Summa Xenotheologica

Durante o dia seguinte, aproveitei o tempo para o passeio turístico mais convencional de Roma: um circuito pela parte histórica da cidade, em um ônibus descoberto de dois andares. Visões de palácios barrocos, de ruínas do Império e de monumentos de todas as épocas se alternam, oferecendo uma visão de conjunto que não se consegue nos passeios a pé.

Por exemplo, ao passar pelo Vittoriano, o branquíssimo Bolo de Noiva, o monumento novecentista amado por Mussolini e detestado por quase todos os romanos, vê-se a Cordonata, a escadaria desenhada por Michelangelo para que se pudesse subir a cavalo até a Piazza del Campidoglio. Lembrei-me de uma visita anterior, em que lá assisti a uma apresentação noturna dos Carmina Burana, no cenário barroco que parece copiado pela Praça Tiradentes de Ouro Preto, do mesmo modo que, em são João del Rei, o cenário da Ponte da Cadeia parece copiar Florença e o Rio Arno. Viva Lavoisier.

Mas logo em seguida, aparecem as vastas ruínas do Fórum Romano, para lembrar que o Campidoglio é a mesma Colina do Capitólio, como também o lembram a estátua eqüestre de Marco Aurélio e a cabeça colossal de Constantino, que ornamentam a praça em rosácea concebida por Michelangelo. A Colina onde ficava o Templo de Júpiter Optimus Maximus, o mais importante da antiga Roma, e também a Rocha Tarpéia, de onde os traidores eram atirados, para se espatifarem em pedras pontiagudas na descida para o Fórum.

 Lembrei-me também de um episódio comentado por Donald Cockburn. Segundo ele, os Csífodas teriam sido uma força dominante na fundação de Roma, quando procuraram marcar sua imagem, introduzindo o mito da loba. Entretanto, a Fênix também procurava adquirir o controle da Cidade, pressentindo que aí deveria acontecer a próxima Imolação. Para isso, promoviam a adoção dos costumes e deuses da civilização grega, substituindo os usos semi-bárbaros dos antigos itálicos. Como parte do culto à sensualidade humana, fomentavam a substituição dos deuses latinos originais, não personificados, como o misterioso Quirino, por assimilações dos deuses gregos: Zeus transformado em Júpiter, Ares transformado em Marte, Afrodite em Vênus, e assim por diante. A grande maioria deles de sexualidade exacerbada, e muitas vezes inusitada, como se comprova nos ardis amorosos de Zeus. Que, não por coincidência, freqüentemente tomava a forma de aves, como o cisne que seduziu Leda, e fez com que esta botasse os ovos dos quais nasceram Castor e Pólux, Helena de Tróia e Clitemnestra.

Aos Csífodas, por outro lado, interessava uma Roma que fosse centro de comércio e riqueza. Os dois objetivos não eram realmente conflitantes, mas cada Ordem ou Confraria procurava garantir uma posição mais dominante no futuro Império. Um ponto decisivo aconteceu quando os gauleses surpreenderam os romanos dormindo, sem que os cães que vigiavam o Capitólio os avisassem, possivelmente entorpecidos por comida farta. A cidade foi saqueada, e o chefe gaulês Breno pronunciou a celebre frase: Ai dos vencidos! Foi a ultima vez que a Cidade foi tomada por bárbaros, até os anos finais do Império. Por causa desse episódio, os cães do Capitólio foram executados, e substituídos por gansos, por proposta da Grande Fênix. Durante algum tempo, a Ordem se tornou o poder dominante, como o testemunha a adoção da águia imperial por símbolo.

Mesmo com essa derrota, os Csífodas mantiveram poder suficiente para que Roma fosse sempre um centro de alta corrupção política. Como o moralismo muitas vezes serve aos interesses do dinheiro, acabaram conseguindo proibir as Bacanais. Isso prejudicou os cerimoniais da Ordem, forçando-a a reservar a Fornicação Sagrada para seus círculos mais secretos. Para o grande público, adotou-se a Cerimônia do Biscoito, como narrei em meu primeiro livro, e isso levou à perda de popularidade, desviando-se as atenções da plebe para o Panis et Circenses promovido pelos Csífodas, sempre peritos nas artes e técnicas da Boa Livre.

Mas, por mais inusitados sexuais que cometessem os deuses greco-romanos, eram apenas uns aprendizes, comparados com o panteão egípcio. Vejam só. Atum, o Caos Aquático primordial, era dito o Completo: não só era hermafrodita, como recursivo, pois se gerou a si mesmo. Feita essa parte, que deve ter sido a mais difícil, gerou por masturbação aos gêmeos Shu, deus do Seco, e Tefnut, deusa do Úmido. Em versões mais elaboradas, fez isso por auto-fecundação, ou pela via oral da auto-felação, ou por via manual, tendo uma vagina na mão!

Shu e Tefnet, por sua vez, geraram a Nut, deusa da Noite, e Geb, itifálico deus da Terra, que passaram a viver numa relação sexual permanente. Atum, já transformado em Ra, o Sol, irou-se com a vagabundagem dos netos, e ordenou a Shu que os separasse. Shu cumpriu a ordem, pisando em Geb e levantando Nut. Mas esta já estava grávida, e pariu a Osíris, Ísis, Set e Néftis. O festival de incestos continuou na geração seguinte: Osíris se casou com Ísis, e Set com Néftis. Mas, como lembrou Ibrahim al-Dajaj, o desinteresse e a esterilidade de Set levaram Néftis a tomar a forma de Ísis para se deitar com Osíris e gerar Anúbis. Enquanto isso, Set, que era bissexual, fez uma tentativa de estuprar Ísis, frustrada pela esperteza desta.

Duplamente humilhado, Set passou a odiar o irmão, e, na primeira oportunidade, matou-o e cortou-o em pedaços, tornando-se o primeiro Chico Picadinho. Com a ajuda de Néftis, Ísis juntou e costurou os pedaços do marido. Anúbis já tinha crescido para ajudar a fazer de Osíris a primeira múmia, além de primeiro monstro de Frankenstein. Ficou faltando exatamente o pênis de Osíris, que tinha sido atirado por Set no Nilo e engolido por um peixe, o que explicaria a fertilidade do rio. Ísis não se deu por achada, e fez uma prótese de ouro, tornando-o também o primeiro Goldmember. Assim, pôde copular com a divina múmia, gerando a Hórus. Osíris passou a reinar sobre o mundo dos mortos, representado como múmia de pele esverdeada.

Quando Hórus cresceu, Set pôs olhos gulosos no sobrinho e, um belo dia, disse-lhe: “Que belo traseiro você tem!” Set contou à mãe, que armou um estratagema para que se vingassem do assassino. Na próxima vez em que encontrou Hórus, Set o convidou para uma festinha em casa, e Hórus, instruído pela mãe, aparentou entusiasmo. Quando chegou a noite, Set levou Hórus para a cama, e o possuiu por via intercrural, popularmente conhecida como nas coxas. É interessante notar que essa parecia ser a modalidade preferida na tradicional pederastia grega, uma vez que o sexo anal era considerado “desonroso”.

Hórus, disfarçadamente, retirou de dentre as coxas o sêmen de Set, guardou-o, e depois jogou-o no rio Nilo. No dia seguinte, masturbou-se sobre um pé de alface, vegetal que, no Egito, era considerado fálico. Parece estranho, considerando-se que esse qualificação costuma ser aplicada a cenouras, pepinos, nabos e outros dos chamados vegetais de duplo sentido, mas a idéia é que, quando se corta o talo da alface, aparece um líquido leitoso, que era considerado semelhante ao fluido seminal. Haja imaginação!

Ora, Set também considerava a alface como fálica e, por isso mesmo, era o seu prato predileto. Hórus então ofereceu ao tio a alface temperada, que Set comeu, achando-a deliciosa. Em seguida, Hórus reinvidicou o título de Rei dos Deuses. Set irou-se, dizendo que o Rei dos Deuses era ele, que não só tinha matado Osíris, o antigo rei, mas tinha traçado o desaforado filho dele. E no Egito, como em muitas outras culturas, exercer o papel ativo em um ato homossexual era considerado um símbolo de dominação, e de submissão do passivo. Por isso, era comum que soldados se servissem dos prisioneiros de guerra, o que não só funcionava como paliativo na falta de mulheres, mas reafirmava quem mandava no pedaço. Como prisioneiros eram geralmente mal alimentados, consta que também vem daí a expressão por cima da carne seca. Pode-se até dizer que a prática é pré-humana: em certas espécies de macacos, uma disputa do harém entre machos termina quando o mais fraco se rende, oferecendo o traseiro ao vencedor. Este, geralmente, aceita a rendição, mas, como macaco é esperto, dispensa o tributo.

Voltando à pendenga entre os deuses, chamou-se um terceiro deus, tido como muito sábio, para arbitrar. O árbitro invocou então o sêmen de Set, que respondeu de dentro do Nilo. Invocou em seguida o sêmen de Hórus, que respondeu de dentro de Set. Concluiu, então, quem havia comido quem, e Hórus foi proclamado Rei dos Deuses, tornando-se Set objeto de zombaria dos colegas.

Bem, se a artimanha concebida por Ísis e executada por Hórus pode ser considerada como exemplo de astúcia, parece-me que deveríamos dar razão a certo conhecido do Manuel Rui Pontes, natural do Alentejo. Cansado das piadinhas brasileiras a respeito dos patrícios, resolveu provar que brasileiros é que são burros. A tática é a seguinte: chega-se a um brasileiro, e finge-se que é paneleiro. E não é que basta dar para o gajo, que ele logo acredita?

Diante de todas essas considerações, fiquei em dúvida sobre quão a sério Ibrahim al-Dajaj realmente levava o mito que ele me havia relatado, e resolvi questioná-lo quanto a isso, no encontro marcado para a noite. Embora a comida da padaria não tivesse sido má, achei que jantar num lugar daqueles era um desperdício da capacidade gastronômica de Roma, e propus que o próximo encontro ocorresse alhures. Como o sacerdote parecia não apreciar lugares mais badalados, descartei as cantinas do Trastevere ou os cafés da Piazza di Spagna, e propus um pequeno restaurante que conhecera uma década antes, situado próximo a meu hotel, em um lugar na esquina da Via Nazionale com uma transversal.

Ao chegarmos lá, constatei, com um pouco de surpresa, que se tinha transformado em um restaurante cult, provavelmente em função das resenhas elogiosas da imprensa gastronômica. A comida continuava boa e o lugar pequeno, mas tornara-se um tanto mais caro e bastante agitado, freqüentado por um público internacional e de ares intelectuais, que falava mais o inglês do que o italiano.

Tive a impressão de que Ibrahim achou o lugar com pouca privacidade, adotando uma postura que em nada lembrava o místico pagão do dia anterior, ou mesmo um sacerdote cristão. Assumiu a faceta de egiptólogo erudito e até um pouco cético, dizendo que, nessa noite, preferia que eu expusesse minhas dúvidas sobre os assuntos tratados ontem.

Levantei então a questão dos aspectos inusitados da teologia egípcia, procurando usar de certo tato, por não saber se poderia ferir alguma suscetibilidade do sacerdote. Ibrahim não aparentou desconforto algum, e me respondeu:

— Professor Basileu, em minhas conversações com o Cardeal, às vezes nos cansamos de debater os detalhes finos dos estudos gnósticos, por vezes um tanto áridos, e descansamos debatendo tópicos mais amenos. Nessas ocasiões, Sua Eminência me esclareceu sobre alguns dos pontos mais importantes da ciência xenoetológica, pontos que achei deveras interessantes, e bastante pertinentes aos estudos das antigas religiões.

Comentei então que alguns xenoetólogos procuravam se especializar nos estudo dos aspectos mais inusitados das religiões, que, segundo eles, formariam o corpo de conhecimento da disciplina de xenoteologia. Ibrahim comentou:

— Vale aqui a lei xenoetológica a que os senhores chamam de Princípio da Relatividade do Inusitado. Em suma, para cada religioso, as religiões alheias é que são inusitadas, e para os céticos, são-no todas. Talvez as peripécias dos deuses egípcios sejam bastante inusitadas para o pensamento moderno, como também o seriam muitos mitos greco-romanos, nórdicos, célticos, hindus, ameríndios, em suma, os que os cristãos antigos chamavam de pagãos. Entretanto, para os egípcios do Novo Império, o quase monoteísmo de Akhenaten é que pareceu inusitado, até repelente; o Deus invisível e informe dos hebreus, então, chegava a ser inconcebível.

Lembrei que Siegmund Freud propusera a teoria de que o Judaísmo derivava do culto de Aten, sendo Moisés um sacerdote do Deus-Sol e o Êxodo uma fuga dos atenistas, após a restauração dos deuses tradicionais. Respondeu Ibrahim:

— Sou grande admirador do doutor Freud, embora fosse ele radicalmente ateu, e parece-me justíssima a homenagem que os xenoetólogos lhe prestam, batizando com seu nome a Navalha de Freud. Mas também me parece que as diferenças entre Aten e o Senhor dos Dez Mandamentos são bastante grandes, para dois conceitos quase contemporâneos e de regiões tão próximas. Reconheço, por outro lado, que o Salmo 104 tem inegável semelhança com o Grande Hino a Aten. O que eu acredito, e que talvez sirva para explicar como um padre cristão pode ser um sacerdote da Fênix, é que Aten, Yahweh, a Nobre Ave e até o Não-Ser de Basílides são diferentes interpretações humanas de um conceito essencialmente incompreensível. Como dizem os xenoetólogos, uma manifestação do Efeito Rashomon.

Arrisquei uma pergunta mais provocativa:

— Não estaria essa visão próxima do conceito New Age, de que todas as religiões seriam aspectos da mesma Verdade?

Ibrahim al-Dajaj foi surpreendentemente irônico:

— O conceito milenar de nossa Ordem é que se trata de diferentes interpretações de Algo além do entendimento, pelo que me parece ambicioso demais chamar esse Algo de Verdade. Por isso, eu diria mais que minha proposta é Old Age. Quanto a essa concepção propalada por muitos esotéricos de hoje, para não falar dos gurus de auto-ajuda e autores de best-sellers, seria na melhor das hipóteses uma manifestação do Efeito Elefante, em que cada cego só entende a parte que consegue tocar. Ou, na maioria dos casos, a parte que lhe convém.

Vendo que hoje Ibrahim falava como um acadêmico e não como um místico, resolvi tocar em um ponto ainda mais delicado:

— Toda a doutrina da Grande Fênix me parece impregnada de muita sensualidade, e o mesmo acontecia com a religião do Antigo Egito. Quem influenciou quem, nesse caso?

— Professor Basileu, o senhor bem sabe que, se dois fenômenos apresentam correlação, nem sempre quer dizer que exista relação de causalidade entre eles; ambos podem ser efeitos de uma ou mais causas comuns. Os deuses do Egito são claramente totêmicos, e o doutor Freud explorou de forma interessante os relacionamentos entre totens, crenças e sexualidade. Como ateu radical, via no pensamento animista a projeção da mente humana: o princípio que rege a magia, a técnica do modo de pensar animista, é o da onipotência do pensamento. Em nossa versão de Rashomon, a própria mente humana é, por sua vez, uma projeção da Mente do Universo, a mais focalizada das projeções dessa Mente na Biosfera. Da Biosfera de onde saem os totens, e que está essencialmente imersa em sexualidade.

Acho que entendi apenas superficialmente, mas perguntei:

— Seria a Fênix uma espécie de Totem Supremo?

— O Totem Supremo Positivo, como o Dragão ou Serpente é o Totem Supremo Negativo. Assim foi não só no Egito, mas em miríades de culturas, e quanto mais os arqueólogos se aprofundam na origem dos cultos, mais reencontram esses totens. Nosso totem é o da Vida, portanto, o do Sexo, como o Deles é o da Morte, portanto, o da Guerra. Em suma, professor, o mesmo Movimento que gerou a nós e aos Inimigos gerou os deuses do Egito e todos os outros deuses.

— Então, o comportamento misórnito[1] pode ser considerado como um caso do tabu contra comer a carne do totem?

— Certamente. O totem só pode ser comido em cerimônias religiosas muito importantes; literalmente, como parte de um sacrifício.

— Sob esse aspecto, então, os Inimigos foram mais bem sucedidos, já que pouca gente come répteis, embora digam que a carne de alguns deles é saborosa, o que posso atestar pelo menos quanto aos jacarés. E os Csífodas mais ainda, pois o tabu contra a carne canina é ainda maior.

— Isso na cultura ocidental, professor Basileu. Não acontece o mesmo na cultura chinesa e em muitas outras, como nas ameríndias, que são culturas onde os Csífodas foram historicamente fracos.

Por associação de idéias, o assunto me lembrou a questão do tabu do incesto:

— No mesmo livro, Freud relacionou o totemismo com o tabu do incesto, praticamente universal nas culturas humanas. Existe algum significado na ocorrência de tantos incestos entre os deuses do Egito?

— Incestos são comuns entre deuses de muitas culturas, não apenas a egípcia. Aos deuses é permitido o que é proibido aos mortais, senão não seriam deuses. Além disso, deuses têm que desposar deusas, de preferência do mesmo nível social. Por isso, não têm tantas opções, principalmente deuses das primeiras gerações.

Retruquei:

— Mas, embora, entre os deuses greco-romanos os incestos fossem comuns, entre as pessoas havia as mesmas proibições que hoje. Já entre os faraós os casamentos entre irmãos, e às vezes entre pais e filhas, eram a regra. Tanto é assim, que quando os Ptolomeus adotaram o costume para melhor posarem de faraós, causaram escândalo entre seus compatriotas gregos.

— Em Roma, quando um Imperador se proclamava divino, todo mundo sabia que era marketing político. No Egito, ao contrário, levava-se a sério a divindade dos faraós.

[1] A proibição de comer carne de ave, que caracteriza os adeptos da Grande Fênix.

     

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