Os Visitantes

Quem me ligava ao celular era ninguém menos do que Mafalda Rosas, minha grande amiga, velha conhecida dos leitores do outro livro. Sabem esses que Mafalda era altíssima Sacerdotisa da Grande Fênix. Aliás, a líder da Seita na América do Sul, integrante de seu Conselho Supremo. Também sabem que Mafalda era a guardiã designada de Geralda, a suposta Fênix, e que ela sofreu terrível abalo emocional, quando da tragédia geraldina. De tanto desgosto, Mafalda até mudou de cidade, e não vinha para meus lados, há algum tempo.

Pois Mafalda anunciava que estava no pedaço, que me visitaria à noite, e traria alguns amigos. Não especificou quem fossem, pelo que imaginei pessoas de seu novo círculo de relacionamento. Não pensei muito no assunto, e simplesmente tratei de providenciar uns vinhos e queijos, que sempre são apreciados por Mafalda.

Quando chegaram, constatei que o objetivo do mistério de Mafalda era o de me fazer uma surpresa. Eram dois amigos homens, e um deles, de fato, eu não conhecia. Mas o outro era também um conhecido dos antigos leitores: Donald Cockburn, superior imediato de Mafalda, o Arquigalo, ou seja, o máximo Líder Mundial da Grande Fênix. Lá estava ele, quase exatamente como o conhecera algum tempo antes: aparentando quarenta e poucos anos, bem louro e um pouco calvo, de baixa estatura para um inglês. Para os clientes da agência de turismo dele, era apenas um guia como qualquer outro, um bocado mais erudito por ter um doutorado em História, mas, essencialmente, um bom contador de casos. Jamais desconfiariam de que se tratava do chefe de uma das organizações mais poderosas do planeta.

O outro me foi apresentado como Avelino Falcão, também sacerdote da Grande Fênix. Na vida real, delegado da Polícia Federal brasileira. Reconheci imediatamente que era do Corpo de Segurança da Ordem; não só pela profissão e pelo tipo físico, mas principalmente pelo sobrenome. Falcão, Falcone, Hawke, Falk: todos são nomes usados pelos descendentes de uma numerosa família que, ao longo das eras, tem fornecido os responsáveis pelos assuntos de segurança da Seita, formando a corporação conhecida como Guarda dos Falcões. Bastou a presença dele para que eu entendesse que, apesar dos sorrisos que todos exibiam, algum problema bastante sério estava por trás dessa visita.

Depois de um tempo adequado dedicado a amenidades e abobrinhas, e estando todos nós com línguas e cérebros lubrificados pelo vinho, Donald passou a me colocar a par de alguns acontecimentos recentes de sua Ordem. Antes, claro, como das outras vezes, me fez prometer que só divulgaria o que fosse por eles autorizado, quando fosse. Naturalmente, existe um lado bem desconfortável em saber segredos de uma Ordem tão poderosa e com inimigos igualmente poderosos, mas não serei aqui hipócrita de dizer que a ânsia do saber científico é que me obrigava o ouvi-los. Era curiosidade mesmo, pura e simples, mas com o tempero especial de ser um dos pouquíssimos a saber de segredos tão portentosos.

Segundo me disse, a Ordem da Grande Fênix vivia um momento de grave crise interna, simultânea com o recrudescimento da ameaça dos inimigos externos. No caso destes, não tanto as religiões monoteístas, principais adversárias do passado; as relações com a Igreja Católica, por exemplo, estavam estabilizadas, até em nível razoavelmente cordial, considerando-se todo o sangue já derramado em dois milênios de combate. Mas havia sinais ameaçadores de outras Sociedades Secretas, principalmente do inimigo que compartilhavam com os Xilóforos: a terrível Confraria de Csífodas. Havia também os Outros, mas destes Donald Cockburn pouco falou. A Ordem parece temer a esse grupo muito mais do que aos Csífodas, e até falar sobre eles é considerado tabu.

— Veja só, Basileu: você mesmo é uma das provas de nossa vulnerabilidade. A localização de nossa Sede Mundial deveria ser conhecida apenas de nossos escalões superiores. No entanto, você não teve muita dificuldade em lá chegar.

— Ora, respondi, você sabe que não fui eu quem descobriu esse endereço.

— Claro. Você o recebeu do sobrinho do Professor Fuk Yu-meng, que por sua vez o recebeu de Don Tommaso Menefrego, que devia um favor a esse sobrinho. Se um chefe mafioso dispõe desse segredo, por que não o haveria de vender a outros, como os Csífodas?

— Pelo que me disseram na época, os antepassados de Don Tommaso há séculos observavam a Ordem, como agentes da Inquisição. Por que não vazaram o segredo antes?

— Certamente, porque não sabiam o local desta Sede. Que foi transferida para a Inglaterra, há poucos séculos, exatamente por ser um país fora do alcance da Inquisição. Portanto, o vazamento de agora é um fato novo. Talvez indique uma infiltração, o que é ainda mais grave.

Às vezes, pergunto-me se foi muito sensato recorrer aos préstimos de gente como Don Tommaso para conseguir essa informação. Espero que ele não esteja achando que agora eu lhe devo uma, e apareça para cobrar. Desconfortável, perguntei:

— E vocês suspeitam de alguém? Por exemplo, da Verdadeira Fênix?

— De maneira alguma. O cisma deles é um dos nossos sérios problemas internos, mas eles romperam conosco exatamente por serem muito mais ortodoxos. Eles não aceitam sequer nosso diálogo com as religiões e com outras sociedades não-adversárias; jamais negociariam algo com o Crime Organizado ou com os Csífodas.

Outra lembrança desagradável: de como, ao ser reconhecido como penetra na Sede, fui detido pelos Falcões, suspeito de ser um agente dessa tal Verdadeira Fênix, e talvez só tenha escapado ileso pela presença de Mafalda Rosas. Na época, Donald Cockburn atribuíra a esse grupo radical vários atos terroristas, tanto contra grandes cadeias que vendiam comida feita com aves, como a KFC e a Wienerwald, como contra a Ordem-Mãe, como o ataque a um laboratório subterrâneo em Veneza, que teria causado o incêndio do famoso Teatro La Fenice.

Nunca havia encontrado na vida real algum membro dessa Verdadeira Fênix, e não sabia se eles realmente existiam, ou se eram uma cortina de fumaça, com o objetivo de encobrir algum aspecto ainda mais secreto da Ordem. Também, é verdade, eu nunca havia encontrado um representante daqueles que eram chamados de Adversários; porém desses, por alguma estranha razão, eu não me sentia duvidando da existência. De qualquer maneira, perguntei a Donald:

— Pode-se considerar que o ataque ao laboratório em Veneza é uma das causas dos problemas que aconteceram depois?

— Eu não diria isso. Tínhamos duplicatas em outros lugares, e isso pouco afetou nossas análises. Lamentável foi ter chamado a atenção da Polícia e, é claro, o dano ao próprio Teatro. Mas, novamente, podemos nos orgulhar da reconstrução dele.

— Vocês tiveram algo a ver com isso? perguntei, mais uma vez surpreso.

— Claro. Somos provavelmente os maiores mecenas do Teatro, evidentemente através de prepostos. E assim tem sido desde o Século XVIII: três incêndios, três reconstruções, e sempre nós à frente. O nome não é por causa dos incêndios; o oposto é que deve ser mais verdade. É um lugar de grande carga simbólica para nossa Ordem.

— E mesmo assim a Verdadeira Fênix o destruiu?

— Certamente, não era essa a intenção deles. Queriam apenas sabotar o laboratório sob o Teatro. Acham que temos que continuar a procurar os sinais da Fênix examinando entranhas de pobres aves sacrificadas, penosamente[1] para nós e para elas. Eles rebatem, dogmáticos que são, que sacrificar significa precisamente tornar sagrado. Tenho que concordar com vocês, agnósticos, que religiosos são, às vezes, a pain in the ass... Mas, enfim, no momento nem são eles o maior problema interno, e sim uma escola de pensamento oposto. Você se lembra dos demais membros do Conselho Supremo, que estavam presentes na cerimônia em que você penetrou?

Eu me lembrava, mas não tinha visto o rosto de nenhum deles. Além de Donald, havia outros dois homens, com máscaras que lembravam uma íbis e uma espécie de pato chinês. Além de Mafalda, duas mulheres, uma com máscara de águia, outra com uma estranha máscara cheia de penas de um pássaro magnífico, que imaginei ser um quetzal, mas que também lembrava uma serpente.

— Pois a águia é a líder de nossa Ordem na América do Norte, Connie Millet.

Mais uma surpresa. A famosa Connie Millet, ex-reitora de uma das mais conceituadas universidades americanas, e atualmente conselheira de políticos republicanos, uma líder da Ordem! E que estranha coincidência no nome, para uma afro-americana no Conselho Supremo da Grande Fênix: millet significa painço, cereal que, na África, é um dos principais alimentos humanos, mas no Estados Unidos, tal como no Brasil, é geralmente usado como comida de aves.

Neste ponto, Mafalda interrompeu um longo silêncio, para dizer quase que com asco:

— Até hoje não entendo como uma reaça dessas chegou ao nosso Conselho Supremo!

Evidentemente, não se bicavam[2]. Donald respondeu calmamente:

— Vamos lá, Mafalda, os norte-americanos, como qualquer outro continente, têm autonomia para escolher o líder deles. Já fizeram escolhas piores. De qualquer maneira, quando Connie foi escolhida, achamos que ela daria um impulso importante ao nosso projeto de identificar a Fênix rastreando o DNA das aves, em lugar de esquadrinhar vísceras dos pobres pássaros.

— Mas, que eu saiba, Connie é cientista política, e não bióloga, interrompi.

— Certamente. Mas algumas das principais contribuições dela como pesquisadora são no terreno das armas biológicas, o que é, como você deve saber, o assunto que a levou ao papel de assessora de certos políticos. Além disso, a universidade dela é uma das melhores do mundo em pesquisa genética, e Connie, astuta como é, conseguiu alinhar as linhas de pesquisa deles com os nossos interesses. E usava seu domínio da ciência política para analisar as circunstâncias sociais e geopolíticas, tão importantes para a Missão da Nobre Ave quanto os aspectos biológicos.

— Então, pelo menos para vocês, ela parece ter tido um papel bem positivo, emendei eu, que também tinha bastante antipatia pela linha política de Connie.

— Até certo ponto, sim. Mas, depois da Tragédia, Connie passou a propor um novo rumo, do qual discordo completamente. A Tragédia, no caso, é como costumamos nos referir ao trucidamento da Fênix pelos pedreiros do seu vizinho, pois o horror da lembrança leva nossos Irmãos a tais circunlóquios. Connie argumenta que há um momento geopolítico e tecnológico ímpar: de um lado a globalização que esboça os primeiros contornos de um Estado Mundial. De outro, a engenharia genética, que permitiria ao Homem, pela primeira vez em toda a História, recriar a Fênix a partir de seu DNA!


 

[1] Provavelmente, o leitor já sabe, mas lembro mais uma vez: em inglês, não é trocadilho.

[2] Novamente, sem intenção de trocadilho infame.

 

     

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