Paris, primeiras décadas do Século XX

Lord Joe usou seus recursos financeiros para montar um cabaré na Place Pigalle, realizando uma velha fantasia de tornar-se um empresário do vaudeville. Vida Longa, naturalmente, seria a principal atração; apenas exigiu que fosse usado um nome artístico, já que Vida Longa era um título honorífico, merecedor de todo respeito, e o nome original, obviamente, variava com cada portador do título. Lord Joe ponderou que todos que o vissem certamente teriam por ele o maior respeito, independentemente de nomes, mas finalmente concordou, e escolheu um nome de som devidamente africano: Gungala. O Grande Gungala.

O dito Gungala fazia vários números ao longo do espetáculo, desfilando todas as suas habilidades anteriormente descritas, devidamente enriquecidas com aparato teatral. O número dos tambores, por exemplo, foi enriquecido com instrumentos ocidentais, dos pratos e do triângulo até os tímpanos e os bumbos, chegando ao auge com um solo de marimba. O número do beisebol passou a contar com participação da platéia, que era desafiada a servir de catcher (receptor), enquanto Vida Longa fazia o pitcher (arremessador). Em um número cômico, vestido (parcialmente) de palhaço, Vida Longa distribuía pauladas nos outros palhaços, que fingiam atazaná-lo, enquanto a platéia se torcia de rir. Em um número de mágica, Vida Longa e um coadjuvante japonês pareciam trocar de ferramentas, sob gargalhadas e fingidos protestos da platéia.

Ocasionalmente, artistas convidados entremeavam outros números. Por exemplo, havia uma tailandesa que fumava de maneira diferente, e não só fumava como mandava beijos, assobiava, mordia usando uma dentadura, e assim por diante. Às vezes entrava no jogo de beisebol de Vida Longa, também servindo de catcher. Outras vezes cantava, dublada, é claro, pois querer cordas vocais ali também já é demais.

Havia também um sujeito que era capaz de trinar por aquela parte que normalmente só emite ruídos menos nobres. Isso mesmo, emitia gorjeios de pássaro, imitando bentevis e canários; por isso, intitulava-se O do Trinador. Ocasionalmente, aparecia como astro convidado o famoso Pensador, assim chamado por se apresentar desnudo, na mesma pose que a famosa escultura de Rodin, e executar um número que exigia prodigiosa concentração de pensamento.

Foi a consultoria do Pensador que ajudou a preparar Vida Longa para o grande sucesso de público, o número de apoteose, o chamado headliner. Lord Joe fazia sua única aparição à frente dos bastidores, fantasiado de faquir indiano, e tocava um número de flauta, enquanto o artefato de Vida Longa lenta e sinuosamente subia. Quando a lança estava em riste, posavam na dita sete gárrulas araras, enquanto caia uma chuva de purpurina dourada. Delírio total.

É verdade que, originalmente, Lord Joe planejava que fossem sete papagaios, treinados para contar uma série de piadas obscenas. Mas os papagaios não toparam de jeito nenhum, e foi preciso recorrer às araras, que não só aceitaram alegremente a missão, como compensaram a falta das piadas com o maior colorido do quadro. O único problema foi que, sendo as araras algo maiores que os papagaios, a sétima arara ficava com um pezinho de fora. A minor technical issue, dizia Lord Joe.

Durante mais de três décadas, o dinheiro rolou pelas bilheterias do cabaré. Nem a Primeira Grande Guerra havia parado o show. Lord Joe retirava o necessário para a manutenção do negócio, em vários sentidos, inclusive o de conservar Vida Longa bem alimentado, saudável e sem estresses, com a excelente circulação sanguínea demandada por suas performances. O restante, conforme prometido, era levado à tribo de Vida Longa, por agentes credenciados, para ser usado, sobretudo na seleção, qualificação e treinamento dos candidatos à sucessão. Lord Joe não precisava desse dinheiro, mas sua atitude não era inteiramente altruísta: visava a garantir que, expirada a validade de um Vida Longa, houvesse outro devidamente treinado e pronto para substituí-lo. De fato, enquanto durou o cabaré, o espetáculo passou por três diferentes gerações de Vida Longa, voltando os artistas aposentados à aldeia, para dar continuidade à linhagem.

Tal como imaginara Lord Joe, o público sequer percebia quando um Vida Longa passava o bastão. Curiosamente, o próprio lorde se mantinha também com excelente disposição e vitalidade, esse tempo todo. A quem perguntava, dizia que aprendera com o amigo a usar de um leite rejuvenescedor, ao qual denominava de leite de Vida Longa. Uma empresa de laticínios licenciou o nome, com o objetivo de usá-lo para um leite com conservantes, que durava bem mais do que o normal; para não espantar os mais conservadores, o nome foi ligeiramente alterado para leite Longa Vida.

Cada vez que trocava de Vida Longa, o próprio lorde se sentia rejuvenescer, e foi para comemorar o pleno sucesso do terceiro Vida que Lord Joe resolveu fazer uma das periódicas excursões da troupe. Lord Joe fizera um acordo com a família, de jamais levar o espetáculo à sua Londres nativa, mas de vez em quando o encenava alhures. Um dos grandes sucessos, por exemplo, foi em Roma, onde o Vaticano criticou, denunciando o renascimento do culto pagão de Príapo, mas a Juventude Fascista vibrou, e Joe e Vida foram convidados para um chá com Mussolini. Lord Joe ficou encantado com o charme, cultura e domínio do inglês do Duce, a quem considerou um perfeito gentleman, o que, para um inglês dizer de um italiano, é quite a statement. Mussolini, por sua vez, declarou Vida Longa um admirável espécime da raça núbia, como aqueles que serviam a Júlio César; e que, uma vez que o Sudão já pertencia a Sua Majestade Britânica, a Itália teria que buscar similares na vizinha Abissínia.

Outras turnês habituais incluíam várias metrópoles de tradição boêmia, como Barcelona, Amsterdã, Munique, Hamburgo e Berlim. Mas quis o destino, ou talvez os planos de alguém, que Lord Joe e Vida Longa estivessem justamente nessa última, em um momento em que nuvens negras voltavam a pairar sobre a Europa.

     

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