Prólogo

Donald Cockburn consultou o relógio, um pouco impaciente. O trem saíra de Paris há quase duas horas, e faltavam poucos minutos para chegar a Amboise. Para chegar à Reunião; aquela que talvez viesse a ser a mais importante de sua vida.

Não que a viagem tivesse sido desagradável, mas era muito mais cômodo até seis meses atrás, quando as reuniões ainda eram na vizinhança de Londres. Na Sede da Ordem: a Sede da Europa, e, portanto, pela tradição de séculos, a Sede Mundial. Mas o Conselho Supremo tinha decidido, por recomendação da Segurança: a Sede estava comprometida, sua localização revelada, ao alcance de algum dentre os muitos inimigos da Ordem. Portanto, a Reunião desta vez seria na Sede Alternativa.

De Londres a Paris, muito rápido: o Eurostar agora levava menos de três horas. Depois, tomar o metrô para ir da Gare du Nord à Gare d’Austerlitz, e finalmente o trem bem mais lento para o Vale do Loire. Donald Cockburn sentia nessas horas uma ponta de inveja dos alemães: em toda cidade alemã que se preze, os trens se concentram na Hauptbahnhof; aliás, quase todas as conveniências dos viajantes ficam perto da Hauptbahnhof. Mas Londres e Paris eram muito grandes para ter uma só estação principal; e Donald Cockburn, que carregava pouca bagagem, preferiu tomar o metrô, como um turista qualquer.

Turistas quaisquer, aliás, eram os clientes de sua agência de viagens, que lhe servia de ganha-pão e de fachada. Donald Cockburn não considerava desperdiçado seu doutorado em História, para o qual tanto estudara em Cambridge. Pelo contrário; gostava de conduzir grupos que escutavam com atenção suas dissertações sobre os sítios da Guerra dos Cem Anos, e sobre os reis que viraram personagens de Shakespeare. Era divertido, mesmo quando um turista malicioso estava mais interessado nas circunstâncias em que Eleanor de Aquitânia havia dado para alguém importante. Ou, mais picante ainda, para alguém desimportante. Grande Eleanor. Ela também era Sacerdotisa.

Em nome do profissionalismo, Cockburn era gentil mesmo com as recentes levas de turistas d’O Código da Vinci, com quem se sentia na obrigação de esclarecer o que, na narrativa de Dan Brown, tinha fundamento histórico. E o que, como dizia Umberto Eco, tinha o mesmo nível de credibilidade de Pinocchio e de Chapeuzinho Vermelho. E tudo o que ficava entre esses extremos.

E, além de tudo, não era o prazer turístico a principal razão pela qual Donald Cockburn abandonara a carreira acadêmica, depois de um início promissor. Era a incompatibilidade com a função de Arquigalo, líder máximo do ramo europeu da Ordem da Grande Fênix, primeiro entre os pares do Conselho Supremo Mundial da Ordem. Quem presidia uma seita de milênios de existência, tantas lutas, tantas intervenções na História, sabia segredos demais. Impossível não contaminar os artigos acadêmicos com informação que recebera da Ordem, à qual os acadêmicos laicos jamais teriam acesso. Impossível principalmente para um Arquigalo que tinha a sorte e a carga de ser contemporâneo de mais uma Encarnação da Fênix.

A cada Encarnação bem sucedida, deveria abrir-se um período luminoso da Humanidade. Como acontecera no reinado de Ramsés II, quando a Fênix tomara a forma de uma íbis. Primeira Encarnação da qual a Ordem tinha registro histórico firme, pois as mitológicas encarnações anteriores se esfumavam até o passado desconhecido. Quarenta vezes por período da Precessão dos Equinócios, quarenta vezes por Ano Platônico, quarenta vezes até que o Ponto Vernal fizesse um giro completo. Seiscentos e cinqüenta anos de intervalo.

Esse era o período oficialmente aceito pela Ordem, mas a data exata de cada Encarnação e conseqüente Sacrifício variavam de acordo com muitos fatores cósmicos. Heródoto divulgara o período de quinhentos anos, número convenientemente redondo. Donald Cockburn gostava de Heródoto, e não nutria por ele o desprezo secular da Academia. Que importava se Heródoto de fato estava mais interessado em apresentar uma versão conveniente aos interesses gregos, do que uma hipotética Verdade Histórica? Que importava se o grande Ramsés, o Abençoado pela Fênix, o maior dos faraós, usara truques de propaganda política, sempre que os julgava necessário? Que importava se os escritos de certas religiões continham tanta propaganda de certos governantes, em certos tempos e lugares?

Mais importante que os supostos fatos objetivos era a interpretação. Principalmente a Interpretação: o significado que se devia extrair de cada vinda da Nobre Ave. Todos na Ordem concordavam que a Primeira Encarnação histórica, a Africana, tinha sido gloriosa, e Ramsés um Abençoado. Mas na Reunião de hoje provavelmente se discutiria mais uma vez o significado da Terceira Encarnação, a Européia, e da Quinta, a Asiática. Pois Júlio César e Cublai Cã haviam sacrificado a Nobre Ave na panela, não na pira solene que a Ordem esperava. Por isso, sempre foram considerados como adversários, ainda que não necessariamente Adversários. Por isso, julgava-se, um foi traído e assassinado, e o outro teve a gigantesca frota destruída e não deixou uma dinastia duradoura; por isso, nenhum dos dois chegou a realizar por completo o Império com que sonhavam.

Mas Donald Cockburn já conseguir convencer a muitos de que as chamas de uma cozinha eram pira tão boa quanto qualquer outra; de que César e Cublai tinham, à sua maneira, realizado os desígnios do Espírito Imanente do Universo; de que, por vias tortas, as ações deles tinham dado origem aos Impérios Romano e Chinês, maiores e mais gloriosos ainda que o Egípcio, e ainda hoje vivos. O Romano, no mundo das idéias e instituições, e o Chinês, ainda como Estado. Tal interpretação tinha apoio até de um cientista agnóstico e independente; mas que fosse preciso confiar tais segredos a um estranho à Ordem, já evidenciava a dimensão da crise que viviam.

Podia-se prever, por outro lado, que a misteriosa Quarta Encarnação, a Centro-Americana, não seria discutida. Muito menos a ainda mais misteriosa Segunda Encarnação, a Norte-Americana. Tantos segredos sobre elas deviam ser guardados, que nem todos os membros do Conselho Supremo conheciam todos os seus detalhes. Talvez devessem saber, pensou Donald Cockburn.

A única discussão realmente garantida era a da Sexta Encarnação, a Sul-Americana, acontecida há um ano atrás. O destino da Nobre Ave tinha sido ainda mais trágico e chocante do que nas anteriores. Por causa dela, uma parte da Ordem, liderada por Connie Millet, propunha agora o maior dos saltos no escuro: usar a tecnologia para recriar aquilo que a História tinha negado.  Enquanto isso, a facção da Verdadeira Fênix sequer aceitava o uso que tinham feito da análise de DNA para rastrear a aparição da Fênix: exigiam a volta aos tempos da consulta às entranhas de aves sacrificadas.  Estava montado o cenário para uma guerra civil: aquilo que ele, como Líder Mundial, tinha por obrigação evitar.

Estava difícil. Exatamente por causa da Sexta Encarnação, Mafalda não estava aqui. Se estivesse, somariam pelo menos três votos, pois Gloria era uma aliada garantida. Com exatamente metade dos votos do Conselho, o voto de Minerva do Líder Mundial decidia a questão. Mas hoje, ele só podia contar com Gloria, sabendo que Connie estava do lado oposto. Tudo dependia, portanto, das posições dos líderes asiático e africano. Eram velhos camaradas, mas Connie era persuasiva, e certamente estivera trabalhando no convencimento deles. Ele, Donald, estivera, e não esperava menos da adversária. A discussão face a face seria decisiva.

O trem parou. Havia chegado a Amboise. Muitas outras vezes, Donald Cockburn tinha atravessado a pé a ponte sobre o Loire, chegando ao Castelo em poucos minutos. Deste lado do rio, podia-se avistar a silhueta colossal das muralhas do Castelo. Nelas haviam sido enforcadas mil e quinhentas pessoas, em um único dia, no tempo das guerras religiosas. Dizia-se que as almas dos enforcados vagavam por ali, até hoje.

Donald havia contado essa história para turistas, muitas vezes; almas penadas do Século XVI não o preocupavam. Mas os fantasmas atuais sim, e principalmente a guerra religiosa que ele tinha por missão evitar. Por isso, constatou com alívio que o carro da Ordem estava ali, à espera dele. Faria a curta viagem protegido pelo chefe da Guarda dos Falcões.

     

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