De Amores, Gansos e Marrecos

Alguns leitores talvez já me conheçam. Sou Basileu Xilóforo, xenoetólogo e professor universitário aposentado. Em primeira incursão fora da literatura técnica, escrevi A Grande Fênix. Se você começou a não entender, calma, muita calma. Sobre a Grande Fênix, todo o necessário será dito, já que ela é assunto principal também neste livro; no presente caso, juntamente com a terrível Confraria de Csífodas, também a ser devidamente explicada. Por enquanto, basta definir xenoetólogo, para quem ainda não ouviu falar dessa notável especialidade.

Um principiante no estudo do grego diria que xenoetologia é o discurso do comportamento estrangeiro, e não estará completamente errado, embora impreciso. Os antigos gregos, como se sabe, pouquíssimo caso faziam dos estrangeiros; tanto assim é, que não permitiam que competissem nas Olimpíadas, e inventaram a palavra βάρβαρος (bárbaros) como onomatopéia para o som bar...bar, supostamente típico dos idiomas não-gregos. Não admira, pois, que ξένος (xenos) signifique tanto estrangeiro quanto estranho. Em linguajar mais apropriado e menos xenófobo, definiremos a xenoetologia como a ciência dos comportamentos inusitados.

Um dos fundamentos de minha ciência é o seu Princípio da Relatividade: o inusitado de uns é o normal de outros. Alguns considerariam inusitada a manutenção de um galinheiro em que raramente algum dos bichos é comido, mormente considerando-se que o controle do colesterol me impõe sérias limitações ao consumo de ovos. Mas os bichos em questão normalmente ficam a salvo, não porque eu tenha entrado para a Seita da Grande Fênix, que proíbe o consumo de aves como outras religiões proíbem carne de porco ou de boi; simplesmente acho que não valem o trabalho que dão para matar, depenar, limpar, preparar e cozer. No máximo, quando o excesso de galos se torna incompatível com a paz interna do galinheiro, o caseiro prepara um deles com ora-pro-nobis, ou, se eu estiver em um estado de espírito culinário, entrega-me o bicho já limpo, para que dele faça um coq au vin. Seguindo a receita que os escritos da Grande Fênix atribuem a Júlio César, quando mandou para a panela a Terceira Encarnação da Nobre Ave.

De que me serve, então o dito galinheiro? Na maior parte do tempo, de diversão. Todos gostam de jogar comida para os animais, tanto que é proibido nos zoológicos. Os bichos se alvoroçam quando me vêem de longe, pois sabem que muitas vezes receberão um punhado de milho, ou, melhor ainda, o lixinho com restos de verduras e frutas. Devo ser o Deus da Comida, na religião deles. Cujos fiéis mais barulhentos são exatamente os gansos e marrecos.

Quanto aos primeiros, criava eu um casal de gansos vindos da Bahia, há muito passados da idade em que teriam podido ir para a panela, ou, melhor ainda, para o forno. A idéia inicial era tentar reproduzir um belíssimo assado que comi, décadas atrás, em um restaurante judaico do Bom Retiro. Privados pela lei mosaica da degustação de leitões à pururuca, os freqüentadores fiéis à Torá podiam substituí-los por animal de sabor e crocância equivalentes. Mas, pelas razões acima expostas, foram ficando, ficando, até serem tombados pelo patrimônio histórico familiar. Fora isso, eles me lembram a Ordem da Grande Fênix; como já narrei alhures, foi por influência da Ordem que gansos substituíram os cães no Capitólio romano, e a cerimônia do Afogamento do Ganso antecedeu à da Molhagem do Biscoito.

O ganso macho era o brutamonte do galinheiro. Usava a força para ser sempre o primeiro a se servir da comida, e não deixava que galinhas mais atrevidas ciscassem em seu raio de influência, mesmo se saciado. Entretanto, provando que os brutos também amam, era extremamente carinhoso com a bela gansa, a quem protegia ferozmente durante o choco. Aliás, viemos a descobrir com o tempo que a razão do permanente mau humor do ganso eram os ataques das galinhas aos ovos da companheira.  Só a ela cedia o ganso a prioridade alimentar; e, quando permitíamos que saísse um pouco a passear, para aliviar as tensões no galinheiro e dar um respiro às oprimidas galinhas, fazia uma espécie de aceno à companheira, chamando-a para partilhar as minhocas que os esperavam no verde gramado exterior.

Durante esses passeios, por sinal, o Godofredo (pois assim viríamos a batizá-lo) chegou a ter veleidades de arrostar os humanos; audácia que enfrentei brandindo o famoso cajado dos Xilóforos, normalmente reservado aos cães. Mas o caseiro não tardou a descobrir que, abrindo-se os braços à maneira de asas, o valentão retrocedia, talvez imaginando ter diante de si outro ganso, este gigantesco. Descobriu até que, com base nesse artifício, podia-se pilotar o ganso: ao abrir-se apenas um braço, Godofredo dirigia-se para o lado oposto, de forma que, alternando-se os braços, podia-se até obrigá-lo a descrever uma trajetória complexamente sinuosa.

Ora, ao chegarem ao galinheiro Godofredo e sua amada, já lá se encontrava um casal de marrecos. Godofredo antipatizou-se com o marreco macho, mais ainda do que com as galinhas, e passou a usá-lo de saco de pancadas. Logo o pobre marreco perdeu um olho, e algum tempo depois apareceu suspeitamente morto. Ficou a marreca em triste viuvez, durante um bom tempo. Finalmente, resolvemos arrumar-lhe um companheiro, que pelo menos a consolasse na velhice.

Assim chegou ao pedaço um marreco jovem. Ganhou o nome de Itamar, devido ao penacho que portava. Deveria alegrar os dias restantes da marreca, mas, fogoso e descuidado, logo descadeirou a companheira de espécie, já um tanto velhinha, deixando-a bastante estropiada.

Itamar não se deu por achado. Sem dispensar completamente a descadeirada companheira, deu de apaixonar-se pela gansa, que, castamente, rejeitou-lhe os avanços. Esperto, Itamar cuidava de manter distância de Godofredo, maior e bem mais forte. Porém, mal este se distraía, o que acontecia com freqüência, Itamar tentava montar-lhe a companheira. Esta reagia com indignação, chamando o marido; mas, quando este acudia, o conquistador barato se escafedia e evitava as poderosas bicadas de Godofredo. Algumas vezes Itamar demorava um pouco mais a escapulir, e os três se embolavam em luta, até dentro do tanquinho que lhes servia de piscina. Depois de voarem penas para todos os lados, Itamar batia em retirada, mas ficava rodeando e ameaçando voltar. Godofredo, enquanto isso, dava voltas em torno da companheira, fechando a guarda. Ao mesmo tempo, fazia-lhe carinhos de pescoço, como a consolá-la pela ofensa sofrida.

Compramos mais uma marreca, a Pretinha, para ver se acalmava os fogos de Itamar. Itamar tratou de traçar a Pretinha, sem deixar de perseguir a gansa, e ainda comparecendo na marreca velhinha, vez por outra. Passamos então a deixar fora do galinheiro ora o casal de gansos, ora o trio de marrecos. Aconteceu então um dos episódios mais estranhos desta história.

Como disse há pouco, Godofredo era atrevido o suficiente para encarar humanos. O velho cachorro, morador do canil vizinho ao galinheiro, então, nem se fala. Reincidente devorador de galinhas que se aventurassem em seus domínios, detestava também os gansos, por causa dos salpicos de água do tanquinho, que ganhava quando Godofredo e a esposa resolviam bater as asas dentro d’água. Assim, na primeira vez em que encontrou Godofredo em liberdade, avançou nele, mas imediatamente aprendeu que aquela espécie de galinha era diferente, não tinha medo de cachorro, e tinha um bico perigoso. Desde esse dia, ganso e cão passaram a manter equilíbrio hostil mas frio, guardando respeitosa distância um do outro.

Itamar achou que podia fazer o mesmo, e atreveu-se até a entrar no canil, à frente de seu séqüito de duas marrecas. O cachorro, não sabendo com certeza a diferença entre gansos e marrecos, ficava com cara de bunda, limitando-se a observar o atrevido, pedindo com o olhar alguma orientação aos humanos que assistiam. Um dia em que nenhum dos humanos estava por perto, resolveu agir, enfim. O caseiro foi avisado por um colega da casa vizinha de que o cão tinha sido visto carregando na boca o Itamar, que parecia morto.

Foi o caseiro atrás do cão, que desta vez tinha cara de culpado. Dos episódios com as infelizes galinhas, já se deduziu que o cão teria enterrado Itamar, para posteriormente degustá-lo faisandé. Foi, pois, o caseiro vistoriar o local habitual dos enterros, sito próximo à piscina dos humanos. Mas, ao lá chegar, que surpresa: Itamar nadava na piscina, mui vivo e lampeiro.

Como ninguém viu o sucedido, pode-se apenas conjeturar. Provavelmente, ao ser atacado pelo cão, Itamar desmaiou de susto, e foi dado como morto pelo atacante. Levado para ser enterrado, reanimou-se enquanto o cão o deixava de lado para cavar-lhe a cova. Espertamente, Itamar pulou para dentro da piscina, onde intuía estar seguro.

O episódio deixou traumas nos dois protagonistas, que também passaram a manter prudente distância um do outro. O cão ficou alguns dias fazendo caras de deprimido, e Itamar sossegou um pouco o facho. Parecia até que, finalmente, resolvera deixar a gansa em paz.

Passou-se algum tempo, e a marrequinha velha, cada vez mais descadeirada, mal se arrastava atrás da comida, coitadinha. Mas eis que um belo dia, ou melhor, um horrendo dia, quem aparece morta no tanquinho é a gansa. Afogada. Imaginamos que, estressada pelo contínuo assédio do candidato a amante, o coração lhe tivesse finalmente falhado enquanto nadava.

Godofredo ficou terrivelmente deprimido. Gansos são monógamos fiéis, e, após a morte do cônjuge, no mínimo guardam longo período de luto. Nos casos mais dramáticos, pode significar o celibato até o fim da vida, que, para essas aves, demora tempo relativamente longo. Tendo cerca de dez anos, a expectativa de vida adicional de Godofredo é algo entre quinze e trinta anos. Tempo demais para ficar remoendo a solidão.

Assim, providenciamos nova gansa. A primeira que veio era em tudo o oposto da falecida: o que aquela tinha de graciosa e elegante, a recém chegada tinha de feiosa: muito grande, de enorme pescoço, e de uma raça com estranha protuberância sobre o bico. Mas o pior de tudo é que mugia. Sim, como se fosse uma vaca. Godofredo detestou-a, e a barulheira tornou-a insuportável também para os humanos.

Lá se foi o nosso secretário ao mercado, a trocar de gansa. A nova pretendente era um pouco menor, um pouco menos feia, e fazia um pouco menos de barulho: buzinava, em vez de mugir. Godofredo também não se entusiasmou com essa, e chegou a dar-lhe umas bicadas, mas nada muito sério, pois, afundado na depressão, tinha deixado até de ser agressivo. Deixara de responder às provocações de Itamar e, vergonha das vergonhas, chegou até a ser escorraçado pelo audacioso rival.

Passou-se mais um tempo. A marrequinha velha finalmente morreu, depois de passar pela suprema humilhação de ser montada até por um galo. A gansa foi ficando, sobrevivendo às várias ocasiões em que seus buzinaços nos deram ganas de enviá-la ao forno, e afinal acabou sendo aceita por Godofredo. Sem muito entusiasmo, talvez movido apenas pelo dever de perpetuação da espécie. Adquirindo estabilidade, a gansa fez jus a um nome próprio, e Matilda ficou sendo. Atualmente, continua sendo a ave mais ruidosa na hora da distribuição do milho, deixando em distante segundo lugar os grasnados de Itamar. Matilda continua buzinando enquanto devora o milho, produzindo um som meio de gargarejo, um pouco como certas mulheres que, não obstante finíssimas sob outros aspectos, são incapazes de esperar o fim da mastigação para continuar as falas.

Itamar, no momento, aparenta sossego ao lado da Pretinha. Não se atreve a engraçar-se com Matilde, brava e bem maior do que ele.  Beneficia-se dos exíguos prazos que vigem para a prescrição dos crimes no galinheiro.

Sim, pois o mistério da morte da companheira de Godofredo parece resolvido. Um dia, caiu uma galinha no tanquinho. Apavorada, debateu-se tentando sair, mas não conseguiu escalar a borda. Exausta, ficou quieta flutuando, até que alguém viesse tirá-la. Dei-me conta então de que qualquer ave flutua facilmente, mesmo as não aquáticas, mercê das bolsas de ar que têm no corpo. Portanto, se a gansa chegou a se afogar, é porque alguém montou nela enquanto estava na água... Quem poderia ser?

A historinha dos amores de gansos e marrecos termina aqui, pelo menos por enquanto[1]. Mas, perguntará o leitor: E daí? Ou, se mineiro for: Iuquico?


[1] Terminava, na época em escrevi este capítulo. Os desdobramentos posteriores não foram felizes. Godofredo e Matilda continuam tentando ter filhos, mas as galinhas lhes sabotam os ovos, e ele, cada vez mais deprimido, deixou de reagir às provocações de Itamar, que criou coragem para assediar Matilda. E Itamar tantas aprontou, que finalmente autorizei o secretário a mandá-lo para a panela. Demorou muito para cozinhar, mas constatou-se que marreco velho também dá bom caldo.

 

     

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