O Caminho do México

Como mencionei antes, apenas em anos recentes os arqueólogos descobriram a importância da cultura olmeca como precursora das grandes culturas meso-americanas. O centro dessa cultura corresponde aos atuais estados de Veracruz e Tabasco, no sul do Golfo do México, aproximadamente a meio caminho entre Tenochtitlán, a atual Cidade do México, sede dos astecas, e a península do Yucatán, um dos principais centros da civilização maia. Na época da expedição de Necao, os povos maias ainda estavam no começo de sua existência. Os astecas só viriam muito tempo depois. Embora não tenham formado um império tão grande, artefatos olmecas foram achados do sul dos Estados Unidos até El Salvador, evidenciando uma extensa rede comercial.

A narrativa de Ibrahim al-Dajaj sustenta algumas hipóteses difusionistas mais populares, como a de que as famosas cabeças gigantes olmecas representariam africanos, e de que a estela com uma figura de barbas retrataria um fenício ou grego. Esses artefatos estão no grande complexo arqueológico de La Venta, que, pela descrição, teria sido a cidade onde a expedição de Necao teria chegado. Lá fica também a Grande Pirâmide mencionada na narrativa, hoje transformada em um morro coberto pela vegetação.

Para muitos arqueólogos, os olmecas teriam sido os primeiros em muitos traços comuns das civilizações mesoamericanas: o jogo com bolas de borracha, o calendário, o uso do zero (como se sabe, ignorado por gregos e romanos), o sistema de escrita hieroglífica, muitas das divindades, inclusive a Serpente Emplumada, os auto-sacrifícios e, talvez, os sacrifícios humanos. Tal como na narrativa, moravam em casas de argila, mas os monumentos eram construídos com pedras trazidas de longe; o milho era a base da alimentação; os cachorros, uma iguaria apreciada; e os jaguares eram animais particularmente venerados.

Eis aqui um ponto muito intrigante. Até o momento em que escrevo, os arqueólogos não acharam indícios de que houvesse sacrifícios humanos entre os olmecas. O caráter pacífico dos olmecas é sugerido também pela escassez de monumentos de comemoração guerreira, tão comuns na maioria das antigas culturas. Antigas? Bem, representações de cabeças cortadas estão fora de moda, mas monumentos heróicos e armamentos exibidos em praça pública, não.

Como se sabe, os sacrifícios humanos foram um traço sangrento das culturas maia e asteca. Mas, entre os olmecas, foram descobertos apenas indícios de auto-sacrifícios, como cortes e ferimentos com espinhos, que depois se tornariam também comuns entre os maias, tal como em alguns grupos religiosos do Velho Mundo. Os poucos indícios existentes são de certos esqueletos infantis achados entre oferendas, e certas estátuas de bebês-jaguar, que pareciam desempenhar um papel importante na religião deles.

Ora, os fenícios eram conhecidos pelos sacrifícios de crianças; a inscrição da Pedra da Paraíba narra exatamente que um “jovem” teria sido sacrificado aos deuses, em prol do sucesso da expedição. Seus descendentes cartagineses, enquanto disputavam com Roma o domínio do Mediterrâneo, continuavam a atirar crianças nas fornalhas ardentes de Moloch. Teriam os fenícios contaminado os olmecas? Se assim foi, teriam os Inimigos conseguido introduzir a monstruosidade deles, tomando partido justamente de um dos mais importantes feitos dos seguidores da Nobre Ave?

Por mais abominável que pareça aos nossos olhos, esse seria um caminho lógico para introduzir o conceito. O infanticídio era uma prática comum para livrar-se de crianças indesejadas, em muitos grupos e muitas épocas: na Roma Imperial, em povos primitivos da época moderna, e dizem que até hoje, em certos lugares da China. Associá-lo a uma prática religiosa seria uma maneira de justificá-lo e conferir-lhe um propósito supostamente nobre; coisa que, a julgar pelas alusões já feitas às práticas dos Inimigos, seria uma das táticas mais típicas deles.

Das crianças indesejadas, o passo seguinte da lógica levaria aos prisioneiros de guerra que não interessasse escravizar. Se massacres de prisioneiros ainda acontecem, apesar de todas as leis e convenções civilizadas em contrário, muito mais aconteciam no passado. Outro caso perfeito para ser justificado por algum significado religioso. Assim, os maias passaram a usar os prisioneiros como vítimas preferenciais e, finalmente, inverteu-se a lógica. No tempo dos astecas, faziam-se guerras para capturar vítimas sacrificais; às vezes, reis da época dos astecas, de comum acordo, travavam entre si guerras limitadas, com o único objetivo de abastecer os altares; eram chamadas de Guerras das Flores, pelo caráter supostamente benevolente.

Foi entre os astecas que os sacrifícios atingiram o paroxismo. Segundo narraram aos historiadores espanhóis, oitenta mil pessoas teriam sido sacrificadas em uma única ocasião, nas pirâmides de Tenochtitlán, pouco antes da chegada dos Conquistadores. Cortés soube explorar o ódio que os povos dominados tinham pelos astecas, para conseguir conquistar um grande império com apenas um punhado de aventureiros. Não foram as armas de fogo que fizeram a diferença, pois, naquela época, não eram tão superiores às flechas; foram os incontáveis exércitos de povos que se aliaram aos espanhóis, trocando pelo menos o Mal certo pelo ainda incerto. Minhas fontes da Grande Fênix diriam que os Inimigos apenas evoluíam a técnica: saíam de cena as pirâmides sacrificais, entravam as fogueiras da Inquisição.

Sobre a narrativa de Águia de Fogo, é interessante notar que aparece novamente a dicotomia entre os devotos de aves e répteis, representados pelo Clã da Águia e pelo Clã da Serpente, que finalmente são sintetizados na Serpente Emplumada. Aparecem a fuga para o deserto e uma longa jornada de provações, temas comuns a muitas religiões: o Êxodo, a Tentação no Deserto, a Hégira, a Fuga de Siddhartha. Os Chichimecas, o Povo Cão, enfrentaram ferozmente tanto os astecas quanto os espanhóis, e seus remanescentes existem até hoje. O Caminho dos Demônios foi usado pelos espanhóis para ir do México à Califórnia, e fazia jus ao nome de Camino del Diablo, pelos perigos que levaram à morte muitos viajantes menos preparados. Hoje em dia, continua popular entre os adeptos das trilhas radicais em veículos 4 x 4.

Mas, certamente, o momento culminante dessa narrativa é o preciso momento do Sacrifício da Nobre Ave, o mais espetacular de todas as Encarnações que já me tinham narrado. Aparece a águia com uma serpente no bico, tema de uma das mais famosas lendas astecas: o sinal que teria indicado aos mexicas errantes onde deveriam construir sua capital, a majestosa Tenochtitlán, e que, por isso, figura hoje na bandeira do México. Mais um símbolo da dualidade entre Águia e Serpente, traço comum das concepções mais sagradas de astecas, maias e olmecas. E é esse símbolo que conduz os fugitivos em sua Longa Marcha, até o cenário do cataclismo.

Neste ponto, o leitor incrédulo perguntará: mas onde está a cratera deixada por esse evento? Se foi um pequeno asteróide, onde estão os restos dele? Para responder, o melhor é compararmos com um evento bem mais recente: a explosão que aconteceu em Tunguska, na Sibéria, em 1908.

A força dessa explosão é estimada entre 10 e 20 megatons, cerca de mil vezes a potência da bomba de Hiroshima. O terremoto resultante chegou ao nível 5 da escala Richter; 80 milhões de árvores foram derrubadas, em uma área de 2.000 quilômetros quadrados. Muito poucas pessoas devem ter sido atingidas, pois a região do evento é bastante deserta; mas, se esse evento tivesse acontecido menos de cinco horas depois, teria aniquilado a cidade de São Petersburgo, situada na mesma latitude. Nenhuma pedra residual foi encontrada, indicando que o objeto explodiu no ar, em uma altitude entre cinco e dez quilômetros.

Os cientistas debatem há décadas se o evento foi causado por um asteróide ou um cometa, havendo vários argumentos pró e contra ambas as hipóteses. Isso tem levado à formulação de outras hipóteses mais exóticas. Alguns especulam que poderia ter sido um evento termonuclear: uma espécie de bomba de hidrogênio natural, causada talvez pela fusão do material de um cometa rico em água pesada, disparada por uma explosão mecânica particularmente violenta. Entretanto, não se conhecem mecanismos naturais capazes de provocar mecanicamente as condições de temperatura e pressão necessárias para disparar a fusão nuclear.

Ou sim? Experimentos recentes, ainda controversos, afirmam ter conseguido provocar a fusão nuclear em laboratório, através da produção de pressões sônicas extremas em fluidos. O leitor se lembrará de que Fuk Yu Two invocou esses experimentos, para justificar como um Grande Mestre do Legítimo Dragão conseguiria emitir um Peidouken nuclear.

Outras hipóteses para explicar o evento de Tunguska são ainda mais exóticas. Por exemplo, a de que ele teria sido provocado por um buraco negro microscópico. Buracos negros “normais” resultam do colapso de estrelas muito maiores do que o Sol, mas especula-se que buracos negros microscópicos poderiam ter-se formado no big-bang, e vagarem por aí até hoje. Mas, nesse caso, o buraco negro deveria ter atravessado toda a Terra, e saído do lado oposto em outra explosão.

Outra hipótese seria a da queda de um pedaço de anti-matéria, mas não há evidência alguma de que exista anti-matéria livre nesta região de Universo. Se houvesse, eventos de aniquilação de anti-matéria seriam observados com freqüência, nas forma de emissões de raios gama de energia muito alta.

O que leva à hipótese mais exótica e mais cultivada pelos adeptos de teorias esotéricas: a explosão de uma nave espacial alienígena. Alguns investigadores russos alegam ter recuperado resíduos de veículos espaciais, mas esses podem ser explicados simplesmente pelo fato de que alguns artefatos lançados do Cosmódromo de Baikonur caíram precisamente nessa região.

Comparando-se a narrativa de Águia de Fogo com o evento de Tunguska, vê-se que as várias hipóteses são aplicáveis, com os mesmos prós e contras: o asteróide, o cometa, a detonação termonuclear, com o buraco negro e a anti-matéria igualmente bem menos plausíveis. E, numa categoria própria, a nave espacial, que nos levaria a supor algum tipo de envolvimento alienígena em um Sacrifício da Nobre Ave. Bem fantasioso, mas eu gostaria de saber o que meus amigos da Ordem teriam a comentar quanto a essa hipótese. Se é que não me deixariam com mais uma de suas misteriosas evasivas.

Entretanto, no caso daquela narrativa, há mais um elemento para o qual, pelo menos até hoje, não foi encontrado um análogo em Tunguska. A misteriosa caverna, onde “o que vimos lá dentro não pode ser descrito com meras palavras”. E o que essa Caverna teria a ver com aquelas palavras que ouvi de Donald Cockburn em Londres, quando penetrei na Sede Mundial?

Algo tão transcendental que tem de ser guardado no mais estrito segredo, até que a Humanidade esteja preparada para essa Revelação. Mesmo os altos sacerdotes de nossa Ordem só têm conhecimento quando estritamente necessário.

E, logo em seguida, a alegação de que as aparições de discos voadores no Oeste americano, nos anos quarenta e cinqüenta, teriam sido encenadas pela Ordem, para encobrir aquele segredo. E a evasiva quando mencionei Roswell e a Área 51.

Em suma, eu tinha muitas perguntas a fazer em meus próximos contatos com líderes da Grande Fênix. E a curiosidade já me estava fazendo esquecer os perigosos momentos vividos em Manaus, Xian e Roma. Para tentar obter algumas respostas, eu também teria que tomar o caminho do México.

Tive que esperar por algum tempo. Até que, um belo dia, Avelino Falcão me avisou que certos problemas tinham sido resolvidos, e que Gloria León me esperava no México. E foi assim que, poucos dias depois, eu estava desembarcando na capital mexicana.

Fazia muitos anos que eu tinha vindo aqui, e até não me incomodei muito com o aviso de Avelino de que, mais uma vez, deveria esperar a aplicação do Princípio de Hollywood: não os procure, eles o acharão. Ou do equivalente da telenovela mexicana, pois Gloria León era uma atriz de telenovelas, bem conhecida no país dela e, no Brasil, conhecida por quem assista a esse tipo de programação. Não era meu caso; de telenovelas, sei no máximo o que dá para inferir em alguns segundos, quando passo perto de uma televisão ligada em uma delas. Geralmente, é o suficiente para entender a maior parte de uns duzentos capítulos.

Pela primeira vez, eu iria encontrar uma líder da Grande Fênix que era uma espécie de celebridade, fora da Ordem. Por isso, não ficou claro se a incerteza quanto à data e local do encontro se devia às redobradas precauções da Ordem, ou simplesmente aos compromissos artísticos dela. Enquanto esperava, eu tinha muito que ver e rever na Cidade de México: segundo dizem, a cidade tem cento e sessenta museus, mais do que qualquer outra cidade do mundo.

Dentre esses museus, nada mais deslumbrante que o Museu Nacional de Antropologia, o melhor do mundo no gênero, em minha opinião e na de muitos. Passei lá um dia inteiro, admirando as preciosidades astecas, maias e olmecas. No fim da tarde, quando voltei para o hotel, havia um recado de Gloria. Pedia que eu fosse à noite a uma praça da Zona Rosa, e esperasse em um dos bares da região. Ela me procuraria lá, embora me avisasse que, devido a certos fatores que não estavam sob controle, não poderia garantir com certeza que realmente iria. Se ela não chegasse até a meia-noite, eu deveria voltar para o hotel, e tentaríamos outro dia.

     

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