O Bafo do Poderoso Dragão

Após um longo sorvo de Qingdao, Fuk Yu Two continuou:

— Você provavelmente ia me perguntar em seguida a respeito das bolas de fogo.

— Ora, você também lê pensamento?

— Não leio; calculo, projeto, extrapolo. Essa seria simplesmente a próxima pergunta, do ponto de vista lógico.

Nesse momento, ele me lembrou o senhor Spock. Eu disse então:

— Muito bem, estou mesmo muito curioso. Achei que bolas de fogo assim só existissem em vídeo games e desenhos animados japoneses.

— A única coisa em comum com o imaginário Hadouken do anime é a concentração de Qi. Mas, para nós, o Qi, embora espiritual, não é nada religioso ou metafísico. É simplesmente uma denominação para a poderosa energia física que existe nos seres vivos, e no homem em particular, de forma inteiramente natural. Poderia ser pensado como o fogo vital, o plasma gerado pela eletricidade corpórea. Veja, ao contrário de grupos mais tradicionais, o Clã do Tradicional Dragão não despreza totalmente as armas de fogo. Julgamos, porém, que a força do fogo é mais bem aproveitada quando age sem intermediários como essas armas, que meramente transformam energia química em térmica, e esta em cinética.

— Mas não foram os chineses que inventaram a pólvora?

— Basicamente, para fogos de artifício. A arte marcial tradicional sempre preferiu os projéteis de fogo, que entregam o Bafo do Dragão diretamente sobre o inimigo. E nós, por um longo processo de domínio de nossos corpos e das forças da natureza, aprendemos a gerar e controlar o que pode ser entendido como a combinação dez mil vezes concentrada de dois fenômenos naturais: o fogo fátuo e o relâmpago globular.

Claro que eu sabia que ambos os fenômenos são causados por nuvens de plasma, ou seja, gás ionizado. O foto fátuo, por metano e outros gases, emitidos pela decomposição de materiais orgânicos, como em pântanos e cemitérios, a provável origem do Boitatá amazônico. O relâmpago globular, por descargas elétricas atmosféricas muito fortes, que podem assumir uma forma esférica em certas condições, causando muitos dos avistamentos relatados de objetos aéreos não identificados. Fuk Yu Two continuou:

— Pois então? Imagine agora que esses gases sejam produzidos por um intestino humano, que é um dos ambientes mais putrefatos e infestados de bactérias que existem, e tenham sua produção intensificada por técnicas especiais. Parte dessa intensificação é causada pela pura força da vontade treinada, e parte por uma dieta especial, que aumenta a dosagem de metano e ainda o enriquece de ácido sulfídrico. Essa é a dieta que consumimos, nos dias anteriores às datas previstas para um grande combate: ovos de mil anos; rolinhos de primavera gigantes, recheados de uma mistura de repolho e feijão tou-si; tofu frito com molho de soja, de preferência o tofu da terrível variedade fedorenta, uma especialidade gastronômica aqui de Xangai; de sobremesa, pãezinhos recheados com doce de feijão; para arrematar, chá de losna.

Perguntei então:

— Mas como é produzida a ignição explosiva desses gases?

— Aí é que entra o fenômeno elétrico. É sabido que o corpo humano pode acumular uma tensão de dezenas de milhares de volts de eletricidade estática. Você sabe como é fácil tomar choques com essa eletricidade, nos ambientes aquecidos, em climas frios: o atrito dos sapatos com os tapetes gera a tensão, e a secura do ar a mantém. O que nós fazemos é usar sapatos especiais, com os quais o nosso próprio movimento é usado para acumular cargas elétricas, dentro da filosofia de não desperdiçar absolutamente movimento algum. Por isso, é depois de alguns movimentos intensos e violentos com armas convencionais, que estamos prontos para disparar a arma que só nosso Clã domina plenamente: o Peidouken!

Explicou-me que o terrível golpe do Peidouken é a essência do estilo marcial Ken Pei-dou, que poderia ser traduzido como Luta com Rugido de Pedras que Rolam Torrencialmente. Entretanto, na linguagem secreta usada pelo Clã, os mesmos caracteres podem ser lidos como o Bafo do Poderoso Dragão. O Peidouken consiste na emissão de uma espécie de bola de gases comprimidos, com predominância de metano e ácido sulfídrico, que é arremessada na direção do inimigo, e incendiada por uma poderosa descarga elétrica, na forma de um relâmpago globular controlado.

Mesmo no caso de um principiante, a bola é suficiente para desnortear os adversários, tornando-os vulneráveis a outros tipos de ataques. Mas um Mestre do Ken Pei-dou consegue emiti-la em velocidade supersônica, regulada juntamente com a direção e potência, de forma que se incendeie ao atingir o inimigo. A intensa combustão produzida pode incinerar completamente o adversário, dependendo da perícia e da intenção do Mestre. Por causa disso, ao contrário de outras artes marciais, o momento em que o Mestre do Ken Pei-dou é mais temido é quando dá as costas ao inimigo. Este sabe que, a não ser que consiga abrigo em uma fração de segundo, a aniquilação é certa.

Completou Fuk Yu Two:

— É uma arma terrível, e o praticante tem que controlá-la, para usá-la de forma compassiva e filosófica. Um Mestre do Ken Pei-dou sabe modular-lhe a potência; em alguns casos, basta uma combustão muito leve e rápida, para queimar os pelos do corpo e colocar o adversário em fuga; mas no caso de inimigos perigosos, como os do Tradicional Dragão, é preciso usar potência máxima, para carbonizá-los de forma completa, mas tão instantânea que não cause dor. Se quisesse, poderia queimá-los de forma que sobrevivessem e sofressem ainda por algum tempo, pois dominamos também as técnicas de morte lenta. Mas essas são usadas apenas quando estritamente necessárias; aqueles eram homens bravos e corajosos, que apenas estavam do lado inimigo.

E me mostrou as palmas das mãos:

— Como você pode ver, ainda estão amareladas. A prática do Ken Pei-dou representa uma drenagem terrível de energia. Precisaria de alguns dias de dieta e meditação para me recuperar completamente. Mas a Qingdao já ajuda... Claro que tomar um chá, com a devida reverência, seria mais clássico. Mas, desde a Primeira Guerra Mundial, quando tomamos a cervejaria dos alemães...

Disse eu então:

— Para mim, mais espantosa ainda foi a morte do último Dragão Vermelho. Vocês apenas se olharam por alguns segundos, e, de repente, o sujeito caiu morto!

— Realmente, por mais espantoso que o Peidouken pareça aos olhos, ouvidos ou narizes ocidentais, ele é considerado pelos Clãs como forma de arte marcial relativamente menor, se comparado com o nao-hai jue-dou, o Duelo de Mentes. Este estilo de combate consegue transcender as limitações da natureza física, atingindo os objetivos bélicos com o mínimo possível de danos colaterais.

Ficou alegre, de uma maneira até meio estranha:

— Felizmente, o líder dos Vermelhos era também um Mestre. O Duelo de Mentes é sempre travado entre dois Mestres. Digamos que o Mestre A tome a iniciativa do primeiro golpe; mas ele realmente não o desfere, apenas assume a postura correspondente. O Mestre B, sendo um Mestre, é capaz de ler a postura do adversário e imagina o golpe de defesa. Esta postura é, por sua vez, lida pelo Mestre A, que assume a postura do contragolpe, e assim por diante. O combate prossegue puramente na imaginação, até que um dos Mestres consegue surpreender aberta a guarda do outro, e imagina um golpe mortal. O Mestre adversário imediatamente percebe o próprio erro, e o golpe mortal que teria recebido. Tomba então, imediatamente, morto, como se tivesse recebido o golpe real.

Realmente espantosos, os poderes do Clã. Não resisti a perguntar:

— E o seu grau de Mestre, é o mais alto da hierarquia?

— Da hierarquia normal, sim. Mas, teoricamente, o estágio máximo é o de Grande Mestre. Poucos o atingem; às vezes, passam-se séculos sem que surja um deles. Entretanto, quando surge um Grande Mestre, inquietam-se os inimigos, pois eles estão tão acima dos Mestres, quanto estes acima dos mortais comuns. O Peidouken, por exemplo, se torna mil vezes mais temível, quando emitido por um Grande Mestre. Este sabe produzir uma onda de pressão sônica tão poderosa e concentrada que provoca a fusão nuclear. O Peidouken de um Grande Mestre pode incinerar não apenas um indivíduo, como um exército inteiro, ou toda uma cidade.

Perguntei, um tanto cético:

— Nesse caso, como o próprio Grande Mestre se protege da radiação letal?

— Simples, embora também fantástico. O poder do Grande Mestre distorce o próprio espaço-tempo, de tal maneira que as geodésicas se curvam em torno ele, e os raios gama emitidos pelo Peidouken nuclear o contornam, sem lhe fazer mal.

— Fusão nuclear? A frio? Sem uma bomba de fissão para servir de espoleta?

— Retornamos ao Qi. Um Mestre normal é hábil na manipulação dos aspectos do Qi que envolvem energia química, térmica, elétrica ou mecânica; aquilo que resulta da manipulação das forças eletromagnéticas, do que conhecemos na vida normal; por assim dizer, o Qi clássico. Mas o Grande Mestre, e veja que mesmo para nós de minha geração, ele é um homem mítico, o Grande Mestre domina um nível muito profundo do Qi. É como se fosse um Qi relativístico, que envolve até a força nuclear forte. Mesmo a Física Moderna ainda não o entende devidamente, mas acredito que ele seja uma forma de energia escura que forma a maior parte da massa do Universo, e que alguns físicos chamam de quintessência. Apropriadamente, pois os alquimistas ocidentais também identificavam a quintessência, que tanto buscavam, com o nosso Qi.

— Realmente espantoso, foi o que pude dizer.

— Se considerarmos os últimos avanços da Física, talvez não seja tão espantoso assim. Há pesquisadores atuais que alegam conseguir induzir a fusão nuclear por meio de extrema pressão sônica, como você deve saber. Dizem as lendas que os grandes lamas tibetanos eram capazes de levitar pedras gigantescas por meio de uma projeção sônica, produzida por certos mantras de alegados poderes mágicos. Os Grandes Mestres também teriam essa capacidade.

— E como é essa história de distorção do espaço-tempo?

— O continuum é uma espécie de fluido do Qi. Se uma pessoa comum pode produzir tensões de dezenas de milhares de volts, um Mestre pode produzir centenas de milhares, e um Grande Mestre milhões, ou mais. Com isso, podem gerar campos magnéticos poderosíssimos, embora muito breves. E os astrônomos já sabem que campos magnéticos extremamente potentes, como o dos pulsares, podem distorcer o próprio índice de refração do vácuo, e, portanto, as geodésicas... A mesma distorção do espaço-tempo permitiria que o Grande Mestre desse saltos de muitos metros de altura, ou corresse sobre as águas, como mostram alguns filmes de artes marciais.

— E como fica o Duelo de Mentes dos Grandes Mestres?

— Neste caso, em uma fração de segundo após a iniciativa, ambos os Grandes Mestres deduzem qual seria toda a seqüência de golpes, próprios e do adversário, e o perdedor cai morto quase instantaneamente. Talvez por isso, raramente existe mais de um Grande Mestre vivo. Na realidade, acho que o último viveu há séculos...

— Então, hoje não há mais nenhum?

— Pelo menos, nunca vi. Meu ilustre tio me contou, certa vez, que corria o boato de que um deles trabalhou para Mao Zedong. Nos escritos de Mao, há uma referência oblíqua, que, para os mais crédulos, alimenta essa interpretação. Trata-se do seguinte texto, parte do livro A Situação Atual e Nossas Tarefas:

Em qualquer batalha, concentrem uma força absolutamente superior (duas, três, quatro ou até cinco ou seis vezes a força do inimigo), cerquem o inimigo completamente, procurem arrasá-lo totalmente e não deixem nenhum escapar. Em circunstâncias especiais, usem o método de desferir golpes esmagadores no inimigo, isto é, concentrem todas as suas forças em um ataque frontal e também em um ou ambos seus flancos, com o objetivo de varrer uma parte e destroçar a outra...  Uma batalha de aniquilação produz um grande e imediato impacto no inimigo. Ferir todos os dez dedos de um homem não é tão eficaz quanto cortar um, e destroçar dez divisões inimigas não é tão eficaz quanto aniquilar uma.

— Seria alguém conhecido, esse Grande Mestre?

— Algumas versões falaram de Lin Biao. Isso explicaria a carreira relativamente rápida neste país que valoriza a idade, e coisas como as que narrou Edgar Snow:

Como Mao, foi um dos poucos comandantes Vermelhos que nunca foi ferido. Lutou no front em mais de cem batalhas, comandou no campo por mais de dez anos, expôs-se a todas as agruras que seus homens sofreram, com a cabeça a prêmio por 100.000 dólares, mas miraculosamente permaneceu sem ferimentos e em boa saúde.

— E você acredita nisso? perguntei.

— Não, respondeu Fuk Yu Two. Não acredito que um Grande Mestre voltasse para o Lado Escuro da Força, como ele voltou. E pior ainda, parece que no final ele tentou enganar até os seus suseranos do Grande Dragão. Talvez por isso, Mao tenha achado desnecessário mandar um caça persegui-lo quando fugia para a União Soviética, depois de tentar o famoso golpe de estado fracassado. E, de fato, o avião de Lin caiu misteriosamente na Mongólia. Vá saber. E essa foi uma das vezes em que Pafúncio foi visto dando conselhos da Jiang Qing; logo depois, ela lançou a campanha Contra Confúcio e Lin Biao...

— Rancoroso, o velho Pafúncio, disse eu. Não esquece broncas de dois mil e quinhentos anos...

— Lendas, é claro. Quando lhe contarem lendas relacionados com os Outros, essas histórias de imortalidade sempre aparecerão. E o Primeiro Imperador acreditou...

Comentei o quanto minhas conversas com o doutor Fuk em Oxford tinham contribuído para que eu entendesse melhor o papel das lendas na Xenoetologia, e como as lendas se encaixavam na formulação dos Efeitos Elefante, Rashomon e Palimpsesto. O sobrinho acrescentou:

— De fato, muitas lendas me foram contadas pelo ilustre tio, durante minha preparação para guerreiro do Legítimo Dragão. Nunca esqueci o que ele me disse um dia:

A busca da Verdade Absoluta é uma forma de auto-ilusão. É mais comum no Ocidente que no Oriente, embora tenha sido Platão quem mostrou que só vemos as sombras no fundo da Caverna. Por isso, Pequeno Yu, não importa se Grandes Mestres existem ou existiram. Eles são os arquétipos que o guiarão para chegar, pelo menos, a ser um Mestre. Não importa se Pafúncio é uma lenda ainda mais absurda: ele está lá para nos lembrar a aparente imortalidade do Negativo.

Não acredite em lendas como a de Lin Biao. Nunca se ouviu falar de um Grande Mestre que voltasse para o Lado Escuro, e mesmo poucos Mestres o fizeram. Os que estão no meio do Caminho é que são acossados pelos Demônios, o que, é claro, é apenas uma imagem. Gente como Lin Biao e Jiang Qing sempre esteve do Outro Lado, ainda que, em certos momentos, lutassem por boas causas. Se fizeram prodígios, foram os prodígios dos Inimigos. A desgraça deles mostra como os Outros descartam como papel usado aqueles dos seus de quem não mais precisam.

O Outro Lado é muito perigoso porque não é o Lado de Fora, é um Lado de Dentro. É toda a escuridão e negatividade do Yin dentro do Yang, ou toda a violência ilimitada do Yang dentro do Yin. Mas nós também precisamos dele; é dele que extraímos a Força que nos permite irmos muito além de nós mesmos. Yin e Yang não se excluem, dependem um do outro, se dividem em mais Yin e Yang, consomem um ao outro, dão suporte um ao outro, se transformam um no outro; cada um é parte do outro. Domine o Outro Lado, manipule-o e use-o, e não deixe que o Outro Lado domine, manipule e use a você. Basta isso.

Talvez nunca chegue o dia em que derrotaremos completamente a Força que se apoderou do Dragão Imperial. Mas que fiquem com o Dragão Vermelho, Senhor do Fogo. Nós servimos ao Dragão Branco, o que é a mesma coisa que dizer que nós somos o Dragão Branco, Senhor da Água. Aquele que é o Espírito Protetor do Povo, dizem uns, ou simplesmente o Espírito do Povo, digo eu.

 

     

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