação, disse:

— Não era João Tupi, e sim o chefe dele.

Fiquei surpreso:

— Chefe? E onde é que um empresário como João Tupi tem chefe?

— Na Confraria de Csífodas, é claro. Disse que vai receber-nos e nos dar uma série de informações de nosso interesse, desde que deixemos em paz o Sr. Tupi. Concordei, é claro, pois adivinhem quem era.

E pronunciou o nome de um dos expoentes do empresariado paulista, desses que, volta e meia, aparecem nos jornais de televisão a pontificar sobre o que o Governo deve ou não deve fazer, para que o país volte a crescer. Um sujeito tão importante, em suma, que, para evitar problemas, vou designar simplesmente como O Grande Empresário. Donald continuou:

— Basileu, certamente você não vai querer perder esta oportunidade, não é? Faça uma maleta para vários dias, pois duvido que nosso assunto com ele se esgote em uma única reunião. Avelino, precisamos de lugar em um vôo para São Paulo, amanhã de manhã. Na realidade, nosso amigo ofereceu um jatinho para nos buscar, mas, seguindo as orientações de Giacomo Falcone, achei melhor viajar em vôo comercial...

Falcão respondeu, sarcástico:

— Os Falcões são sempre precavidos... E não nos esqueçamos de pagar alguma coisa com cartão de crédito nos aeroportos daqui e de São Paulo. Nessas situações, é bom deixar muitos rastros... Quando há gente desaparecendo...

E, virando-se, para mim:

— Não se assuste, professor Basileu. Brincadeirinha de velho policial.

 

     

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