Cilada em Roma

Já era bem tarde quando Ibrahim al-Dajaj terminou sua narrativa; a mais estranha das histórias da Fênix que eu já tinha escutado. Saiu do estado semi-hipnótico em que permanecera enquanto narrava, e voltou a falar normalmente. Aparentemente, resolvia-se um velho enigma da História: a hipotética viagem de circunavegação da África, realizada pelos fenícios por encomenda do faraó Necao III, citada apenas brevemente em um texto de Heródoto, e de cuja veracidade o próprio Heródoto duvidava. Se a parte principal da história fosse pelo menos parcialmente verdadeira, sustentava a teoria de que os fenícios tinham chegado à América, uma das teorias prediletas de esotéricos e entusiastas da História Alternativa, mas da qual nunca se encontraram evidências aceitáveis pelo consenso dos historiadores.

Em parte, resolvia também o problema de consistência da suposta Encarnação acontecida na América do Norte, no Século VII A.C. Como eu tinha dito a Donald Cockburn, em nosso primeiro encontro: Todas as narrativas das Encarnações as relacionam com acontecimentos históricos importantes. Entretanto, não há conhecimento de nada notável que tenha ocorrido na América do Norte, nessa época.

Na realidade, aconteceu algo importante, que tem sido tema de algumas das principais descobertas arqueológicas das últimas décadas: a ascensão da civilização Olmeca, tida como a primeira grande civilização Meso-americana, que, agora se sabe, deu origem a grande parte da cultura de outras civilizações da região, como os Maias e os Astecas. Olmeca significa Povo da Borracha, em nahuatl, o idioma asteca. As principais cidades olmecas ficavam no sul do México, a cerca de dois mil quilômetros da região em que o fenômeno teria acontecido, aparentemente em algum lugar do deserto norte-americano, nos atuais estados de Nevada ou Arizona. Uma longa caminhada, mas perfeitamente viável para um grupo resistente e suficientemente motivado. A caminhada da Coluna Prestes e a Longa Marcha de Mao tinham sido bem maiores, em territórios inóspitos e condições de guerra.

Fiz algumas perguntas, tentando saber mais sobre o que havia na tal caverna e o conteúdo da misteriosa Mensagem, mas Ibrahim me respondeu:

— Professor Basileu, uma organização secreta só pode sobreviver se o conhecimento de cada um de seus membros for estritamente limitado àquilo que for necessário. Qualquer grupo terrorista de terceira categoria sabe disso, e nós praticamos esse princípio há milênios. O que eu lhe contei é o que eu sei, e que fui autorizado a revelar, em vista das circunstâncias atuais.

Vi que seria inútil insistir; lembrei-me do que Cockburn dissera: Mesmo os altos sacerdotes de nossa Ordem só têm conhecimento quando estritamente necessário. Mesmo a nossa querida Mafalda desconhece o segredo, apesar da missão gloriosa que tem pela frente... O conhecimento do segredo não ajudaria nessa missão, e talvez até a prejudicasse.

Ibrahim propôs que fôssemos embora, e concordei, visto o adiantado da hora. Entramos no carro, e o motorista seguiu novamente por ruas que eu desconhecia, todas já bem desertas. De repente, em uma rua estreita, paramos: o caminho estava bloqueado por dois carros escuros. Assalto em Roma?

Não exatamente, vimos logo em seguida. Os sujeitos que saíram dos carros estavam todos de terno e gravata. E chapéu. O líder deles se adiantou; usava um terno de griffe, e logo o reconheci: Don Tommaso Menefrego, o poderoso chefão que eu tinha visto em Londres, no restaurante de Fuk Yu Two. O descendente de uma família siciliana que, de espiões da Inquisição, tinha passado para o crime organizado. E que, a pedido de Fuk Yu Two, tinha conseguido para mim o endereço londrino da Grande Fênix.

Ibrahim al-Dajaj não demonstrou medo algum:

— Se é a mim que você quer, deixe os outros irem, Servo da Serpente.

Don Tommaso respondeu:

— De você, egípcio Adorador de Galinhas, só quero que vá ao encontro de seu Senhor Osíris.

E acertou um tiro bem no meio da testa de Ibrahim. O motorista correu para cima dos bandidos, chorando e gritando:

— Assassinos, vocês mataram um padre!

Um dos gângsteres acertou um murro no rosto do motorista, que caiu. Ia chutá-lo, mas Don Tommaso fez um sinal para que não o fizesse. O motorista se levantou em silêncio, com o nariz sangrando. Don Tommaso disse:

 — Esse nem era um padre de verdade, apenas um herege.

Em seguida, fez sinal aos capangas para que levassem o motorista para um dos carros. Ibrahim foi colocado no porta-malas desse carro. No outro, fomos Don Tommaso e eu para o banco de trás, e dois capangas no banco da frente. Começamos a percorrer as ruas desertas, e Don Tommaso me perguntou, sorrindo:

— Está com medo, Professor Basileu?

— Acho que, se quisesse me matar, já o teria feito.

— Correto, Professor. Tenho várias razões para deixá-lo vivo. Primeiro, quero testemunhas do que aconteceu aqui. Quero que os miseráveis Adoradores de Galinhas saibam que, mais uma vez, um membro da família Sarto liquidou um dos chefes deles. Depois, pouco me importa que a polícia italiana saiba disso. Há muitos anos estou fora, e vim aqui apenas porque fazia questão de executar pessoalmente esta missão. Graças ao maldito delator Salvatore Cascetta, estou condenado à prisão perpétua neste país. Se me pegam aqui, jogam fora a chave da cela.

De fato, percebi pela placas que estávamos indo na direção de Óstia. Tanto o aeroporto de Fiumicino quanto o porto marítimo de Roma ficam nessa direção; portanto, daí a pouco Don Tommaso estaria embarcando em um avião ou uma lancha. O mafioso continuava falando, satisfeito:

— Veja bem, Professor. Sou um bom católico, e lamento que esta ação venha a enfurecer o Cardeal e, quem sabe, até embaraçar o Santo Padre. Mas, às vezes, o combate à heresia e ao paganismo requer que se desagrade até aos Príncipes da Igreja. Mas o senhor tem sorte de ser amigo de Pietro Maria Cacciagermi; esse, eu não quero que se enfureça, e me coloque no topo das prioridades da Interpol. Pois, fora este pequeno incidente de hoje, há muitos anos venho trabalhando dentro da mais estrita legalidade. Hoje, sou um empresário respeitável, como qualquer outro!

Não pude deixar de perguntar:

— Como qualquer outro membro da Confraria de Csífodas?

— Certamente tenho uma posição de destaque entre os Confrades, mas esta missão nada tem a ver com eles. Sabe os nossos valores, somos homens de honra, fiéis às antigas lealdades... Mas, quer saber de mais uma coisa, Professor? A principal razão pela qual vou deixá-lo vivo é ainda outra: o senhor me deve um favor. Lembra-se, não é? O endereço dos Adoradores de Galinha, em Londres... E se eu matar quem me deve favores, como vou cobrar esses favores, algum dia?

Fez uma expressão cândida, a mais sinistra até então. Depois disse que estávamos chegando ao lugar onde iria deixar a mim e ao motorista, enquanto tomavam o rumo deles. O lugar era ermo, mas o motorista conhecia bem a cidade, e não demoraria muito a achar uma maneira de voltarmos a Roma; mas seria o suficiente para que ele e os funcionários já estivessem longe o bastante.

Tinha acabado de dizer isso quando, de repente, apareceram vários carros bloqueando o caminho, tanto à frente quanto atrás. Os capangas saíram dos carros atirando, mas foram imediatamente abatidos pelos recém-chegados, que estavam em número maior, tinham armas muito boas e pontarias certeiras, e os rostos cobertos por máscaras. Saímos de mãos para o alto, o motorista, eu e Don Tommaso, que disse:

— Vocês sabem com quem estão tratando?

Um dos mascarados se adiantou e retirou a máscara, revelando um homem ainda jovem, que respondeu:

— Não só sei, Don Tommaso, como faço questão de que veja quem vai mandá-lo para o Inferno.

Don Tommaso respondeu, irônico:

— Quem diria, o jovem Vincenzo Falcone, líder da Verdadeira Fênix! Ora, deveria estar a me agradecer, por ter eliminado um dos líderes da seita rival!

Vincenzo também riu:

— Na verdade, Don Tommaso, eu tenho que agradecer é ao Espírito Imanente. Estamos aqui porque estávamos rastreando Ibrahim al-Dajaj para seqüestrá-lo. Quem diria que a Grande Fênix decairia tanto, a ponto de um de seus líderes se refugiar em pleno Vaticano! Mas, por graça da Nobre Ave, quem encontramos? O principal representante de uma família de inimigos históricos, de algozes da Inquisição, os nossos piores perseguidores!

Então, existia realmente a Verdadeira Fênix: uma dissidência fundamentalista da Ordem, que condenava o uso do DNA para rastrear a fênix, e o apaziguamento em relação às religiões monoteístas. E que praticava atentados terroristas; por exemplo, incendiar lojas de cadeias de fast-food especialistas em pratos de frango, como a KFC e a Wienerwald!  E eu tinha chegado a suspeitar que a Verdadeira Fênix fosse uma invenção de Donald Cockburn, para encobrir algo inconfessável. Aquela noite estava mesmo difícil. Eu estava pulando da frigideira para o fogo.

Don Tommaso, perguntou:

— Sendo assim, quem sabe não podemos resolver a situação com dinheiro?

— Seria uma possibilidade se vocês não tivessem matado um sacerdote da Fênix. Ainda que modernista, era um de nossos irmãos de fé. Eu poderia eventualmente tê-lo matado, mas jamais um carrasco da Inquisição. De você, só quero que transmita meus cumprimentos a Torquemada.

E acertou-lhe um tiro igualmente certeiro, igualmente no meio da testa. O motorista gritou, com as mãos para o alto:

— Graças ao bom Deus, que não deixa impunes os assassinos de um padre!

Para minha estupefação, Vincenzo Falcone apontou a arma para ele:

— Graças à Grande Fênix, que não deixa impune um traidor nojento!

O tiro, mais uma vez, foi bem no meio da testa. Foi minha vez de ficar indignado:

— A Grande Fênix ensina a matar motoristas?

Vincenzo respondeu calmamente:

— Professor, não sei o que os modernistas lhe contaram a nosso respeito, mas não somos assassinos nem terroristas. Entre no carro, pois temos que resolver o que fazer com o senhor.

E assim fui eu novamente para o banco de trás de um carro, desta vez com o chefe de uma dissidência da Fênix. O corpo de Ibrahim foi transferido para o porta-malas de outro carro do grupo; os demais corpos foram abandonados, e voltamos a seguir por ruas escuras. Enquanto isso, Vincenzo falava. Disse que planejaram o seqüestro de Ibrahim al-Dajaj para tentar convencê-lo a passar para o lado deles, pois sabiam que era o membro mais conservador do Conselho Supremo. Descobriram que o Cardeal tinha posto à disposição dele um motorista siciliano, e passaram a investigá-lo, para verem se poderia ser subornado para facilitar a ação.

O que descobriram é que o motorista vinha de uma família de tradicionais vassalos da família de Don Tommaso, e que tinha sido convocado a trair Ibrahim, facilitando, isso sim, a ação dos mafiosos. Perguntou-me:

— Por que acha que os levou ao restaurante do suposto primo, em um lugar distante, sabendo que sairiam de lá na madrugada deserta? Tudo para facilitar a participação de Don Tommaso, que queria agir pessoalmente para eliminar um inimigo tão importante.

Eu ia protestar que o motorista tinha chegado a enfrentar os bandidos de mãos vazias, mas essa lembrança tornou o quadro ainda mais claro. Aquele soco já estava combinado, como acontece em tantos filmes. Eu seria a testemunha que inocentaria definitivamente o bravo motorista, diante do Cardeal. E Don Tommaso continuaria com um homem de confiança plantado no Vaticano, para quando outras necessidades aparecessem. Vincenzo completou:

—Nunca aprovamos o contato dos modernistas com cientistas agnósticos, assim como reprovamos o diálogo com os religiosos transcendentalistas. Agora, vamos ter que retê-lo por uns tempos, até que as coisas fiquem mais claras. Enquanto isso, sem o corpo de Ibrahim, o Cardeal e a Polícia não terão idéia do que aconteceu com ele nem com o senhor... Talvez culpem os modernistas, quem sabe...

A perspectiva de virar refém de um bando de fanáticos não era agradável; o único lado positivo era não dever mais favores a Don Tommaso. Mas não fiquei muito aliviado quando, em outra ruela, fomos bloqueados por mais outro grupo, em número ainda maior, e mais armado. Seria a Polícia? Os mafiosos, já chegando para a vingança? Ou ainda outro grupo sinistro, a serviço dos Csífodas ou dos Inimigos?

Bem, esses não usavam ternos nem máscaras. Não eram os Carabinieri, mas quem sabe a Interpol? Vincenzo pegou um rádio e imediatamente mandou a ordem aos outros carros:

— Todos fiquem dentro dos carros, ninguém faça nada.

E, virando-se para mim:

— Venha, Professor.

Saímos do carro. Vincenzo caminhou para um que tinha saído à frente do novo grupo, sorrindo:

— Ora, não ganho um abraço de meu irmão mais velho, por ter eliminado um de nossos piores inimigos? Os Inquisidores eliminam friamente o companheiro a quem deviam proteger, e a Guarda dos Falcões só descobre por estar me vigiando?

Percebi então que o recém-chegado era parecido com Vincenzo, embora alguns anos mais velho, e me dei conta de quem era: Giacomo Falcone, o chefe da Guarda dos Falcões, o corpo de segurança da Grande Fênix, que, segundo Ibrahim, descendia dos sacerdotes de Hórus. Giacomo não o abraçou, nem sorriu, e disse simplesmente:

— Já que nos prestou esse serviço, desta vez vou deixá-lo ir-se embora. Só quero o Professor e o corpo de Ibrahim.

Entregaram o corpo, e os carros da Verdadeira Fênix desapareceram na escuridão. Entrei no quarto carro da noite, desta vez ao lado de Giacomo Falcone, e perguntei:

— Onde estamos indo?

— Para o seu hotel, é claro. Amanhã embarcará de volta ao Brasil. E saiba, Professor, que, apesar das circunstâncias trágicas, fico satisfeito de vê-lo novamente, depois de tantos anos.

Eu ia dizer que nunca o havia encontrado, mas lembrei-me de repente: Giacomo era o menino no colo daquele operário siciliano, tantos anos atrás; e Vincenzo era o bebê que dormia no colo da mãe. Só pude perguntar:

— E seu pai, como vai?

— Vai muito bem, obrigado. Voltou a nosso paese, e agora é da Rifondazione Comunista. Mas a militância dele se resume a discutir política com outros aposentados, na praça principal de nossa aldeia siciliana, entre um jogo de gamão e uns copos de vinho...

Referia-se ao partido formado pelos comunistas ortodoxos, quando o velho PCI se tinha transformado no Partito Democratico della Sinistra. Perguntei se ele sabia da opção religiosa dos filhos. Giacomo respondeu:

— Não. Ele ficaria desgostoso se soubesse que os filhos têm alguma religião, principalmente em seitas rivais, e Vincenzo e eu entramos em acordo, pelo menos nisso. Dissemos a ele que somos de uma sociedade secreta muito antiga, que persegue os ideais de uma Utopia Mundial. Ele acha que somos de alguma espécie de maçonaria anarquista... Não está totalmente enganado.

     

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