Egito, final do Século XIX

Agora, um prodigioso corte de 2.500 anos, para os últimos dias do século XIX. Nosso protagonista passa agora a ser o jovem Lord Joseph Josephson, dândi inglês mais conhecido pelos íntimos como Lord Joe. Ou simplesmente Joe, mas isso era apenas para os muito íntimos. Lord Joe pertencia ao razoavelmente famoso grupo dos Uranianos, jovens poetas de estilo conservador, que cultuavam de forma idealizada a pederastia da Atenas clássica, e diziam estar sob o signo de Urano.

Ora, aconteceu que Lord Joe, no frescor dos anos, se apaixonou perdidamente pelo grande Oscar Wilde. Entretanto, não foi correspondido, pois Wilde, como é notório, se envolveu com outro jovem lorde e poeta Uraniano, Alfred Douglas, também conhecido como Bosie. Como é também sabido, Wilde foi cruelmente perseguido pelo Marquês de Queensberry, pai de Bosie. Logo depois que o irmão mais velho de Bosie morreu, correram rumores de que esse irmão teria um caso com o primeiro-ministro, e o velho Marquês resolveu salvar o novo herdeiro, colocando-lhe o amante na cadeia. Lord Joe acompanhou consternado os julgamentos e a condenação de Wilde ao cárcere; mas, se tinha algum resto de esperança quando Oscar deixou as masmorras de Reading, este resto se despedaçou quando o grande escritor foi-se juntar a Bosie no exílio.

O velho Lord Josephson tentou aproveitar a oportunidade para fazer com que o filho tomasse rumo na vida, e se envolvesse nos vultosos negócios de sua abastada família. Como os mestres diziam que o jovem dândi tinha algum talento para a Matemática, levou-o para trabalhar no setor de cálculo financeiro e atuarial que atendia ao banco e à seguradora da família. Ali, enormes tabelas eram calculadas e atualizadas incessantemente por profissionais que, na época, eram chamados de computadores. Deveria ele usar seus talentos matemáticos para escrever pequenos algoritmos, a serem executados pelos computadores, para diversos fins. Mas o jovem lorde pouco ligou para as tabelas de cálculo de juros e prêmios, e passou a desperdiçar o tempo dos calculistas com a geração de figurinhas engraçadinhas. Os computadores se queixaram ao velho lorde, que tratou de dispensá-lo, e Joe rogou-lhes uma praga, profetizando que um dia seriam substituídos por máquinas, como já estava acontecendo com outros trabalhadores.

A última tentativa do velho lorde foi de canalizar o fascínio do rebento pelo Oriente em direção produtiva. Estavam começando a produzir as fazendas de borracha que a família tinha na Malásia, formadas a partir das mudas de seringueira contrabandeadas da Amazônia brasileira. Para alcançar escala industrial, restava treinar como seringueiros a força de trabalho malaia, e o velho propôs que o filho se encarregasse de organizar essa tarefa. Lord Joe ficou subitamente interessado ao ouvir uma sumária descrição do que seria o trabalho dos seringueiros, mas, ao receber explicações mais detalhadas, percebeu que não era exatamente o que havia pensado, e o interesse se foi tão rapidamente quanto veio.

Assim, foi até com alívio que o velho lorde ouviu o filho anunciar que queria viajar para o Egito, dizendo para si que pelo menos eventuais escândalos aconteceriam bem longe da City. O jovem lorde, por sua vez, esperava encontrar respostas para suas inquietações naquela terra exótica e misteriosa. Com efeito, o amor não correspondido aumentara seu interesse por práticas místicas e esotéricas. Fascinavam-no particularmente a Cabala, os Gnósticos e os hipotéticos conhecimentos técnicos de antigas civilizações. Teve um brevíssimo caso com Aleister Crowley, futuramente famoso como ocultista. O caso pouco rendeu, pois Crowley, embora fosse mais interessado em mulheres, fazia questão de ser passivo, quando eventualmente pulava o muro. Em parte por amizade, em parte para se livrar do amigo, Crowley o aconselhou a viajar para o Oriente, a se embeber de misticismo nas fontes originais, especialmente na mais antiga, original e misteriosa de todas: o Egito.

Chegando a Alexandria, procurou o também poeta Konstantinos Kavafis, que o introduziu no mundo do Oriente, guiando-o pelos famosos bordéis bissexuais da cidade. A nova ligação também não durou muito, pois Lord Joe já se entediara com a fixação dos Uranianos no mundo helênico, enquanto Kavafis continuou endeusando o Mediterrâneo por toda a vida. Ao separarem-se, Kavafis recomendou que o jovem amigo viajasse para o sul do Egito, região muito mais primitiva e carregada de história e esoterismo do que a cosmopolita Alexandria.

E assim foi que Lord Joe tomou um vapor do Nilo, para a longa viagem até Aswan, aos pés da Primeira Catarata. Os primeiros dias de viagem foram até divertidos, pois encontrou a bordo Lady Annabella Blunt, nada menos que a neta do grande Lord Byron, a quem Joe tentava emular na poesia, no culto do Oriente, e na diversidade sexual. O jovem lorde abordou a já bem madura baronesa, observando que tinham algo em comum, pois blunt (direto, sem rodeios, rude) era um de seus auto-qualificativos preferidos, juntamente com snappish (rabugento), intransigente, irônico, elegante, esperto, inteligente e engraçado, muito engraçado. Lady Blunt observeou que ele parecia mais alegre do que engraçado, e a partir daí surgiu um bela, embora breve, amizade.

Sabendo que Lord Joe se interessava por dispositivos de cálculo, Lady Blunt mostrou-lhe alguns dos algoritmos que a mãe dela, Ada, Condessa de Lovelace, havia escrito para a curiosa Máquina Analítica de Mr. Charles Babbage. Discorreu também sobre as especulações de Lady Lovelace de que a Máquina Analítica poderia vir a compor música, ao que Lord Joe argumentou de que estava certo de que poderia ser programada para gerar figuras engraçadinhas, e propôs que a baronesa bancasse a construção da Máquina completa, tantas vezes adiada, para atender a tal finalidade.

Entretanto, Lady Blunt estava mais interessada em sua fazenda nas vizinhanças do Cairo, e ao arribar a essa cidade, propôs que Lord Joe fosse até lá, onde havia chegado uma nova leva de soberbos garanhões árabes. Lord Joe teve um lampejo de interesse, mas declinou polidamente ao perceber que se tratavam apenas de cavalos reprodutores.

Seguiram-se ainda muitos dias de viagem tediosa, sem sequer um mísero assassinato para quebrar a rotina. Foi, portanto, com muito alívio que Lord Joe chegou ao grande e luxuoso hotel, recém inaugurado pela Companhia Thomas Cook. Depois de devidamente instalado, foi relaxar no terraço com vista para o grande rio, enquanto tomava um chá de nobre procedência, devidamente temperado com leite.

Como o tradicional chá britânico das cinco é realmente servido às quatro da tarde, ainda fazia bastante calor, mas Lord Joe insistia no chá, assim como no terno de casimira inglesa. Mais tarde passaria para um cognac VSOP, pois não iria tomar um gim com água de quinino, como um liberal qualquer, mesmo sendo aconselhável para combater a malária tropical; muito menos um whisky, como se fora um bárbaro escocês.

Entretido a cofiar os encerados bigodes, enquanto sonhava com os mistérios de Abu Simbel, teve a atenção subitamente despertada quando um recém chegado chegou a sua mesa, sorridente, e pediu licença para fazer-lhe companhia. Lord Joe ainda pôde perceber a agitação dos garçons, um dos quais rosnou entre os dentes uma torrente de árabe, na qual distinguiu a palavra Iblis; e notou como o garçom se calou diante do olhar extremamente duro do maître.

O estranho usava um terno de linho branco que, embora atendendo aos rigores da moda da época, era certamente bem mais confortável que a casimira de Lord Joe. Se quiser ter uma idéia de sua fisionomia, o leitor pode imaginar alguém parecido com o ator Peter Coyote, mas um tanto mais magro e moreno. Sua expressão tinha um quê de sarcástico, acentuado pelos bastos bigodes, não engomados como os de Lord Joe, mas muito bem penteados. Logo tomou a palavra:

— Certamente meu jovem lorde não pretende ficar enfurnado neste luxuoso hotel, suportando a tediosa companhia de turistas, enquanto os mistérios da África o aguardam nas cercanias.

Lord Joe, agastado pela intrusão, respondeu com aspereza:

— Cavalheiro, por acaso o conheço de algum lugar?

— Não, o amigo nunca me viu antes. Mas eu conheço de fama, e bastante bem.

— Pois, se por acaso tem algum interesse em minha pessoa, saiba que não faz meu gênero. E se veio fazer uma chantagem, saiba também que não ligo a mínima.

— Nada disso, meu rabugento amigo. Suas preferências têm, por certo, alguma relação com a proposta que lhe farei, mas asseguro-lhe que eu mesmo não pertenço a essa grei, e pouco me importa que alguém a ela pertença ou não.

Já um pouco desarmado, Lord Joe tentou ser irônico:

— Meu domínio do árabe ainda é o de um iniciante, mas pude perceber o aborrecimento do garçom com sua chegada, e pareceu-me que, entre as palavras que murmurou, estava uma que significa Diabo. O cavalheiro já os tratou com rudeza?

— Pelo contrário, esmero-me na cortesia com todos. Ocorre que esses felás ignorantes têm aversão a estrangeiros, mesmo quando não vêm de muito longe, como é o meu caso. Se o amigo pretende continuar nas boas graças deles, é bom que seja especialmente generoso nas gorjetas.

Lord Joe teve um sobressalto com a palavra felá, mas imediatamente se deu conta de que o interlocutor apenas empregava o termo árabe que designa os camponeses egípcios. Continuou na ofensiva:

— Se o cavalheiro é do Oriente Médio, como é que fala inglês sem sotaque discernível? Por acaso estudou na Inglaterra?

— Também não, meu caro. Mas sou um negociante internacional, e, neste mundo em princípios da globalização comercial, o domínio do inglês é cada vez mais indispensável, embora as elites ainda se apeguem ao francês.

— E o que vem negociar nestes confins do mundo? Antiguidades, talvez ligeiramente à margem da lei?

— Nada faço à margem da lei, meu jovem; aliás, meus detratores dizem que me preocupo muito com a legalidade, e nada com a moralidade. Faço grandes negócios, que às vezes mudam o rumo da vida das pessoas, é o que posso dizer-lhe no momento.

Lord Joe não conseguia deixar de cativar-se com o charme do estranho, mas fez uma última tentativa de ser agressivo:

— E por que é que o cavalheiro responde negativamente a todas minhas perguntas?

— Um velho hábito, meu jovem. Os mesmos detratores costumam dizer que sou um espírito que tudo nega.

Vencido, Lord Joe suspirou:

— Pois muito bem. O que veio o cavalheiro me propor?

— Um excelente negócio, meu jovem, que irá de encontro a seus mais profundos desejos. Uma expedição para ir onde nunca alguém foi antes, pelo menos de seu mundo ocidental e cristão. A descoberta de uma nova experiência que, pode-se dizer, o virará pelo avesso.

O misterioso cavalheiro se pôs a narrar a lenda fenícia do Vida Longa, tal como exposta aqui, nos trechos anteriores. A resposta de Lord Joe foi um tanto desdenhosa:

— Meu senhor, conheço essa história, embora não com tão ricos detalhes, devo confessar. É uma das muitas lendas africanas que circulam nos meios esotéricos que tenho freqüentado. É sabido, entretanto, que nem meu ilustríssimo colega Sir Richard Francis Burton conseguiu localizar a alegada aldeia,  e nem mesmo o Dr. Livingstone, eu presumo.

— Ocorre, meu jovem amigo, que nenhum deles tinha a informação que tenho, sendo membro de uma antiqüíssima e honrada sociedade, que tem acesso privilegiado a tais dados. Se tivessem, saberiam que o clima da África muda significativamente em 2.500 anos, e que a busca de verdes pastagens pode levar uma tribo a mudar de localização. Para sorte nossa, no caso, para ainda mais perto, eis que agora a fonte do Vida Longa pode ser encontrada um pouco mais ao norte, em terras do Sudão.

— E o que o cavalheiro tem de concreto a me oferecer?

— Uma expedição já montada, com provisões estocadas, e pessoal já contratado. Basta que o amigo assuma o comando e se ponha a caminho.

Lord Joe ficou bastante desconfiado, neste ponto, e perguntou de forma um tanto áspera:

— E a que devo tão súbita generosidade do cavalheiro?

— Ao saber que o amigo está muito interessado, por mais que tente disfarçar, e à infeliz coincidência de que prementes negócios de minha sociedade requerem minha atenção alhures. Além disso, o amigo me pagará apenas o valor das provisões, cuja existência e quantidade poderá conferir em um armazém próximo. A equipe ainda não foi paga, e, pela montagem dela, nada cobrarei, restando ao amigo remunerá-los na medida em que prestem seus serviços.

— E o que me diz do valor da oportunidade comercial, se a informação realmente proceder?

— Como cavalheiros que somos, ficaremos em termos simples: se o jovem amigo ficar satisfeito com o achado, me deverá um favor, a ser pago em ocasião oportuna.

Ainda desconfiado, o jovem tentou uma última estocada:

— Chegar a tal lugar requer atravessar as sabidamente perigosas terras do Sudão. Fazem poucos anos que o Mahdi espetou em uma lança a cabeça de Lord Gordon, e poucos meses que as tropas de Sua Majestade finalmente esmagaram a insurgência sudanesa. Não estará o cavalheiro fugindo do confronto com o perigo?

— Já confrontei adversários bem mais poderosos que o Mahdi e seus sequazes. Claro que riscos há nessa empreitada, mas, como diria seu amigo Kostas. Quando começares a tua viagem para Ítaca, anseia por que o caminho seja longo, cheio de aventuras, cheio de conhecimento. Viajar a Ítaca importa mais do que lá chegar...

Outro arrepio desagradável percorreu Lord Joe. O estranho não só sabia de seu relacionamento com Konstantinos Kavafis, mas também qual era seu predileto, dentre os poemas do amigo. Mas sentia-se completamente seduzido; poucos dias se passaram durante os acertos finais para a expedição rumo às fontes do Vida Longa. Ao se despedir do estranho, tomando a direção sul, rumo a Khartoum, Lord Joe ainda lhe achava sarcástica a expressão.

     

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