Bolívia, 1929

Ernst Röhm bem que tentou formar um exército boliviano capaz de pelo menos enfrentar eficazmente o Paraguai, na guerra que se avizinhava. A Bolívia perdera para o Brasil, poucas décadas antes, o Acre, rico em borracha; e, décadas antes ainda, perdera para o Chile a saída para o mar, juntamente com o salitre. O Paraguai também perdera metade do território para o Brasil e a Argentina. Nenhum dos dois queria passar pela suma humilhação de perder para um vizinho igualmente pobre o vasto Chaco, que se supunha rico em petróleo.

Assim, a elite européia da Bolívia, que incluía muitos descendentes de alemães, estava disposta a pagar mercenários qualificados; o próprio Ministro da Guerra boliviano era um oficial alemão. Mas não estava disposta a permitir que seus filhos fossem convocados para a luta. Portanto, Röhm tinha que tentar fazer uma tropa de um punhado de índios pobres, famintos e iletrados, que sequer se sentiam cidadãos bolivianos. Não admira que, em uma quente tarde no Chaco, enquanto descansava em sua tenda, procurasse consolo nas fileiras de pó branco, cuidadosamente ajeitados sobre um espelho com uma navalha. Preparava-se para aspirá-las com um canudinho, quando ouviu a voz de um estranho.

— Vejo que meu caro Coronel Röhm partilha das opiniões do Dr. Freud quanto aos méritos da cocaína.

Röhm sobressaltou-se e tossiu, espalhando o precioso pó branco. Isso o deixou ainda mais irado que a intrusão e a comparação com aquele charlatão judeu.

Levantou a cabeça, e viu diante de si um estranho magro e sorridente, com um elegante terno de linho branco, bigode bem penteado e uma expressão um tanto sarcástica. Tinha a aparência semítica; talvez, um judeu. Röhm levou a mão ao coldre, pensando em encostar o revólver na cara do sujeito, ou talvez expulsá-lo a pontapés. Mas não fez nada disso; os olhos negros do estranho eram hipnóticos, e o impediram. Röhm apenas conseguiu dizer:

— Não deve ter sido difícil furar minha segurança, formada por índios estúpidos. Suborno?

O estranho surpreendeu Röhm, respondendo em excelente alemão:

— Não, meu caro Coronel. Funcionaria também, mas prefiro convencer as pessoas pela argumentação.

— Pois, se veio me vender armamentos, procure primeiro meus patrocinadores em La Paz, ou, melhor ainda, na sede da Standard Oil. Verba, que é bom, não tenho.

A expressão do estranho continuava plácida, e ele já se sentara, sem ser convidado. Respondeu afável:

— Meus negócios ocasionalmente envolvem armamentos, mas não é meu assunto de hoje. E não estou a serviço da Standard Oil, ou, já que falou em suborno, nem da Shell, que financia os paraguaios.

— Então diga a que veio, e deixe-me em paz, que aborrecimentos já os tenho de sobra, com este exército de maltrapilhos.

— Muito simples, meu coronel. Trago notícias. Elas demoram muito para chegar neste fim de mundo, mas disponho de meios rápidos de comunicação e transporte.

Röhm ia abrindo a boca quando o estranho colocou alguns jornais na frente dele. Jornais de ontem, de Nova Iorque. O inglês de Röhm era suficiente para entender as noticias sobre derrocada da Bolsa, pânico, suicídio de investidores. Finalmente, comentou:

— Bem feito para os plutocratas.

— Partilho com o prezado coronel o desprezo pela Confraria de Csífodas, mas, como bem sabem vocês nazistas, eles podem ser aliados úteis, nas devidas circunstâncias. Enfim, eles logo tratarão de repassar a conta para o proletariado e para o resto do mundo. Talvez Stresemann tenha tido sorte, por morrer há poucas semanas, um tanto prematuramente, aliás. A breve Era Dourada da República de Weimar logo chegará ao fim, e dias difíceis voltarão novamente à Alemanha.

E arrematou, mais suavemente ainda:

— Portanto, meu coronel, está na hora de voltar. A nação alemã e Herr Hitler logo precisarão dos seus bons serviços. Depois, esta guerra está perdida, e a Bolívia será mais uma vez humilhada... O amigo certamente não teme as balas paraguaias, mas deve temer a malária, ou quem sabe uma emboscada, como a que levou Butch Cassidy e o Sundance Kid...

Röhm não perguntou por que ele dizia isso, mas acreditou. Entretanto, respondeu hesitante:

— Não posso...

— Sim, entendo que o Coronel respeite as decisões de seus superiores Asmodeus, mas...

Isso deixou Röhm mais boquiaberto que todo o diálogo anterior. Esse estranho sabia do seu segredo mais íntimo, que ele jamais confidenciara sequer ao Führer! Mas o intruso continuou:

— Sem hipocrisia, meu coronel. Talvez os considere como homens sábios e extremamente poderosos, mas sou de um grupo ainda mais antigo e respeitado. Para nós, eles não passam de patéticos dissidentes, tentando aplicar uma ética que é essencialmente incompatível com a profissão que escolheram. Una-se a nós, e não só lhe daremos cobertura contra qualquer eventual represália de seus antigos chefes, como o guiaremos pelo caminho da glória!

Röhm não conseguia deixar de se sentir um jovem soldado, magnetizado pelas palavras de um comandante experiente. O estranho prosseguiu:

— Os Asmodeus pregam o domínio das forças do Mal, colocando-as a serviço da busca da Glória. Para nós, distinguir entre Bem e Mal já é sinal de fraqueza; para o Forte, são distinções sutis e inúteis, elaborados por filósofos com falta do que fazer e recicladas por religiosos quando lhes convém.

E finalizou, com os olhos negros parecendo atingir as profundezas da alma de Röhm:

— Venha conosco. Venha conhecer o Lado Escuro da Força.

Meses depois, Röhm voltou à Alemanha. Fez as pazes com Hitler, e aceitou o convite para ser o chefe do estado-maior da renovada Sturmabteilung. Não se sabe até que ponto a ajuda prometida pelo estranho contribuiu, mas, em pouco tempo, transformou um bando de arruaceiros em uma poderosa força para-militar, muito mais numerosa do que o exército regular. Pela violência, semeou o terror entre os inimigos do nazismo, pavimentando o caminho para a ascensão e consolidação do Führer.

     

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