Ecos de uma Expedição

Durante as semanas seguintes aos trágicos acontecimentos em Roma, não tive muitas notícias do que acontecia na Ordem da Grande Fênix. Tive alguns contatos com Avelino Falcão, mas ele estava monossilábico; dizia apenas que a situação era muito séria e que, para maior segurança de todos, era melhor que eu ficasse no Brasil, pelo menos por enquanto. Usei o tempo para pesquisar alguma coisa sobre a espantosa expedição narrada por Ibrahim al-Dajaj. Se aquilo fosse verdade, ainda que parcialmente, revolucionaria a História conhecida.

Ironicamente, daria razão a muitos crédulos, que acreditam em teorias de contatos transoceânicos pré-colombianos, entre povos dos mundos convencionalmente chamados de Velho e Novo. Essas teorias existem desde o Século XVI, geralmente como parte de uma ideologia difusionista; isto é, partiam da suposição de que civilizações avançadas como os Incas, Maias e Astecas não poderiam ter-se originado de forma completamente independente das civilizações da Europa, Ásia e África. Havia também motivações religiosas, como no caso dos Mórmons, que acreditam que nativos norte-americanos descendem de judeus que fugiam do cativeiro babilônico. Para não falar dos que gostam de imaginar uma expedição do Rei Salomão ao Brasil, que certa vez foi até enredo de escola de samba, ou de quem enxerga monumentos fenícios neste ou naquele ponto do Maranhão, do Piauí ou da Paraíba, alguns dos quais são realmente sítios arqueológicos, e outros apenas lugares de algum interesse turístico.

Por outro lado... as viagens dos Vikings à América foram consideradas como legendárias, durante séculos. Até que foram descobertos os restos de uma colônia viking, no sítio arqueológico de L’Anse aux Meadows, no Canadá.

  A circunavegação da África, empreendida por navegadores fenícios contratados pelo faraó Necao II, é realmente um dos enigmas da História. Dela existe apenas um registro, devido a Heródoto, que apresentamos a seguir:

Quanto à Líbia (nome antigo da África), sabe-se que é banhada pelo mar por todos os lados, exceto por onde se liga à Ásia (o canal de Suez, é claro, não existia). A descoberta foi feita por Necao, rei do Egito, que, ao desistir do canal que ele tinha começado entre o Nilo e o Golfo Árabe (Mar Vermelho; atualmente o nome é usado pelos árabes para designar o Golfo Pérsico), enviou navios tripulados por fenícios, com ordem de ir até os Pilares de Hércules, e retornar ao Egito passando por eles, através do Mediterrâneo. Os Fenícios saíram do Egito pelo Mar da Eritréia e rumaram para o oceano do sul (Oceano Índico). Quando o outono chegava, aportavam onde quer que estivessem, e, tendo semeado trigo, esperavam até que estivesse pronto para a colheita.

Tendo-o colhido, partiam de novo, e assim se passaram dois anos. No terceiro ano, passaram os Pilares de Hércules e conseguiram voltar ao Egito. E relataram uma coisa em que não posso acreditar, mas talvez outros possam: que ao contornarem a Líbia, tinham o Sol à direita!

 A última frase, na qual Heródoto manifesta descrença em relação a uma parte do relato, é a principal razão pela qual muitos historiadores atuais acreditam na veracidade dele. Com efeito, quando se viaja para o Oeste, como acontece com quem passa pelo sul da África na direção desses navegadores, só é possível ver o Sol à direita estando-se no Hemisfério Sul! E, na época, não se sabia que a África se estendia abaixo do Equador.

No relato de Ibrahim al-Dajaj, vê-se que o narrador também se espanta com a inversão das estações ao mudar-se de hemisfério. Há também referência às baleias, freqüentadoras do sul da África e pouco conhecidas dos povos mediterrâneos.

As proezas náuticas dos fenícios são bastante conhecidas, assim como as colônias que fundaram na Península Ibérica e no Norte da África. Ali, na atual Tunísia, fundaram a poderosa colônia de Cartago, que, como se sabe, quase chegou a destruir a República Romana. Um século depois da expedição de Necao, o navegador cartaginês Hannon comandou uma frota de sessenta navios, que chegou até a região equatorial da África; possivelmente, aos países atualmente chamados de Nigéria, Camarões e Gabão. Um relato de Plínio, o Antigo, chega a dizer que Hannon também circunavegou a África, chegando até a Arábia.

Da expedição de Hannon sobreviveu o Périplo, uma tradução para o grego de um relato que o navegador teria depositado em um templo de Cartago. Nesse relato, ele narra um encontro com uma tribo de homens ferozes e peludos, mencionando o nome dado a eles pelos nativos da região: gorilas.

Quanto à narrativa de que parte da frota de Necao teria chegado até a América, é uma das prediletas dos adeptos da chamada História Alternativa, que acreditam em contatos entre os antigos povos mediterrâneos e os povos americanos. Os fenícios, é claro, por suas famosas navegações, são sempre os primeiros candidatos. Não são os únicos: o Livro de Mórmon afirma que dois grupos judaicos, os Nefitas e os Mulequitas[1] , vieram para a América fugindo dos babilônios; uma inscrição achada em Bat Creek, Tennessee, atribuída aos Cherokee, é tida por alguns como escrita em uma forma arcaica de hebraico; alega-se que navegantes gregos teriam chegado à América, no Século III A.C.; há relatos de moedas romanas achadas nos Estados Unidos; de um abacaxi (que é nativo da América) representado em um mural de Pompéia; e o caçador de tesouros Robert Marx alega ter encontrado ânforas romanas no fundo da Baía de Guanabara. Marx alega também ter sido proibido de trabalhar no Brasil, e que o governo brasileiro teria mandado despejar areia no local onde as ânforas teriam sido achadas, não se sabe bem por que razão.

Mas a parte do leão fica mesmo como os fenícios. Começando com as várias menções feitas na Bíblia ao rico país de Ofir; as especulações sobre a localização desse país geralmente apontam para o Sul da África ou para a Índia, mas Joãozinho Trinta tratou de colocá-lo na Amazônia, no enredo que há pouco mencionei. Dali Salomão teria recebido muitas riquezas, trazidas por uma expedição conjunta com seu amigo e aliado Hirão I, rei de Tiro, principal reino fenício:

26. Equipou também o rei Salomão uma frota em Asiongaber, perto de Ailat, na praia do mar Vermelho, na terra de Edom. 27. Hirão mandou seus próprios servos nessa frota, marinheiros experimentados em náutica, para ajudar os homens de Salomão. 28. Foram a Ofir, de onde trouxeram quatrocentos e vinte talentos de ouro, e os apresentaram ao rei Salomão. (I Reis, 9)

Há também os que julgaram ver uma inscrição fenícia na Pedra da Gávea, e é sempre citado o suíço ou austríaco Ludwig Schwennhagen, que teria imaginado uma origem fenícia para o Parque Nacional das Sete Cidades, grande atração turística do Piauí. Mas nenhuma dessas especulações supera o fascínio da Pedra da Paraíba, história que tem tido reviravoltas surpreendentes desde o Século XIX.

Em 11 de setembro (?!) de 1872, uma pessoa chamada (ou que dizia se chamar) Joaquim Alves da Costa enviou ao Marquês de Sapucaí, hoje sambódromo, mas então presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, uma carta com a cópia de uma inscrição. A carta explicava que a inscrição tinha sido copiada de uma pedra, achada na fazenda dele, em “Pouso Alto, perto de Paraíba”. Uma primeira dúvida é onde seria esse lugar. Geralmente, pensa-se na cidade mineira de Pouso Alto, que teria recebido do Imperador, sabe-se lá por quê, a denominação de “a velha e fofoqueira Pouso Alto”; de fato, fica a poucos quilômetros da fronteira de São Paulo, a partir da qual a Serra da Mantiqueira desce até o Vale do Paraíba. Mas existem muitos lugares chamados Pouso Alto, e não se pode descartar o estado da Paraíba, onde inclusive existem inscrições rupestres tidas por misteriosas.

Havia, na época, bastante interesse em estudos semíticos por parte dos eruditos brasileiros, talvez por influência da Maçonaria, notoriamente poderosa no Império. Uma lenda maçônica considera como um dos ancestrais da ordem a Hirão Abif, figura na qual se confundem o rei Hirão I de Tiro, citado acima, e um arquiteto do mesmo nome, que teria sido enviado pelo primeiro, para ajudar o real amigo Salomão na construção do Templo. Deste, diz a Bíblia:

13. O rei Salomão mandara vir de Tiro um homem que trabalhava em bronze, Hirão, 14. filho de uma viúva da tribo de Neftali, cujo pai era de Tiro. Hirão era talentoso, cheio de inteligência e habilidade para fazer toda espécie de trabalhos em bronze. Apresentou-se ao rei Salomão e executou todos os seus trabalhos. (I Reis 7)

E, um pouco adiante:

23. Hirão fez também o mar de bronze, que tinha dez côvados de uma borda à outra, perfeitamente redondo, e com altura de cinco côvados; sua circunferência media-se com um fio de trinta côvados.

Esse versículo sobre o famoso “mar de bronze” mostra que aqueles que crêem na verdade literal da Bíblia são obrigados a acreditar que o número π vale exatamente 3. De fato, no Século XIX, o legislativo do estado americano de Indiana chegou a aprovar uma lei que decretava esse valor para π, com base no argumento bíblico.

Voltando ao caso da inscrição enviada ao Marquês de Sapucaí, ela chegou às mãos de Ladislau Netto, um dos nomes mais ilustres da ciência brasileira naquele século, então diretor do Museu Nacional. Netto era um difusionista convicto, e, notando a semelhança da inscrição com caracteres fenícios, enviou uma cópia a Ernest Renan, um dos grandes eruditos da época, filólogo e estudioso de assuntos semíticos. Segundo a análise de Renan, o idioma fenício usado na inscrição tinha vários erros gramaticais, fato que o levou a concluir que se tratava de uma falsificação.

Algumas teorias da época atribuíram a falsificação a interesses políticos do Império, ligados à Maçonaria, a quem interessaria argumentar que o Brasil tivera contatos com antigas civilizações, muito antes da colonização portuguesa. Seja como for, o tal “Joaquim Alves da Costa” nunca apareceu, embora tenha sido procurado por Ladislau Netto, “por meios tanto oficiais quanto privados”. A pedra, que segundo a carta original já tinha sido partida por escravos em quatro pedaços, nunca apareceu, e correram rumores de que teria desaparecido em uma revolta desses escravos.

O assunto ficou nesse ponto por muitas décadas. Acontece que Ladislau Netto tinha enviado correspondência a respeito também ao bibliógrafo americano Wilberforce Eames, que mais tarde se tornaria diretor da Biblioteca Pública de Nova Iorque. Uma dessas cartas foi arrematada em um leilão pelo Dr. Jules Piccus, que se tornaria professor de estudos hispânicos na Universidade de Massachussetts, em Amherst. Piccus se interessava pelas influências semíticas na cultura ibérica, e, sendo também conhecedor do hebraico e da cultura judaica, passou a estudar o assunto. Vieram-lhe dúvidas sobre a análise de Renan, e resolveu encaminhar o trabalho ao Dr. Cyrus Herzl Gordon, um dos grandes especialistas em estudos semíticos do Século XX.

Gordon analisou novamente o texto, à luz de novos conhecimentos sobre os idiomas da região fenícia, alguns dos quais descobertos por ele mesmo, que também trabalhava em campo, como arqueólogo. Aliás, seus livros sobre um desses idiomas, o ugarítico, são considerados como a principal contribuição científica dele. Gordon advogou várias teses bastante controversas, como uma possível origem comum dos idiomas grego e hebraico, e a natureza hebraica das inscrições de Bat Creek. Em relação à inscrição brasileira, concluiu que os supostos erros gramaticais descobertos por Renan seriam, na realidade, detalhes lingüísticos desconhecidos no Século XIX.

Chegou, portanto, a uma conclusão semelhante à que muitos têm atualmente sobre a narrativa de Heródoto: exatamente esses detalhes provariam que não se tratava de uma fraude, pois nenhum lingüista do Século XIX teria conhecimento deles: My conclusion that the text is genuine is based on the fact that it contains readings unknown in 1872 but which are now authenticated by inscriptions discovered during the century that has elapsed since then. To deny this means crediting a forger with the clairvoyance to anticipate a hundred years of discovery in a highly technical field: an alternative that no rational person who knows the facts of the case should elect.[2]

Outros orientalistas discordaram da conclusão de Gordon, mas não parece haver um consenso definitivo, exatamente porque tão poucas pessoas dominam os antigos idiomas semíticos com a profundidade necessária para que se tire uma conclusão definitiva.

Para a inscrição, Gordon forneceu uma tradução para o inglês, que eu traduzo para o português a seguir:

 Somos cananeus de Sídon, da cidade do Rei Mercador. Fomos arremessados a esta terra distante, uma ilha de montanhas. Sacrificamos um jovem aos deuses e deusas celestiais no décimo-nono ano de nosso poderoso Rei Hirão, e embarcamos em Eziongeber, no Mar Vermelho. Viajamos em dez navios e estivemos ao mar durante dois anos, ao redor da África. Então fomos separados pela mão de Baal, e deixamos nossos companheiros. Assim chegamos aqui, doze homens e três mulheres, na Ilha de Ferro. Sou eu, o Almirante, alguém que fugiria? Não! Que os deuses e deusas celestiais nos favoreçam!

Gordon comenta que a expressão “a mão de Baal” poderia significar um evento acidental, como uma tempestade, mas acha mais provável que signifique que os navios destinados à América teriam sido escolhidos por sorteio. Se acreditarmos na narrativa de Ibrahim, poderia ser uma alusão à suposta inspiração divina da viagem (Baal significa Senhor). Para mim, lembra o gol da “mão de Deus”, do Maradona.

Quanto à “Ilha de Ferro”, trecho que em outras traduções aparece como “praia que eu controlo”, Gordon apresenta argumentos lingüísticos em favor da referência ao ferro, metal cujo minério seria muito procurado pelos fenícios. Lembra a analogia com Hy-Brazil, a ilha paradisíaca do mito celta, cujo nome também significaria “Ilha de Ferro”. Há quem ache que os portugueses deram esse nome ao Brasil por causa desse mito, sendo a hipótese mais convencional, baseada no nome da madeira pau-brasil, apenas uma conseqüência posterior. Esse ponto me lembrou também do mito da ilha de ferro, que figura em um dos Contos da Mil e Uma Noites. Seria uma ilha de material magnético, que destruía os navios que se aproximassem, arrancando os pregos deles.

Gordon chega a argumentar em favor da hipótese de que Pouso Alto se trata da cidade mineira, invocando a riqueza em minério de ferro do estado de Minas Gerais. Essa parte, entretanto, não me parece convincente, pois Pouso Alto fica a uns quatrocentos quilômetros da região ferrífera do estado, que começa na vizinhança de Belo Horizonte. Se julgarmos que foi a expedição narrada por Ibrahim quem deu origem à inscrição, a escolha mais lógica é o estado da Paraíba, pela latitude e maior proximidade da África.

Vamos admitir, então, pelo menos para raciocinar, que a inscrição da Pedra de (da? do?) Paraíba seja autêntica, como acreditava o prof. Gordon. Seria essa a expedição narrada nos documentos da Grande Fênix? Cyrus Gordon diria que não. Ele acreditava que o rei Hirão referido fosse Hirão III, que viveu cerca de meio século depois. Hirão I, o amigo de Salomão, viveu mais de três séculos antes, e Hirão II mais de um século antes. Pelo menos, essa é a lista dos reis de Tiro, compilada pelo famoso historiador judeu romanizado Flávio Josefo, que, por sua vez, dizia ter-se baseado em uma compilação de Menandro de Éfeso. Nessa hipótese, a expedição de Necao não teria sido a única viagem de circunavegação da África, nem a única expedição fenícia a chegar à América.

Por outro lado, a inscrição alega que os navegantes teriam vindo de Sidon, e não da rival Tiro. Além disso, Hirão era um nome comum nas línguas semíticas, inclusive o hebraico, significando nobre, o que explica o fato de que dois personagens importantes e contemporâneos na narração bíblica tivessem o mesmo nome. Outra hipótese seria, então, que o Rei Mercador referido fosse algum importante personagem do comércio, talvez um dissidente da Confraria de Csífodas, que teria feito aliança com a Ordem da Grande Fênix. Possivelmente, em troca de favores junto ao faraó, pois, na época, os fenícios viviam um interregno de algumas décadas, no qual a dominação assíria tinha sido substituída pela egípcia.

Se a expedição de Ibrahim realmente existiu, e se foi nela que foi gravada a inscrição da Pedra da Paraíba, então, pode-se imaginar que não só o ponto de chegada na América teria sido na costa do atual estado da Paraíba, como que a “Ilha de Ferro” seria aquela em que os expedicionários teriam sido encurralados por índios inimigos, e depois resgatados pelos mercenários gregos. Quem sabe, teria esse nome pela cor de ferrugem, comum em muitas praias brasileiras. O resto da narrativa condiz com essa hipótese: passam por um rio com um delta (o Parnaíba), outro grande e caudaloso (o Amazonas) e depois, sempre navegando para o Oeste e para o Norte, voltam ao Hemisfério Norte, e então encontram cidades, a partir da atual América Central. E, finalmente, chegam à terra dos Olmecas, no centro-sul do México.

[1] Dizem que esses deixaram descendentes também no Brasil.

[2] Minha conclusão de que o texto é genuíno é baseada no fato de que contém leituras (interpretações) desconhecidas em 1872, mas que são agora autenticadas por inscrições descobertas no século que se passou desde então. Negar isso significa atribuir a um fraudador a clarividência para antecipar cem anos de descoberta em um campo altamente técnico: uma alternativa que nenhuma pessoa racional e conhecedora dos fatos em questão escolheria.

     

Anterior

Basileu

Próxima