Fuk Kwik-li Er

Fuk Yu Two terminou de recitar a tirada do sábio tio, com voz embargada. Permaneceu em silêncio, mais emocionado do que gostaria de aparentar. Silencioso fiquei eu também, respeitando a solenidade do momento, realçada pelas luzes do Bund.

Nesse momento, ouvi alguém pedindo licença para sentar-se conosco, e, como se fosse apenas um pedido retórico, já se assentando. Um chinês da mesma idade e até com uma certa semelhança com meu interlocutor. Vestia um terno muito elegante; não entendo de ternos, mas apostaria que era um Armani, ou seja lá que terno altíssimos executivos estão usando. Era a terceira pessoa de bom inglês que eu ouvia na China, depois de Da Gong-ji e Fuk Yu Two. Mas, enquanto Fuk, criado na Inglaterra, tinha sotaque britânico, o do recém-chegado era bem americano, e de alguém que tinha estudado nas melhores escolas do país, talvez na Ivy League.

No primeiro momento, interpretei a semelhança com Fuk Yu Two como manifestação do conhecido preconceito ocidental de japonês-tudo-igual; mas, vendo a expressão irada de Fuk, o recém-chegado disse:

— Meu caro Primo, não vai me apresentar ao Professor Xilóforo? Professor, eu sou Fuk Kwik-li, o Segundo, ou, como dizemos aqui, Fuk Kwik-li Er. Pode sorrir, professor, sei que o nome, tal como o de meu saudoso pai, soa engraçado em inglês. Mas não me importo, a piadinha serve até para cortar o gelo... Quanto ao Primo, imagino que esteja desgostoso por ter sido surpreendido em um brevíssimo momento de falta de atenção aos arredores, quando narrava as emocionantes citações de nosso venerando Tio... Mas não se incomode, Primo, somos todos humanos, e, se fosse alguém realmente perigoso, sua reação teria sido imediata!

Fuk Yu Two respondeu com desdém:

— Certamente eu contava com a vigilância dos agentes da Confraria, mas não imaginava que você mesmo tivesse tempo para nos abordar em uma mesa de bar!

Kwik-li respondeu com a dose certa de hipocrisia:

— Então eu deixaria passar a oportunidade de conversar um pouco com meu querido Primo, legítimo herdeiro de nosso ilustre Tio Fuk Yu-meng, a quem meu pai tanto devia? Sim, pois além do exemplo de erudição e tirocínio que meu pai sempre procurou emular, ele foi quem mais ajudou papai nas horas difíceis, um honroso exemplo do princípio chinês de que parentes devem ajudar parentes... E perderia a oportunidade de conhecer o brilhante professor Xilóforo, de quem não só admiro as teorias xenoetológicas, mas chegou com as melhores recomendações do Grande Empresário brasileiro que é um de meus melhores sócios?

O leitor deve estar lembrado do asco com que Gong-ji se referiu aos Kwik-li pai e filho, páginas atrás. E, se leu o primeiro livro, conhecerá a história de oportunismo do pai, antigo conselheiro do Kuomintang, que escapou do julgamento como traidor apenas pela influência do primo distante Fuk Yu-meng. Tornou-se marxista da linha mais radical, durante a Revolução Cultural, apenas para voltar a ser capitalista quando conseguiu tomar o lugar do primo como assessor econômico de Deng Xiaoping. Transformado em paladino do livre mercado, ganhou elogios da imprensa capitalista, do Financial Times ao Wall Street Journal, e dizem que se tornou o líder chinês da Confraria de Csífodas. Morto há pouco tempo, foi sucedido pelo filho. Perguntei a este, de forma direta, qual era exatamente o cargo dele. Fingindo não entender bem a que eu me referia, disse:

— No governo, nenhum. Sou um empresário com interesses diversificados em todo o mundo, e dirigente de várias de nossas associações empresarias. Estou longe de ter a influência de meu saudoso pai, que já foi buscar os dividendos dele no paraíso de Adam Smith... Bom, provavelmente já contaram ao professor essa piadinha e, de qualquer maneira, Smith gostava do capitalismo, mas não era tão entusiasmado com os capitalistas...

Durante esse tempo todo, não relaxou o sorriso, que lembrava o de certos animadores de televisão. E foi mantendo o mesmo sorriso que se voltou para Fuk Yu Two:

— Relaxe, Primo, pois venho em paz, apenas para prestar certos esclarecimentos. Não estou armado e nada conheço de artes marciais; os esportes que aprendi foram o beisebol e o futebol americano. Sei que poderia me matar com um toque de dedo mindinho, ou, provavelmente, sem toque nenhum. Claro que meus seguranças estão por perto, mas sei também que conseguiria escapar levando o professor Xilóforo, antes que eles tivessem noção de que alguma coisa aconteceu. Portanto, se alguém aqui corre algum perigo, sou eu.

Achei difícil de acreditar nisso, mas, provavelmente sem querer, Fuk Yu Two balançou quase imperceptivelmente a cabeça, concordando. Kwik-li continuou:

— Antes de falarmos de negócio, vou acompanhá-los na Qingdao, que parece estar gelada no ponto certo. Sabe, professor, normalmente prefiro uísque ou vinho, mas é bom manter as idéias claras. Aliás, sabendo que o professor é um apreciador de vinhos, tem em mim um colega. Mais do que isso, sou um vinicultor, e sei que estamos longe do padrão adequado, mas estamos progredindo com a consultoria francesa.

Respondi:

— Francamente, eu preferia o vinho adocicado e de cor vermelha brilhante que me serviram na primeira vez em que estive na China, lá no Grande Hall do Povo...

— Concordo que um cabernet clássico não tem muito a ver com nosso estilo de cozinha, que combina melhor com um Mateus Rosé ou um Rosé d’Anjou. Mas o professor concordará que os nossos brancos até que estão passáveis...

Foi a minha vez de concordar com ele. Mas, para não deixar a conversa descambar para amabilidades, perguntei:

— E que esclarecimentos são esses que está tão ansioso para nos dar?

— Fui encarregado por meus Confrades de garantir-lhes nossa total e absoluta inocência no horrível incidente em Xian. E para pedir-lhes que transmitam à Ordem da Grande Fênix nossas sinceras condolências pelo trágico fim de Da Gong-ji e de dezenas de Falcões.

Então tinha realmente havido um massacre prévio da segurança da Fênix, como supusera Gong-ji. E uma cilada de tais proporções, contra profissionais ferozes, bem treinados e bem armados, provavelmente significava um vazamento grave de informação. Perguntei, mesmo sem ter motivos para supor que ele soubesse a resposta:

— E o que a Polícia está achando do caso?

— Naturalmente, devem estar investigando, mas sob grande segredo. Pelo menos, alguns amigos que temos por lá disseram nada saber. E não deixo de lhes dar razão. Seria péssimo para o turismo e os negócios, se corresse a notícia de que acontecem por aqui ferozes guerras de gangues, como se fosse uma metrópole da África, ou da América Latina (com sua licença, professor), ou mesmo um dos piores guetos de Los Angeles ou Miami. Certamente, ajudaremos no que nos for possível, tanto as investigações oficiais, quanto as da nobre Ordem de seus amigos.

Fuk Yu Two perguntou, sem nunca deixar o tom agressivo:

— E por que deveríamos acreditar em vocês?

— Pela simples lógica. Por que haveríamos de atentar contra o líder da Grande Fênix, exatamente quando se abre a oportunidade de fazermos o maior negócio entre nossas sociedades em toda a História? Quem sabe, o primeiro passo de uma paz próspera e duradoura entre nós? E ninguém melhor para nós negociarmos do que Da Gong-ji, um compatriota meu e seu, e um homem que entendia a linguagem da tecnologia, e a dominava. Claro que ainda podemos chegar a um entendimento com Ibrahim al-Dajaj, mas será certamente mais difícil negociar com um sacerdote à moda antiga, um homem místico e cultor das tradições.

Foi a minha vez de perguntar:

— Supondo-se que esteja falando a verdade, qual a sua teoria para o que aconteceu?

— Alguém está interessado em semear a intriga e levar nossas sociedades a uma guerra total. Para isso, contrata organizações que congregam os assassinos mais bem treinados e perigosos do mundo. Como o Clã do Tradicional Dragão, ou como os piratas que o professor infelizmente encontrou no Amazonas.

— Esse alguém seria a Sociedade do Grande Dragão?

Fuk Kwik-li Er pausou, respirou um pouco mais fundo do que o normal, e respondeu como se escolhesse as palavras com muito cuidado:

— Teoricamente, seria uma possibilidade. Mas nada indica que essa suposta organização seja mais do que uma lenda, pelo menos nos dias de hoje. Pessoalmente, acho que esse nome é apenas um rótulo conveniente para todo o Mal que não conseguimos explicar. Apenas um rótulo para o desconhecido, como o Diabo e o Deus dos ocidentais, que meus clientes crentes não me ouçam...

Acho que, depois de conhecer o Grande Empresário e Fuk Kwik-li Er, vou ter que reformular um pouco meu conceito dos Csífodas. O que eu tinha estava baseado nas histórias de meu avô e em meus próprios contatos com o baixo clero da Confraria. Esses geralmente têm ótimo tino comercial, mas são umas bestas completas, se comparados à sagacidade e sutileza desses exemplares de alto escalão. Eu não definiria melhor minha própria impressão a respeito dos malefícios atribuídos ao Grande Dragão.

Finalmente, o Confrade se levantou, dizendo na despedida:

— Bom, meus amigos, não tomarei mais o seu tempo nesta agradável noite no Bund. Tenho certeza de que a Ordem da Grande Fênix e o Clã do Legítimo Dragão, por menos que gostem de nós, chegarão às mesmas conclusões que proponho, pelo simples uso da lógica. Boa noite, e bom regresso, professor.

Fuk Yu Two ficou em silêncio observando o nosso entorno. Depois de uns dois ou três minutos, relaxou, sinalizando que os Csífodas realmente tinham ido embora. Perguntei-lhe o que achara das explicações de Kwik-li.

— Tenho que admitir que a maior parte faz sentido. Concordo inclusive que não seja uma armação direta do Grande Dragão, mas por razões diferentes. Os Inimigos só recorrem a assassinatos individuais quando têm significado dentro de um plano muito maior. Como os assassinatos de inimigos políticos pelos Camisas Pardas, e dos Camisas Pardas pelos SS; só faziam sentido dentro do plano maior de ascensão do Nazismo, e este dentro do plano ainda maior da Segunda Guerra Mundial, e essa sabe-se lá dentro de qual desígnio ainda mais maléfico. Em suma: eles não trabalham no varejo do Mal.

— Mas os Dragões Vermelhos não são uma emanação deles?

— Sim, e os piratas que vocês encontraram no Amazonas, provavelmente, e também as organizações de Tommaso Menefrego, Cornelio Escobar e Mafyey Mafyeyev. Todo grupo criminoso importante presta vassalagem a eles. Mas todos esses que eu citei são também assassinos de aluguel. Eles podem ser contratados por qualquer um, para qualquer serviço sujo, desde que se pague um bom preço. E o Dragão Pai não se incomoda que os filhotes ganhem trocados, por assim dizer, prestando pequenos serviços a vizinhos.

Depois disso, voltamos para meu hotel. No caminho, Fuk Yu Two contou que, durante o dia, tinha entrado em contato com o tio, e este lhe dissera para falar com Pierre Lecoq. O líder provisório da seção européia da Grande Fênix queria falar comigo. Como meu regresso seria via Paris, pedia que eu parasse lá por alguns dias, para que pudéssemos nos encontrar. Depois de minha partida, Fuk aprofundaria suas próprias investigações, recorrendo talvez a seus famosos contatos no submundo.

No dia seguinte, depois de passar um dia ameno, visitando o grande Museu Histórico de Xangai, os jardins Yuyuan e a Concessão Francesa, embarquei de volta a Paris, para mais uma etapa desta estranha aventura.

Já em pleno vôo, lembrei-me de que Da Gong-ji, afinal, não me contara qual era o simbolismo do Tigre em combate com o Dragão, e eu também me tinha esquecido de perguntá-lo a Fuk Yu Two...

 

     

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