Sudão, meses depois

Como havia imaginado Lord Joe, a travessia até a fonte do Vida Longa foi, ela própria, longa e dolorida. Primeiro, foi preciso atravessar o tórrido deserto; enervado pela sede, pelo calor e pelo cansaço, Lord Joe tinha acessos de ira, que descarregava em seus pobres servos. Detestava especialmente quando algum deles chamava os dromedários da caravana de camelos, e chegou a mandar açoitar alguns deles, para que aprendessem, de uma vez por todas, que camelos legítimos são só os bactrianos, de duas corcovas. Em seguida, veio a floresta tropical, infestadas de cobras cuja visão causava horror a Lord Joe, mas, ao mesmo tempo, lembrava-o do Vida Longa que, delirava ele, o aguardava no final da jornada.

Mas um dia, depois de muitos e sofridos meses, Lord Joe finalmente chegou a uma aldeia cuja localização batia com o mapa fornecido pelo estranho Iblis. Os intérpretes confirmaram com os aldeões: era lá que, 2.500 anos depois do mercador fenício, o Vida Longa ainda ostentava o cetro. Raramente chegavam ali forasteiros, e, quanto a homens brancos, Lord Joe era o primeiro em incontáveis séculos. E rezavam antigas tradições da tribo que um dia um homem branco, o Arauto do Vida Longa, viria para levar ao mundo as glórias e bênçãos do Enorme Líder. Levaram-no, pois, sem perda de tempo, à presença do Vida Longa.

Este o recebeu com o mesmo largo sorriso de toda a dinastia, e, repetindo a cerimônia acontecida com o mercador fenício, convidou Lord Joe para um refrescante banho de lago. Quando tirou a tanga, Lord Joe constatou que a realidade era maior que suas mais loucas expectativas. E decifrou um mistério que, até então, lhe propunha dúvidas sobre a veracidade da lenda. A cada vinte anos aproximadamente, o Vida Longa em exercício transmitia o seu poder para outro homem, cerca de vinte anos mais jovem. Como era que ninguém percebia a troca de comando? No caso do Fantasma, entendia-se: o Fantasma usava máscara. Mas o Vida Longa não usava tal artifício: como é que ficava?

Contemplando o imenso líder, Lord Joe compreendeu: ninguém prestava atenção ao rosto do Vida Longa.

Em suma, ao contrário do fenício, Lord Joe se despiu, e caiu na água com entusiasmo. Também ao contrário do mercador, aceitou a hospitalidade do Vida Longa. Passaram-se meses de tranqüilidade e relaxamento para o jovem lorde. O único incômodo real eram as assaduras. De sol, é claro, pois até então o branquíssimo lorde nunca tinha relaxado seu hábito de trajar-se pesadamente, no rigor da formalidade britânica. Ali no coração da África, Lord Joe se desnudava, para se embeber das forças da natureza.

Apesar da vida de prazeres simples, após alguns meses o jovem lorde voltou a se entristecer. Lembrava-se da historinha do sujeito que naufragou em uma ilha deserta, e após alguns meses salvou outra náufraga, uma belíssima e conhecida atriz. À semelhança do náufrago em questão, Lord Joe às vezes pensava: de que adiantava a companhia do Vida Longa, se não podia exibi-lo aos amigos, ou, melhor ainda, aos rivais?

Urgia voltar à civilização. Mas era preciso convencer o companheiro a ir junto, pois sem ele, a vida de Lord Joe não tinha um eixo. Certo dia, após muitos folguedos no lago, repousavam os dois à sombra de frondosas palmeiras, quando súbita inspiração ocorreu ao jovem lorde.

Tudo começou quando um bando de aborrecidos insetos tropicais apareceu para perturbar Vida Longa, mas este, pachorrentamente, continuou a repousar, limitando-se a espantar os insetos com golpes de sua porção mais saliente; poderíamos chamar tais golpes de pintadas, pauladas, ou até, mais elegantemente, de penadas. Funcionava mais ou menos como os bois, quando espantam moscas com a cauda.

Em seguida, batendo-lhe a fome, Vida Longa subiu em uma das palmeiras e catou uns coquinhos. Para saborear-lhes a carne tenra, quebrou-os com fortes golpes da mesma clava.

A partir daí, Lord Joe passou a notar que Vida Longa manejava seu instrumento com destreza ímpar, usando-o para uma grande variedade de misteres, como fazem os elefantes com as trombas. Por exemplo, quando se sentia inspirado para uma noitada musical, tocava uma bateria de tambores de vários tamanhos, usando o dito instrumento como baqueta. Usava-o também como taco, em um esporte semelhante ao golfe, e em outro, similar ao beisebol; como martelo, quando precisava de reparos em seu parco mobiliário; ao preparar carnes, para amaciar as caças mais rijas; e, naturalmente, como arma cega, nas lutas de espada que realizava, para o adestramento dos candidatos à sucessão.

Lord Joe passou então a insistir com o amigo, para que voltassem juntos à Europa, onde Vida Longa poderia expor suas múltiplas habilidades aos olhos do mundo. Ele, Lord Joe, funcionaria como empresário, para atrair públicos e explorar oportunidades; pois, dizia, neste mundo em princípios de globalização, exportar é o que importa, e você, meu caro Vida, é o principal produto de exportação desta terra. Ao mesmo tempo em que expõe e desenvolve sua veia artística, você estará captando divisas para sua gente; o que se faz urgente, pois, dentro de poucas décadas, o colonialismo não dará mais tranqüilidade a seu bucólico modus vivendi.

A insistência de Lord Joe e a consideração dos altos interesses da tribo acabaram por convencer a Vida Longa. E assim foi que, muitos meses depois da chegada do inglês à aldeia, reorganizou ele a caravana, para a triunfal volta à chamada civilização.

     

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