O Despertar do Inusitado

Cheguei a Paris de manhã cedo. Depois de descansar por algumas horas, fui para o ponto de encontro indicado na mensagem de Pierre Lecoq: o velho café Les Deux Magots, que dividia com o vizinho Café de Flore a preferência de Sartre, Hemingway e Picasso, no coração de Saint-Germain-des-Près, na região do Quartier Latin. Sentei-me lá, pedi um Dubonnet, e tratei de dar uma lida em Le Monde. Como eu tinha feito décadas antes, sempre que queria ao mesmo tempo refletir e ver o movimento de Paris, durante meus estudos iniciais de Xenoetologia, na vizinha Sorbonne. Talvez naquela época eu pedisse um café, que era um pouco mais barato que o aperitivo, embora muito mais caro do que um café de balcão. Não se pagava por uma simples beberagem, mas pelo direito de ficar horas simplesmente vendo Paris passar, sem que nenhum dos aparentemente mal-humorados garçons incomodasse o freguês, para perguntar se queria mais alguma coisa.

Eu tinha chegado lá como estudante, pouco tempo depois dos acontecimentos de Maio de 1968. A Paris daquele momento parecia o lugar certo para se iniciar uma ciência que se propunha a quebrar paradigmas e desafiar os compartimentos acadêmicos, para estudar o Inusitado. Consegui ser aceito como orientado do Professor François Tastevin, que abrira um modesto espaço para a nova ciência, entre as áreas de psicologia, sociologia, antropologia e filosofia. Recebi a aceitação até com certa surpresa, pois eu não tinha formação de ciências humanas.

Agora, no Deux Magots, enquanto saboreava o Dubonnet, eu me lembrava do primeiro encontro com Tastevin. Alto, calvo e magro, o mestre tinha um nariz portentoso, herança de uma família borgonhesa, que se dedicava à apreciação de vinhos desde a Idade Média, atividade para a qual a capacidade olfativa é certamente um patrimônio valioso. Com a remuneração de degustadores, os Tastevin acabaram por se tornar proprietários, e o mestre havia recebido o vinhedo da família como herança, poucos anos antes. Atualmente, passa a aposentadoria inteiramente por conta de seus vinhos magníficos, embora pouco conhecidos; mas, naquela época, ia a sua vinha, nos arredores de Beaune, apenas quando as lides acadêmicas o permitiam.

Nesse primeiro encontro, Tastevin tentou esboçar um panorama de a quantas andava a Xenoetologia, em seus poucos anos de existência, para me dar uma idéia do que eu poderia esperar. Recordou que, de certa forma, Charles Darwin fundara a etologia, com seu livro The expression of the emotions in animals and men. De lá para cá, entretanto, a etologia científica tinha focalizado quase exclusivamente o comportamento animal, deixando o estudo do comportamento humano sem uma disciplina específica, loteado entre várias das ciências humanas. A escola de Tastevin se propunha resgatar o estudo holístico dos comportamentos tanto animais quanto humanos, e até acrescentar-lhe os cibernéticos, que o mestre, prescientemente, supunha viriam a ser parte importante do quadro descritivo da sociedade pós-moderna.[1]

Para compensar a ampliação do escopo ecológico a todos os organismos dotados de comportamento, sejam de carbono ou silício, o grupo fundador afunilou esse escopo, pela especialização. Primeiro, fixando-se em aspectos puramente descritivos, já que, no caso humano, a preocupação com o normativo já é objeto da Ética. Mais importante, focalizando exclusivamente o Inusitado, aquele comportamento que foge da Norma, seja lá o que for considerado como Norma. Dizia Tastevin:

— O Inusitado é, no final das contas, a fonte de todo progresso do conhecimento. Newton todo dia dormita debaixo de uma árvore, mas só quando lhe cai uma maçã na cabeça, aciona-se um train de pensées, uma seqüência mental que o leva aos fundamentos de toda a Física clássica. Galileo revoluciona a ciência e abala a religião quando aponta a luneta para Júpiter, et voilà, quatro pontinhos luminosos e moventes, que segundo a Teologia da época, não podiam estar lá. Michelson e Morley constatam que a velocidade da luz é a mesma, quer estejamos viajando contra ela ou a favor dela, um completo contra-senso, e Einstein é obrigado a inventar a Relatividade. O corpo negro não irradia como Maxwell previa, e pronto, chegamos aos quanta de Planck, e daí aos semicondutores, que dizem vão revolucionar a Eletrônica[2].

Fiquei um pouco surpreso com a tirada do mestre sobre as ciências físicas, embora soubesse que a cultura geral dele era imensa. Mas Tastevin logo emendou que, de fato, a maior parcela dos estudos xenoetológicos tratava dos comportamentos humanos, pois os comportamentos cibernéticos eram extremamente incipientes, e os comportamentos animais geralmente careciam de referências com as quais pudessem ser comparados e declarados inusitados. Já a Humanidade se tinha dado ao trabalho de estabelecer um cipoal de normas, entre leis, religiões, superstições, tradições e costumes, de maneira que, paradoxalmente, qualquer comportamento humano poderia ser tachado de inusitado, pois sempre era possível achar alguma norma que o mais corriqueiro dos comportamentos violasse.

Em todo caso, julgava ser de suma importância filosófica e epistemológica o fato de que a Natureza, como um todo, estivesse sempre a nos oferecer comportamentos inusitados, principalmente quando menos esperávamos. Por isso, minha formação básica em uma área técnica tinha sido um dos fatores determinantes para minha aceitação no incipiente programa de Xenoetologia da Universidade de Paris.

Mais attention. As ciências físicas têm por heurística fundamental a Navalha de Occam, mas é forçoso reconhecer que o método xenoetológico difere das ciências mais estabelecidas, em alguns particulares.

Uma breve explicação, para quem está menos familiarizado: o Princípio da Navalha de Occam, também chamado de Princípio da Parcimônia, foi formulado pelo filósofo inglês William of Ockham, também conhecido como Occam. Esse princípio tem sido citado como Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem (Entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade), ou como Pluralitas non est ponenda sine neccesitate (A pluralidade não deve ser proposta sem necessidade), ou ainda Frustra fit per plura quod potest fieri per pauciora (É inútil fazer com mais o que pode ser feito com menos). Na formulação de Isaac Newton: We are to admit no more causes of natural things than such as are both true and sufficient to explain their appearances (Não devemos admitir mais causas das coisas naturais que as necessárias e suficientes para explicar suas aparências). Ou. finalmente, como dizem os cientistas modernos: Entre duas teorias que fazem exatamente as mesmas predições, a mais simples é preferível.

Continuou o mestre Tastevin:

— A Navalha de Occam não é parte integral do método científico, mas apenas uma heurística que ajuda o cientista a escolher entre caminhos de pesquisa. Em algumas ciências, como a cosmologia e a psicologia, as explicações são quase sempre mais complexas do que o esperado. Fôssemos aplicar Occam literalmente à xenoetologia, provavelmente ficaríamos sem material de estudo. Exatamente por serem inusitados, os fenômenos xenoetológicos também desafiam o Princípio da Parcimônia. Por isso, os xenoetólogos se vêem compelidos a adotar uma variante que não escolha preferencialmente as elucidações mais triviais.

E prosseguiu com entusiasmo:

— Fomos buscar tal alternativa em uma ciência irmã, a psicanálise, na forma da Navalha de Freud: Entre duas teorias que fazem exatamente as mesmas predições, a mais interessante é melhor, desde que minimamente plausível. Assim, em lugar de se contentar em verificar se o paciente está fisicamente doente, deprimido por problemas no emprego ou por mágoas de desprezado amor, o terapeuta pode tecer hipóteses sobre problemas na infância, de preferência de natureza sexual. A hipótese será não verificável, de qualquer jeito, mas dará oportunidade a que o paciente fale ainda mais de si, o que, no final das contas, é o que o dito paciente está querendo mesmo. Como bônus, ao falar de si, o paciente oferece mais material ao analista, renovando o ciclo. Pois bem. Com a xenoetologia, funciona do mesmo jeito.

— E a Navalha de Freud seria exclusiva da psicanálise e da xenoetologia?

— Ao contrário. A Navalha de Freud é aplicável em outras disciplinas, entre ciências e técnicas, todas de altíssima respeitabilidade. Por exemplo, a economia política, em todo o espectro ideológico, do neoliberalismo ao marxismo, utiliza a Navalha de Freud. Ou no jornalismo: por exemplo, para explicar o mesmo fenômeno (dinheiro recebido por um político), a teoria mais complexa (compra de votos parlamentares, que é corrupção brava) rende mais matéria do que a mais simples (contribuição clandestina de campanha, irregular, mas relativamente corriqueira). Ou ainda a criminologia: por definição, em um crime bem tramado, a explicação mais óbvia é sempre a errada. Já a literatura, o cinema e as crenças em geral ficam com a Navalha de Homero: semelhante à Navalha de Freud, mas eliminando-se a cláusula minimamente plausível. Aí valem intervenção dos deuses, mágica, milagres, o que for preciso. Interessa apenas manter o interesse, seja do leitor, espectador ou crente.

Comecei meu treinamento por pequenas missões xenoetológicas: devia observar comportamentos inusitados no dia-a-dia, e reportá-los ao professor Tastevin, juntamente com os apropriados comentários. Em uma cidade como Paris, aparentemente, inusitados abundam: turistas, músicos de Metrô, clochards, estudantes radicais, garçons mal-humorados... Mas logo aprendi que, pela abundância, deixam de ser inusitados, pelo menos naquela cidade; fatalmente, cada um dos exemplos que eu levava provocava o questionamento do mestre: e quantas vezes você observou esse comportamento? Muitas, eu era sempre forçado a confessar.

Um belo dia, resolvi me presentear com um brinde gastronômico. Vida de estudante em Paris, mesmo de doutoramento, é sempre financeiramente apertada. Mas eu tinha economizado o suficiente para me dar ao luxo de ir a um restaurante bastante recomendado, um pouquinho afastado do labirinto de botequins gregos e árabes que atraíam multidões da classe econômica, mas ainda na região das Escolas. A freguesia era constituída por professores, intelectuais de algum sucesso e executivos de médio escalão, ou seja, gente que podia pagar por mais do que um restaurante popular, mas não por um dos templos dos grandes chefs. Esperava eu gratificar um pouco mais minhas papilas, embora em Paris seja possível comer razoavelmente bem mesmo nos restaurantes mais baratos, bastando estar disposto a ficar com os cotovelos bem encolhidos, pela exigüidade do espaço. Mas esperava também, como efeito colateral, colher a observação de algum inusitado interessante, entre a fauna que freqüentava o lugar.

De fato, pude logo na primeira vez observar um caso interessante. Ficou perto de minha mesa um casal que, no Brasil, seria considerado extremamente cafona: o sujeito vestia um terno velho e bem amarrotado, e tinha a gravata afrouxada; a mulher, mal maquiada e de cabelos mal-pintados, usada um vestido espalhafatoso, com bijuteria igualmente. O tipo pediu rãs, que comeu com as mãos, de forma ávida e ruidosa. Ao final, o garçom fez a clássica pergunta: Monsieur tinha ficado satisfeito? O sujeito disse que tinha alguns comentários a fazer, e gostaria de falar com o chef. E não é que o chefe veio, devidamente paramentado, e ouviu do freguês uma crítica minuciosa sobre os pontos falhos no preparo daquelas rãs. Humildemente, aceitou a crítica, justificando que essa era uma especialidade do chef anterior, cujo preparo ele ainda não dominava de forma perfeita.

Levei o caso a Tastevin, e ouvi o seguinte comentário:

— Há um inusitado, mas não o que você pensa. Pelo que você me conta, o sujeito era realmente um gastrônomo; você o prejulgou, por causa da aparência e das maneiras dele e da mulher. Essas dizem apenas que são pessoas que pouco se incomodam com a opinião alheia, ou então, que essa aparência e essas maneiras são usuais nos círculos que freqüentam. O único comportamento inusitado é a demonstração de humildade por parte do chef.

Lição aprendida, voltei ao restaurante na oportunidade seguinte. Desta vez, sentou-se em uma mesa próxima um casal que, em tudo, parecia o oposto do anterior: jovens, bem vestidos e com aparência de quem pertence à elite. O moço usava um terno que me pareceu elegante e caro, embora eu não pudesse ter certeza, pois pouquíssimas vezes na vida usei essa incômoda vestimenta. A mulher, não só charmosa como muitas francesas são, mas bela como menos amiúde o são. E usava um vestido com generoso decote lateral, que proporcionava a quem estava em posição estratégica, como era o meu caso, uma visão generosa, quase total, de um seio de belo torneado.

Pois aconteceu que, a certa altura, de um relance, o rapaz percebeu meu ângulo privilegiado. Limitou-se a enfiar a mão no decote da moça e dar-lhe uma bela manuseada no seio. A garota nem parou o que estava falando, e continuaram depois a conversa com toda a normalidade.

Relatei o caso a Tastevin, e ele me perguntou:

— E alguém mais no restaurante estranhou a cena?

— Que eu tenha percebido, não.

— Pois então? Significa que, para os outros freqüentadores, o comportamento nada tinha de inusitado. Ou que, pelo menos, eles queriam que assim parecesse. Pois, em Paris, supõe-se que todo mundo já tenha visto de tudo. O que significa que você, meu jovem, está no pior lugar do mundo para coletar inusitados; em Paris, nada é considerado inusitado. A não ser ingleses, talvez.

E aproveitou a ocasião para uma definitiva lição sobre o Princípio da Relatividade do Inusitado: o inusitado de uns é o normal de outros. Qualquer comportamento passa a ser inusitado, se um número suficientemente grande de pessoas assim o considerar, ou deixa de sê-lo, no caso recíproco.

E, pensando-se bem, esse princípio chega a pecar pela obviedade. Por exemplo, no campo gastronômico, a grande maioria dos brasileiros considera extremamente inusitado comer carne crua, peixe cru, caracóis ou queijo mofado. Só escassa minoria considera normal degustar carpaccio, sashimi, escargots e roquefort, ao contrário do que acontece, nos respectivos casos, com italianos, japoneses e franceses. Chineses tradicionalmente não gostam sequer dos queijos mais inocentes, mas muitos não vêem problema em comer cachorros ou certos insetos, como discutimos antes.

E a questão da nudez? Conforme mostrei em um dos capítulos de A Grande Fênix, em grande parte da Europa as saunas são mistas e sem roupa. Entrar de roupa de banho nessas saunas não só é considerado inusitado, como anti-higiênico, e, por isso mesmo, geralmente proibido.

Voltando a minhas lembranças de estudante, perguntei então ao mestre Tastevin se, por acaso, existiria algum Inusitado Absoluto. O mestre me respondeu que, segundo a Xenoetologia Clássica, ele não existe: para que algo seja considerado inusitado, é necessário e suficiente que um grupo significativo de observadores assim o considere. É claro que existe a discussão prática sobre quantos observadores são necessários para caracterizar um Inusitado, mas esse problema pode ser resolvido com técnicas estatísticas convencionais. Assim, tal como nas pesquisas eleitorais, o tamanho do grupo de observadores poderia ser dimensionado em função da margem de erro desejada.

Continuando, disse Tastevin:

— Na esteira da Física Moderna, surgiu a escola de Xenoetologia Relativística. Tal como na acontece com a Física Relativística, longe de afirmar que tudo é relativo, a escola sustenta que existe um Inusitado Absoluto, que é o próprio Universo. Realmente, a Física Moderna é cheia de proposições contrárias ao senso comum, como a independência da velocidade da luz no vácuo em relação ao observador, as dualidades matéria-energia e onda-partícula, a superposição de estados e o gato de Schrödinger[3]... Alguns propõem, inclusive, que todo este corpo de conhecimento (e desconhecimento) seja denominado de Xenofísica. E certos teólogos se consideram vingados, pois os mistérios da Xenofísica são tão anti-intuitivos quanto velhas proposições teológicas, como a Trindade, o Diofisitismo [4] e a Transubstanciação[5], que geraram tantos cismas, guerras e perseguições a hereges...

E penso agora que, mais de trinta anos depois, a situação só piora: agora temos os conceitos de táquions e matéria estranha, buracos negros e horizontes de eventos, a matéria e a energia escuras compondo a maior parte da massa do Universo, o decaimento do vácuo, as singularidades nuas e o Princípio da Censura Cósmica, o emaranhamento quântico e a ação fantasmagórica à distância...[6]

[1] OK, leitor, o linguajar deste capítulo está meio a nível de jargão enquanto narração, mas é para transmitir o clima.

[2] Não se esqueçam, isso foi no final dos anos sessenta, e Tastevin, mais uma vez, estava sendo profético.

[3] Se o leitor sabe o que são essas coisas, muito bem. Se não sabe, mas se interessa em saber, pode encontrar muitos bons textos de Física na Web, principalmente se estiver disposto a procurar em inglês. Se não sabe e não se interessa, pode seguir em frente, pois eles não são necessários para entender o resto...

[4] A doutrina aceita pelos católicos, segundo a qual Jesus tem ao mesmo tempo natureza divina e humana.

[5] A doutrina igualmente aceita pelos católicos, segundo a qual a Eucaristia transforma o pão e o vinho do Corpo e Sangue de Cristo, de forma real e não simbólica.

[6] Como eu disse três notas atrás...

     

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