Berlim, 1933

Ernst Röhm descansava em um café de Berlim de mais um dia agitado de trabalho. Eram muitos as afazeres do comandante da Sturmabteilug, a SA, a tropa de choque nazista, os camisas pardas, que Röhm liderava na prática, embora o chefe máximo fosse, teoricamente, o próprio Adolf Hitler. Neste início de primavera de 1933, tinham acabado de conseguir que o parlamento, o Reichstag, aprovasse a Ermächtigungsgesetz, a Lei de Habilitação: uma espécie de equivalente dos Atos Institucionais da ditadura brasileira, que permitia a Hitler governar por decreto. Daí por diante, o Reichstag se tornou um parlamento decorativo, e o nazismo assumia plenos poderes ditatoriais em bases inteiramente legais. Ou quase.

A penúltima oposição à Lei, a do Partido do Centro Católico, tinha sido conseguida com promessas de concordata com o Vaticano e quotas para católicos no serviço público.  Restava a do Partido Social-Democrata, mas esses eram insuficientes para impedir-lhe a aprovação, muitos estando presos ou escondidos. De qualquer maneira, a SA cercara o prédio para intimidar alguém que por acaso ainda tivesse dúvidas.

Röhm saboreava a subserviência dos conservadores, o medo dos centristas e os vãos protestos dos social-democratas. Era divertido sentir como eles gostariam de chamá-lo de schwul, mas nenhum tinha coragem. Embora um schwul, Röhm se sentia muito mais macho do que todos eles.

No fundo, tinha sido até mais interessante antes, quando os camisas pardas e os comunistas se cobriam de porrada nas ruas. Pelo menos, os vermelhos eram machos também, e dava prazer enfrentá-los. Mas os comunistas eram passado. O prédio do Reichstag tinha sido incendiado, e acharam um jovem culpado bastante conveniente, não só comunista, como estrangeiro e talvez deficiente mental. Os comunistas tinham sido expulsos do parlamento, o Partido banido e suas propriedades confiscadas.

Pena, pensou Röhm, pois ele concordava com a maioria das idéias dos comunistas. Mas, assim que o presidente Marechal von Hindemburg, de glorioso passado mas já senil, partisse para o Walhalla, o Führer se consolidaria definitivamente, e seria possível voltar-se contra os plutocratas. Seria possível cumprir a parte Socialista do nome do Partido.

O pensamento de Röhm voou para os tempos da Grande Guerra, quando, pela primeira vez, ouvira falar dos Enviados de Asmodeu. Embora aleguem alguns que os Asmodeus foram formados a partir dos sacerdotes de Set, quando Ramsés II os arrancou do Domínio do Mal, as primeiras referências históricas a essa sociedade rastreiam sua origem ao famoso Batalhão Sagrado de Tebas. Formado por pares de amigos muito íntimos, cada um de seus membros lutava ferozmente para proteger o par, e mais ferozmente para vingá-lo, se tombasse em batalha. Foi assim que derrotaram todos os adversários, inclusive os poderosos espartanos, até tombarem diante de Alexandre da Macedônia, que entendia do assunto.

Alexandre incorporou os sobreviventes a sua guarda pessoal, colocando-os sob a direção de seu mais fiel companheiro, o conhecido Heféstion. Após a conquista da Pérsia, o poderoso eunuco Bagoas, que trocara a intimidade de Dario III pela de Alexandre, contribuiu para dar-lhes uma doutrina mística baseada em elementos do Oriente Médio, como o culto de Asmodeu, chefe dos demônios, principal auxiliar de Arimã, o Deus do Mal, e senhor do desejo carnal, cuja missão seria encher o coração dos homens de ira e desejos de vingança. Desde então a Companhia tem sido um corpo mercenário de fina flor, servindo a alguns dos mais poderosos conquistadores.

Ao longo dos séculos, os Asmodeus serviram de mercenários de elite para muitos governantes que simpatizavam com seu estilo, como tinha sido o caso de Frederico, o Grande, da Prússia. O pai de Frederico era um rei brutal, cuja principal paixão era um regimento de gigantes, formado por homens com o mínimo de 1,80 m de altura. Mesmo assim, achou ruim quando o jovem Frederico começou a apresentar maneiras efeminadas, e passou a tratá-lo brutalmente: uma tentativa de fugir de casa foi punida com a execução do jovem tenente Hans von Katte, que o acompanhava, na qualidade de melhor amigo. Ao tornar-se rei, finalmente, Frederico se separou da rainha, com quem tinha sido obrigado a se casar, e reformou o batalhão de gigantes nos moldes dos Enviados de Asmodeu. Colocou no comando seu novo protegido, o Conde Keyserling, com quem costumava brincar de Alexandre e Heféstion.

Frederico era também um intelectual refinado, amigo de Voltaire, poeta, dramaturgo e compositor. No seu suntuoso Palácio de Potsdam, o rei montou valiosa coleção de arte, com preferência para representações de atletas nus; mandou pintar afrescos sobre a lenda de Ganimedes; e erigiu um Templo da Amizade, dedicado à memória de partes de amigos famosos, como Aquiles e Pátroclo ou Orestes e Pílades. Aí Frederico recebia os principais intelectuais da Europa, tivessem ou não as mesmas preferências, mas a entrada de mulheres era proibida.

Bom, da parte intelectual, Röhm não entendia, e dispensava. Achava, inclusive, que a mania de Frederico de só escrever em francês era meio marica demais. Mas refundar o batalhão de gigantes era um belo sonho, embora a Grande Guerra, e depois o peso das reparações de guerra e da hiperinflação, só lhe deixassem para isso uma imensa legião de maltrapilhos e desapossados. Mas conhecera Adolf Hitler, um homem de enorme carisma, que poderia galvanizar a massa informe, e entrou para o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Röhm organizou a SA a partir de um pequeno núcleo de Asmodeus, com o objetivo de servirem de guarda-costas de Hitler, e de enfrentarem nas ruas os também turbulentos comunistas.

Röhm estava ao lado de Hitler durante o Putsch da Cervejaria, em 1923, e ambos foram condenados a pouco mais de um ano de prisão. Na cadeia, estreitaram a amizade, seja lá o que isso signifique, e Hitler aproveitou para escrever Mein Kampf. Ao saírem, tentaram reorganizar o Partido Nazista e a SA, mas a Alemanha havia vencido a hiperinflação, os vencedores da Guerra haviam aliviado um pouco a cobrança das indenizações, e o governo do chanceler Stresemann trazia uma breve era de prosperidade. A popularidade dos nazistas diminuiu, e surgiram divergências entre Röhm e Hitler.

Mais importante, os dirigentes máximos dos Enviados de Asmodeu haviam ordenado a Röhm que se afastasse de Hitler, principalmente depois que leram Mein Kampf. Os Asmodeus já se tinham envolvido em situações muito difíceis ao longo da História, apoiando governantes como Nero, ou deixando-se envolver em escândalos, como o dos Templários. A tradição da Companhia dizia que as entidades malignas que eles cultuavam, como Set e Asmodeu, seriam fontes de poderosas forças se mantidos sob férreo controle, mas podiam facilmente arrebatá-los novamente para o Lado do Mal, se a disciplina fosse minimamente relaxada.

Röhm finalmente assentiu, e partiu para a Bolívia, onde trabalharia como consultor militar, usando o prestígio da patente de Coronel do Exército alemão, que ainda possuía.

     

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