Mais Genes da Fênix

Iuquico, no linguajar mineirês, não é nome de algum travesti nissei, mas sim a apócope de Iuquicoteincõíss?, expressão de dúvida quanto ao interesse do locutor no assunto em pauta. Um equivalente mais sem educação é Iucucascarça?

Respondo: se o leitor cá está, suponho, é porque algum interesse tem nos eventos e sucessos relativos à milenar e secretíssima Ordem da Grande Fênix. Caso tenha lido minha narrativa anterior, saberá como vim a travar contato com essa misteriosa religião, que, como mencionado há pouco no Prólogo, acredita nas periódicas Encarnações da Fênix, e no Sacrifício que essa ave fabulosa faria pela Humanidade, em cada uma de suas vindas. Ocorre que, segundo a teoria deles, a Última Encarnação aconteceu há bem pouco tempo, precisamente aqui nas montanhas centrais de Minas Gerais. Mais precisamente ainda, em minha vizinhança, na forma de uma seriema chamada Geralda.

A Ordem se opõe às religiões monoteístas, seus adversários de muitos séculos, que eles preferem chamar de transcendentalistas; ou seja, aqueles que acreditam numa Divindade que transcende o Universo, que o criou e talvez o destrua, que tem personalidade própria, e que pode julgar, premiar ou castigar suas criaturas. Pelo contrário, a Ordem acredita em um Espírito Imanente, uma espécie de Alma do Universo, do qual a Fênix é apenas uma manifestação material, e cuja Encarnação é uma espécie de nodo no tecido do tempo. Se o leitor não entendeu muito bem, nem eu, mas é por aí.

Por isso, a Fênix seria uma espécie de ponto de concentração da força vital que se manifesta na biosfera; um pouco como pedacinhos de chocolate puro dentro de um bolo de chocolate, pontos de chocolateza concentrada dentro da chocolateza difusa do bolo. Ora, a força vital se expressa no duplo impulso que torna a biosfera tão impetuosa, preenchendo a Terra de forma quase explosiva onde há um mínimo de condições favoráveis, e ocupando-a mesmo quando as condições são esmagadoramente desfavoráveis, no interior de rochas, geleiras, fontes escaldantes ou dejetos radioativos.

O duplo impulso tem por faces a sobrevivência individual e a sobrevivência da espécie; por uma, o indivíduo tenta prolongar ao máximo a própria existência, por outra tenta criar indivíduos similares que preservem pelo menos alguns de seus traços, quando esgotados os limites da existência individual. Segundo a Ordem, a Fênix concentraria esse duplo impulso, em grau máximo em ambas as faces: na longevidade multissecular; e na sexualidade exacerbadíssima, que leva a Fênix a copular copiosamente com aves de todas as espécies, espalhando os genes por toda a sua área geográfica.

Por tal raciocínio, considerando-se que as aves descritas nesta narrativa são originárias de uma região que, alegadamente, foi visitada pela Fênix em pessoa há muito pouco tempo, uma explicação para a libido desenfreada de Itamar e congêneres seria a sua descendência da Nobre Ave. Que, mesmo sendo uma seriema, poderia ter fornicado com um avô ou avó de Itamar (pois não se sabe se Geralda era macho ou fêmea). Alegações extraordinárias demandam provas extraordinárias, e claro está que a Navalha de Occam imediatamente descarta tal teoria, a menos de comprovação material e cabal.

Mas, sendo um xeoetólogo, trabalho com a Navalha de Freud que, ao contrário do Princípio da Parcimônia, usado pelas ciências duras, não requer a opção pela hipótese mais simples, mas apenas por aquela que, sendo minimamente plausível, seja também a mais interessante. Para se aceitar a viabilidade de uma Fênix, pelo menos como hipótese provisória, não é preciso sequer acreditar em Espíritos do Universo ou similares entidades imateriais. Basta supor que certos genes possuam extraordinário potencial de perpetuação e reprodução e que, por mecanismos ainda não entendidos, tais genes apareçam em uma linhagem de aves que abrange múltiplas espécies, em múltiplos lugares e épocas, com múltiplos nomes: Bennu, Foinikos, Fenghuang, Huma, Garuda, Quetzalcoatl... Está até na Bíblia: Eu dizia: Morrerei em meu ninho, meus dias serão tão numerosos quanto os da fênix. (Jó 29,18). Hmmm... essa passagem da Bíblia tem aspectos curiosos. Aliás, todo o Livro de Jó.

Supondo ainda que tais genes existam, não poderiam eles ser considerados como a Verdadeira Fonte da Eterna Juventude? Teria Ponce de León sido atraído às selvas e pantanais da Flórida pelos longínquos ecos dos misteriosos eventos que, segundo a Ordem de Grande Fênix, teriam sucedido no Yucatán, quase um milênio antes? Seria a Fênix o verdadeiro Doce Pássaro da Juventude?

Se houver uma mínima base factual para tais conjeturas, uma conclusão óbvia seria o imenso valor dos Genes da Fênix. Imaginem, dispor de um fator de origem natural, aperfeiçoado por milhões de anos de evolução, para realizar o sonho da Vida Longa e Próspera, simbolizado na Saudação Vulcana, por sua vez inspirada em antiqüíssima bênção judaica! O que a Indústria Farmacêutica, eterno vilão de teorias conspiratórias, não daria por tal ingrediente!

Ora, falar das multinacionais dos remédios remete-nos imediatamente à mais poderosa organização capitalista; melhor ainda, à Organização Capitalista máxima, aquela que congrega as miríades de empresários que, na aparência, entre si competem, mas na realidade subordinam-se todos a uma única Força: a Confraria de Csífodas.

Essa sinistra Sociedade é dedicada, há milênios, ao culto do dinheiro. Suas origens se perdem na bruma dos mitos, mas crê-se que se originaram na Fenícia, entre mercadores que se dedicavam ao culto de Mamona (Mammon), deus ou demônio da riqueza (conforme o ponto de vista). Csífodas, o Abominável, foi o personagem quase-mítico que teria levado a Confraria para a Grécia, aproveitando para dar-lhe o próprio nome e fazer um merchandising pessoal. Contrapondo-se à Ordem da Grande Fênix, que idolatrava as aves, fizeram do cachorro seu animal simbólico. Naturalmente, nem todos os proprietários de cães pertenciam à Confraria, mas os membros destas eram estimulados a acostumar seus cães ao comportamento mais espaçoso possível, de modo a refletirem o poderio dos donos. Este aspecto originou a inimizade milenar entre os Confrades e o clã dos Xilóforos, como narro em um capítulo de meu livro anterior.

Mas quem foi Csífodas, o Abominável? Não sabemos se esse personagem existiu, afinal. Segundo a tradição, seria um mercador fenício radicado na Grécia, mas é mais provável que fosse o pseudônimo coletivo de toda uma corporação de mercadores da época, tal como Nicolas Bourbaki não é uma pessoa, e sim um colegiado de matemáticos. Os Confrades se intitulavam cínicos, aludindo ao estranho relacionamento que mantinham com os cães, e do comportamento deles parece ter vindo o sentido moderno da palavra.

Estranhamente, o nome era também usado por um grupo de filósofos, dos quais o mais famoso foi Diógenes de Sínope. Esses filósofos se distinguiam pelo extremo desprendimento material, ou seja, eram exatamente o oposto dos Confrades. Existem várias explicações para a adoção do nome cínico por esses filósofos; seria pelo hábito de fazerem suas necessidades em qualquer lugar, ou por suas maneiras agressivas e mal-educadas (esta também se aplica a muitos dos Confrades). Como Diógenes era, além disso, grande gozador e muito desaforado, desconfio que a intenção dele, ao assumir o adjetivo, fosse divertir-se à custa dos Confrades. Bastante plausível, para quem gozou Platão e Alexandre, o Grande, e zombou dos atenienses em geral, ao sair com uma lanterna em pleno dia, procurando um homem (!).

A inimizade entre os Xilóforos e a Confraria de Csífodas tornou-se um traço marcante de meu clã. Acabou sendo a causa de nossa própria denominação, pois, como narrei no primeiro livro, Xilóforo significa portador de madeira. Meus antepassados, na Grécia antiga, distinguiam-se pelos longos cajados que portavam em suas caminhadas, para apoio nas subidas e intimidação de meliantes, mas principalmente para afugentar cães. Os mais atrevidos dos quais, naturalmente, eram os pertencentes aos Confrades.

Claro está que, para os Csífodas, os Xilóforos nunca passaram de mosca no cocô do cavalo do amigo do bandido. Eles sempre estiveram muito ocupados com a conquista do poder verdadeiro, manipulando outras forças políticas, e enfrentando adversários de peso. Inclusive outras sociedades secretas, como a Grande Fênix.

Ora, meditava eu em uma dessas caminhadas, vejam que coincidência: o triste fim de Geralda teve, no fim das contas, algo ver a com a Confraria. Pois não foram precisamente os empregados de João Tupi, tido como líder regional dos Csífodas, que mandaram Geralda para o forno, tomando-a por um peru de Natal? E o que pensar da tentativa do cachorro de dar um fim em Itamar, suspeito de ser descendente de Geralda? Para alguns, tais coincidências não o são: os junguianos falam em sincronicidades, e a Ordem da Grande Fênix as aponta como características dos tais nodos no tecido do espaço-tempo. Os céticos preferem chamá-las de truques literários.

Pois, dizia eu, estava precisamente entregue à meditação sobre esse tema, quando aconteceu uma sincronicidade dentro da sincronicidade. Meu celular tocou, e a breve conversa que se seguiu deu início a um curso de eventos que tudo tem a ver com os estranhos confrontos entre os Csífodas e a Ordem. Os Cães e a Fênix.

 

     

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