O Conselho Supremo

Mesmo para um xenoetólogo, profissional do estudo dos comportamentos inusitados, não deixa de ser inusitadíssimo o emprego da tecnologia mais de ponta a serviço de uma crença literalmente milenar. Mas, ainda que incrível, era o que Donald Cockburn estava contando: como há pouco tempo o Conselho Supremo da Ordem da Grande Fênix se reunira para discutir uma possível autorização para pesquisas cujo objetivo final era a clonagem da Fênix.

Como sempre acontece com as reuniões formais do Conselho, esta acontecera durante um solstício. Solstícios e equinócios têm especial significado para a Ordem, assim como para outras religiões, inclusive o cristianismo. Sempre tendo como referência o Hemisfério Norte, o solstício de inverno, que é o Natal cristão, representa o nascimento da Fênix; o equinócio da primavera, que para os cristãos é a Páscoa, equivale ao vôo da Fênix para seu lugar de reinado; o solstício de verão, que deu origem às festas de São João, representa o acasalamento da Fênix, ocasião de grande orgias sagradas, como acontecia nas antigas festas juninas; e o equinócio de outono representa o sacrifício da Nobre Ave, que corresponde à festa de São Miguel, o Vencedor do Inimigo. Cá na Tropicália, onde tudo é mais light, o Michaelmas europeu tradicional cedeu espaço para a festa de Cosme e Damião, tidos por padroeiros das crianças.

Mas, quanto ao local, que deveria ser a sede londrina, resolveu-se transferir para uma sede alternativa, pelas razões de segurança que Donald havia mencionado. E lá se encontraram os líderes da Grande Fênix, sob forte proteção da Guarda dos Falcões. Mas prefiro que o acontecido seja narrado nas palavras do próprio Cockburn.

***

Basileu, como eu estava dizendo, cheguei ao castelo onde se esconde a Sede Alternativa, vindo da estação de trem em curta viagem de carro. Uma caminhada não me levaria mais que alguns minutos, mas Giacomo Falcone, nosso zeloso chefe da Guarda dos Falcões, não quis correr risco algum, e me levou de carro. Na sala secreta onde as reuniões acontecem, esperavam-me os líderes de nossa Ordem nos outros continentes. Com exceção, é claro, de nossa querida Mafalda, a quem os médicos terminantemente proibiram a viagem, ainda por causa da depressão pós-Tragédia, da qual você é testemunha. Essa infeliz circunstância, como verá, nos custou caro.

Mas lá estava Connie Millet, líder da América do Norte, minha adversária do dia. E também Gloria León, líder da América Central, minha única aliada garantida. Portanto, eu precisava do apoio de pelo menos um dos líderes restantes, da Ásia e da África. Participavam também Giacomo Falcone e nosso anfitrião, Pierre Lecoq, meu vice-líder na Europa; ambos me davam total apoio, mas nenhum deles tinha direito a voto.

Sim, Gloria é aquela conhecida atriz de telenovelas mexicanas. Você estranha porque o México fica na América do Norte, mas, na geografia da Grande Fênix, o sul do México, região maia e não asteca, conta como América Central. Gloria é do Yucatán.

Naturalmente, como em toda reunião que se preze, gastamos os primeiros minutos com amenidades sociais. Connie estava radiante porque a tecnologia do DNA tinha acabado de confirmar uma velha lenda da família dela: de que eram descendentes de Jonathan Hawke, nosso homem na Revolução Americana, um dos convencionais de Filadélfia. Sabia-se que Hawke havia tomado como amante a Betsy, sua escrava favorita. Um belo dia, Betsy apareceu grávida, e imediatamente casou-se com John Henry Millet, um mulato liberto que servia de capataz a Hawke. Diz-se que a criança era de Hawke, assim como os filhos que nasceram depois, com a complacência de Millet; que, por sua vez, se ocupava em não deixar no prejuízo a Mrs. Hawke, a esposa oficial. Tomando precauções, é claro, ao contrário do patrão, pois se os filhos clarinhos de Millet eram apenas assunto de fofocas, filhos moreninhos de Hawke teriam provocado violentas reações. Da sociedade da época, não de Hawke, é claro,  pois todos os quatro eram de nossa Ordem.

Pode-se dizer que já comecei a reunião em desvantagem, pois, enquanto eu estava abatido com as dissensões da Ordem, a ausência de Mafalda e as demais preocupações, Connie estava alegre, e mais entusiasta do que nunca, quanto ao uso da tecnologia genética. Mas entrei no assunto, e ponderei todas as razões pelas quais era contra a idéia da recriação artificial da Fênix.

Primeiro, estávamos muito longe de entender todos os contornos sociais e históricos da Tragédia, para que pudéssemos fazer alguma projeção de seu significado; até hoje havia pontos teológicos não completamente resolvidos, acerca das Encarnações anteriores. As Tragédias provocadas por Júlio César e Cublai Cã tinham, na realidade, implicações historicamente magnas, como especulavam até os cientistas agnósticos. Sim, claro que citei você, Basileu; em reuniões de crentes, é sempre de bom tom citar cientistas céticos para embasar nosso ponto de vista. Talvez precisássemos de décadas ou séculos para começar a apreciar para onde o Espírito Imanente do Universo nos direcionara com esse Sacrifício.

Além disso, uma coisa era usar a tecnologia de forma puramente analítica, para procurar os rastros da Fênix. Outra era dar o salto no escuro de tentar manipular as forças mais poderosas do Universo, para tentar reproduzir in vitro eventos de escala cósmica. Seria como a comunidade de Física tentar criar buracos negros ou matéria estranha[1] em laboratório.

E, finalmente, isso certamente significaria a guerra aberta com a facção da Verdadeira Fênix. Lembrei que eles tinham ficado ainda mais radicais depois da Tragédia; tinham chegado ao cúmulo de praticar vandalismo no artigo da Wikipedia sobre Chicken, que agora tinha de ser protegido pelos editores. Mas, por mais irracionais que fossem, não podíamos desviar recursos para uma guerra fratricida, quando inimigos tão perigosos nos rondavam.

Gloria secundou meus argumentos de forma veemente. Aliás, veemente demais, até estridente, e preferia que não o tivesse feito. Connie esperou com um sorriso irônico que ela terminasse a tirada, e expôs sua argumentação, com a tranqüilidade e o poder de convencimento de uma professora experiente.

Segundo ela, as diferenças com as Encarnações anteriores eram patentes; a Nobre Ave havia sido acidentalmente sacrificada por desconhecidos. Em todos os outros casos historicamente registrados, o autor do sacrifício era um potentado, ainda que inimigo, como César e Cublai; e mesmo as misteriosas encarnações na América pré-colombiana estavam associadas a eventos portentosos. Chegou a invocar meu testemunho, como único outro dos presentes que conhecia detalhes da Encarnação norte-americana. Tive que concordar.

Quanto aos potenciais perigos, Connie lembrou que os grandes laboratórios de física não excluíam a possibilidade de eventos catastróficos, mas haviam promovido estudos que demonstraram ser desprezível a probabilidade de que tais eventos acontecessem na prática. O projeto proposto compreendia primeiro o desenvolvimento de linhagens de células, e não havia razões para se supor que o primeiro animal a ser clonado já fosse a Fênix; portanto, haveria tempo suficiente, talvez até décadas, para avaliar devidamente os prós e os contras. Por outro lado, havia também muitos riscos em as coisas como estavam, e aguardar 650 anos pela próxima Encarnação.

Quem sabe o que seria da Terra até lá? Havia mil hipóteses, pessimistas e otimistas, do efeito estufa à singularidade tecnológica[2]. Não sabíamos nem se o ciclo recomeçaria na África, ou se a Oceania contava, e a Fênix se encarnaria em um emu, ou talvez, apropriadamente, em uma ave-do-paraíso. E não se podia excluir a Antártida, pois o que impediria a próxima Nobre Ave ser um pingüim? Ou, quem sabe, poderia se encarnar entre as aves de uma colônia humana em outro planeta?

Finalmente, quanto à Verdadeira Fênix, Connie apelou para o discurso que usava a serviço de seus clientes republicanos (pouco importando se não tinha feito o mesmo ao citar o efeito estufa). Disse que os membros dessa facção são terroristas, que devem ser tratados com dureza e não com apaziguamento, e que eles já haviam feito mal suficiente a nossa Ordem, para que houvesse algum cabimento em considerar as crenças deles.

Mesmo com o persuasiva argumentação de Connie, eu tinha esperança de conseguir uma decisão favorável já com o voto de Da Gong-ji, líder da região asiática. Amigo de longa data, eu costumava chamá-lo pelo apelido de Big Cock, que é o significado do nome dele. A expectativa favorável pareceu confirmar-se quando ele começou dizendo que não concordava com Connie que a Tragédia de Geralda tivesse sido um mero acidente. Ele achava perfeitamente plausível a teoria (sua, Basileu) de que o Sacrifício nas mãos de pedreiros e caseiros simbolizasse a Ascensão do Proletariado. Afinal, Gong-ji é oficialmente comunista, e mantém boas relações com o governo da China.

Mas, como bom comunista chinês da atualidade, Da Gong-ji é também pragmático e encantado com a tecnologia. Disse que, por outro lado, concordava que, uma vez que tínhamos tecnologia genética de ponta, era cabível que esse conhecimento fosse explorado em benefício do progresso de nossa causa. Assim, não via problema em dar os primeiros passos no projeto de clonagem da Nobre Ave, uma vez que era possível tratá-lo de forma científica, atentando em cada passo aos eventuais perigos.

Quanto à Verdadeira Fênix, Gong-ji manifestou discordância em relação à posição de Connie de tratá-los como terroristas. Mas argumentou que essa facção era um problema interno da região européia, que devia ser resolvido dentro desta região, e que não era justo que o progresso de toda a Ordem fosse retardado pela política interna de um continente.

Foi uma ducha de água fria, mas eu apostava também na posição de Ibrahim al-Dajaj, o egípcio que lidera a região africana. Ibrahim é o membro mais velho e mais conservador do Conselho, e representa nossa região também mais antiga e conservadora. Anteriormente, ele tinha objetado também à substituição da leitura das entranhas pela pesquisa de DNA, e não era de se esperar que fosse se entusiasmar com os argumentos de Connie.

De fato, Ibrahim começou observado que, pessoalmente, a idéia de sintetizar a Grande Fênix lhe causava repulsa. Mas concordava também com Gong-ji que, embora fosse inadequado tratar a Verdadeira Fênix como um grupo terrorista, tratava-se de questão interna da região européia. Por outro lado, havia o aspecto histórico e social a ponderar.

Concordava com Connie que a última Encarnação parecia ter sido desperdiçada em um trágico acidente, e que, em sua região, os irmãos de Ordem se sentiam com esperanças despedaçadas. Lembrou que os irmãos africanos esperavam por um grande líder, capaz de rivalizar pelo menos com César, senão com Ramsés, principalmente nos dias de hoje, em que se sentiam profundamente ameaçados pelo recrudescimento do fundamentalismo islâmico.

Emocionado, Ibrahim disse que, se havia alguma esperança messiânica, ainda que envolvendo o uso de tecnologia, os irmãos africanos não aceitariam uma recusa pura e simples. Portanto, por menos que a manipulação de DNA lhe agradasse, era forçado a concordar pelo menos com a abertura do projeto, em paralelo com o aprofundamento do estudo dos aspectos doutrinários.

Com a votação inevitavelmente perdida, lancei a cartada que já tinha preparado. De meus estudos de História, eu me tinha lembrado da artimanha de Tokugawa Ieyasu, senhor de Edo e futuro  xógum. Tokugawa tinha sido nomeado pelo ditador Toyotomi Hideyoshi para um Conselho de Regentes, formado pelos cinco daimyo mais poderosos do Japão, para governar o país durante a menoridade de seu filho Toyotomi Hideyori. Ao perceber que seria derrotado em uma votação e poderia ser forçado a se suicidar, Tokugawa renunciou ao Conselho, que ficou sem quorum e impossibilitado de deliberar até que um substituto fosse escolhido; com isso, ganhou prazo para montar uma contra-ofensiva e derrotar em batalha o partido dos Toyotomi.

Comuniquei, portanto, que, uma vez que não concordava com o projeto de clonagem, sentia-me obrigado a renunciar a meu posto como Arquigalo, líder da Europa e do Conselho Supremo. Connie foi a primeira a perceber as implicações, e só nesse momento seu sorriso se transformou em expressão de raiva. Pelas nossas regras, o quorum mínimo era de cinco conselheiros, e, com Mafalda ausente, restavam apenas quatro. Meu sucessor natural, Pierre Lecoq, só poderia assumir oficialmente a liderança européia no próximo solstício; até lá, era apenas um encarregado interino, chefe de fato da Europa, mas sem direito a voto. Eu acabava de ganhar mais seis meses para agir.

Restava escolher quem presidiria o Conselho durante os próximos seis meses. Normalmente, isso caberia a Ibrahim al-Dajaj, na qualidade de decano. Mas Ibrahim argumentou com a difícil situação de seu setor, circunstância que o estava obrigando a viver no exílio. Sugeriu então o nome de Da Gong-ji, dadas as posições extremas adotadas por Connie e Gloria.

Isso aconteceu, Basileu, há poucos dias atrás. E minha ação já começou. É por causa dela que estou aqui.


 

[1] A matéria estranha contém os quarks chamados de estranhos, ausentes da matéria normal. Algumas teorias consideram que esse tipo de matéria é mais estável que a matéria normal, e que, portanto, uma única partícula dela poderia catalisar a conversão explosiva de todo o planeta em matéria estranha. Paranóicos de plantão, se vocês queriam mais um motivo para se preocupar com o fim do mundo...

[2] Conceito segundo o qual, a partir de certo ponto no futuro, a mudança tecnológica será tão radical que é impossível prever qualquer coisa depois disso.

 

     

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