A Expedição do Faraó

O problema do local do encontro seguinte foi resolvido pelo motorista do Cardeal. Quando veio me buscar, trazendo Ibrahim al-Dajaj, disse:

— Professor, o padre Ibrahim me perguntou se eu conhecia outro lugar com boa comida romana, mas bastante sossegado, pois os senhores tinham muito a conversar. Vou levá-los a um outro primo. É um lugar um pouco afastado, mas esse primo faz o melhor spaghetti al aglio, olio e peperoncini de Roma. Acompanhado de um vinho branco magnífico, de um dos últimos vinhedos existentes dentro da cidade, que não encontrarão em outro lugar.

De fato, o espaguete fininho, quase transparente, era muito bom. E muito picante, pois o que os italianos chamam de peperoncini é a mesma pimenta que mexicanos e americanos chamam de chili. O ardido era rebatido pelo frescor do vinho um pouco esverdeado e ácido, de rótulo artesanal, mas que combinava bem com o prato. Quanto ao lugar, era apenas um botequim em uma parte de Roma que eu não conhecia, um tanto longe do centro histórico.

Resumi para Ibrahim al-Dajaj meus questionamentos a respeito da relação entre a Fênix e a lenda da Atlântida, e ele me respondeu:

— Quanto ao que aconteceu nove mil anos antes de Sólon, como eu lhe disse, essas Encarnações pré-históricas são míticas mesmo para nós. A primeira Encarnação sobre a qual a Ordem tem registros firmes é a de Ramsés II. Mas, no grau de informação que lhe estamos passando, sinto-me autorizado a contar alguns detalhes do que realmente Sólon ouviu dos sacerdotes egípcios. Sua hipótese de que a narrativa de Platão seria uma versão codificada é, de certa maneira, correta. Mas creio que, antes de discutirmos os porquês dessa codificação, é melhor que eu lhe transmita nossa versão oficial. Verá que, tal como na história de Ramsés, vários detalhes importantes batem com a História oficialmente conhecida.

Do mesmo modo que dois dias antes, Ibrahim começou a narrar como se recitasse de cor. Novamente, parecia estar, em certos momentos, em uma espécie de transe. O narrador parecia ser um sacerdote da Grande Fênix, da época do faraó Necao  II, no final do Século VII A.C. Reproduzo a seguir a narrativa, substituindo os nomes clássicos dos diversos lugares pelos respectivos nomes modernos, para melhor entendimento.

Tudo começou décadas antes, no reinado do grande faraó Psamético I. Mais de seis séculos haviam passado desde o reinado do Favorito. O Egito decaíra e fora conquistado pelos Núbios; da Mesopotâmia, eterno cenário de guerras fomentadas pelos Inimigos, tinham vindo os reis assírios, dos mais cruéis instrumentos que os Outros já empregaram, para expulsar os Núbios e transformar os egípcios, por sua vez, em seus escravos. Psamético fora instalado como faraó fantoche pelo poderoso Assurbanipal, rei tão erudito quanto poderoso e cruel. Tinha repelido novos ataques núbios, mas nós, na clandestinidade, o ajudávamos a preparar a revolta contra os senhores assírios. Procurando a inspiração de Bennu, nossos mais altos clérigos fumavam as mais secretas ervas rituais, quando o Sumo Sacerdote teve uma visão.

A fumaça das ervas se abria, e aparecia Ramsés diante da pira de Bennu. O grande fogo consumia a Nobre Ave, e um turbilhão levava suas cinzas para longe, muito longe, sobre o deserto, sobre o oceano, sobre imensas florestas, até chegar a outro deserto. Ali as cinzas se condensaram em um ovo, do qual saiu uma águia dourada, que cresceu e se tornou deslumbrante. Por muitos séculos, a águia dourada espalhou sua semente entre as aves do deserto, e matou e devorou milhares e milhares de serpentes. Poderosos feiticeiros ornamentados de penas a adoraram.

Até que um dia, a águia dourada subiu ao topo de uma montanha do deserto, e um fogo do céu se precipitou sobre ela, incinerando-a em fulgurante clarão. A terra tremeu, rios saíram dos leitos, inauditos prodígios aconteceram, e restou apenas o uivo dos ventos. E os feiticeiros partiram em todas as direções, para levar uma grande nova aos povos vizinhos, e os feiticeiros desses povos a levaram a outros.

Mas a Voz de Bennu disse ao Sumo Sacerdote: Vastos são os desertos, o oceano e as florestas, e dura a Missão que vos aguarda. Mas cabe a vós, descendentes de meu último Favorito, ir buscar a Mensagem, e trazê-la para o vosso povo e para os outros povos desta parte do Mundo. Mas não deixeis que a Mensagem caia em poder dos Filhos da Serpente, pois eles a corromperiam com seu veneno. E nem nas mãos dos Filhos da Cadela, pois eles a venderiam aos Filhos da Serpente. E o Sumo Sacerdote despertou da visão, aos pés da estátua de Khaemweset, o Maior dos Magos, Mais Sábio dos Filhos do Favorito, que olhava para o Oeste. No mesmo dia, soubemos que Psamético tinha, de alguma maneira, convencido os Assírios a se retirarem, e reconquistado a independência do Egito.

Ao longo de décadas, a visão se repetiu com outros sacerdotes. Nem sempre a visão completa; mas sempre uma águia dourada era consumida pelo fogo do céu, e havia uma Mensagem a ser buscada, no longínquo Oeste, além de desertos, mares e florestas. Levamos ao conhecimento do Faraó. Psamético; não só grande guerreiro e governante como homem de grande interesse na Ciência e no Conhecimento, prometeu ele apoio à Busca da Mensagem. Mas teve que dedicar seus mais de cinqüenta anos de reinado a fortificar o Egito contra os múltiplos inimigos: ao sul, os Núbios, sobre os quais ainda reinava a dinastia anterior; ao oeste, os Líbios, salteadores do deserto; mas principalmente ao Leste, onde os Inimigos haviam descartado os Assírios, e tinham os Babilônios como novos instrumentos.

Para reforçar o poderio do Egito, Psamético trouxe muitos mercenários gregos, que formaram colônias, e usou os serviços dos mercadores da Fenícia, cujo controle tinha tomado dos Assírios. Para montar a grande Expedição de Busca, contava recorrer ao auxílio desses povos, entre os quais nossa Ordem também estava fortemente instalada. Grandes navegadores, os gregos instalavam colônias em todo o Mediterrâneo. Ainda maiores, os fenícios tinha passado os Pilares de Hércules, e plantado colônias até na costa ocidental da África, junto ao Oceano Atlântico. Contava-se compensar com os estrangeiros a pouca experiência marítima dos egípcios. Afeito à navegação do Nilo, nosso povo temia o mar, e mesmo as expedições famosas de grandes faraós, como Hatshepsut e Tutmés III, não tinham passado da Terra de Punt[1], de onde traziam ouro, marfim, ébano, escravos, macacos para nos divertir, e kohl[2] para embelezar os olhos.

Acresce que era preciso cumprir os imperativos de segredo da Viagem. E temíamos principalmente a indiscrição dos Filhos da Cadela, fortes entre os gregos e principalmente entre os fenícios, onde controlavam as principais corporações mercantis. Dificilmente uma grande expedição poderia usar navegantes fenícios sem incluir os espiões deles; dificilmente passaria pelos Pilares de Hércules, sem ser notada por seus atentos olheiros; dificilmente seriam todos os marinheiros tão corajosos, que não comentassem em seus lares, ou em alguma taverna, sobre os perigos que julgavam aguardá-los. Pois se dizia que a oeste dos Pilares avistavam-se monstros marinhos que jorravam água pela cabeça; e lá ficava o Mar de Lama, resto de uma terra maldita pelos deuses, no qual os navios atolavam; ou, segundo outros, o Mar dos Sargaços, onde os navios se enredam em plantas gigantescas, e desaparecem sem vestígios.

Afinal, Psamético I morreu sem que pudesse empreender a Expedição, ficando esta para o filho Necao II, que vivia uma situação semelhante à de Merenptah: um homem que tinha tudo para ser grande, mas sucedia a um dos maiores faraós, depois de longuíssimo reinado. Necao tentou restaurar o Império Egípcio em sua maior grandeza, foi o primeiro a invadir a Mesopotâmia desde Tutmés III, e aprisionou Josias, rei dos judeus e aliado dos Babilônios, a quem substituiu por Joaquim. Mas os Babilônios contra-atacaram, e afinal mataram Joaquim e puseram fim ao Reino de Judá. Necao  apenas pôde pedir aos aliados fenícios que levassem os descendentes de Joaquim e de seu fiel ministro Manuel para a colônia fenícia na Cidade de Ulisses[3].

Criou-se uma situação de impasse no Oriente Médio, principalmente depois que o trono babilônio passou para o temível Nabucodonosor, cujo nome os sacerdotes consideravam como de mau agouro, pela semelhança com conhecida imprecação[4]. Necao empreendeu então o projeto de abrir um caminho para a armada egípcia do Mediterrâneo ao Mar Vermelho, escavando um grande canal que uniria o Nilo ao Golfo de Suez; mas teve que cancelá-lo quando já havia exaurido o tesouro e custado a vida de cento e vinte mil egípcios.

Foi então que propusemos ao faraó um projeto de circunavegação da África. Ninguém sabia quanto tempo essa viagem levaria, ou mesmo se era possível. Mas, caso sucedida, permitiria um caminho alternativo entre o Mediterrâneo e o Índico, uma nova rota para as colônias dos aliados fenícios na África Ocidental, e o acesso a riquezas que poderiam superar as da Terra de Punt. E, para nós, Filhos de Bennu, uma oportunidade de chegar às Ilhas dos Bem-aventurados, a oeste da África, onde julgávamos estar a Mensagem, sem precisar de passar pelo Mar de Lama ou pelo Mar dos Sargaços.

Necao  ordenou então que fosse reunida a maior frota naval já montada no Egito. O comando e os postos de navegação ficariam com os aliados fenícios, notoriamente os mais habilidosos nas artes do mar. Além disso, havia entre eles habilidosos negociantes, cujos ofícios seriam certamente necessários para negociar com potentados locais o escambo de nossas mercadorias por víveres e escravos. Claro que nossos serviços de informação muito se empenharam para evitar que, entre esses negociantes, levássemos informantes dos Filhos da Cadela, e pretendíamos continuar discreta vigilância durante a viagem.

Alguns consultores gregos suplementariam os necessários conhecimentos da natureza e das técnicas. Haveria também entre eles lingüistas, que haviam participado do famoso experimento de Psamético, o qual determinou que o idioma original da Humanidade era o frígio, e não o egípcio, como se supunha até então. Certamente, necessitaríamos de pessoas capazes de aprender rapidamente os idiomas de povos muito diversos. E, talvez a principal contribuição dos gregos, os seus ferozes mercenários, herdeiros das tradições dos guerreiros de Set, que estariam a postos caso encontrássemos hostilidade em algum lugar.

Muitos escravos fortes seriam necessários para propelir as trirremes, pois não sabíamos onde e quando encontraríamos calmarias. Prometemos que aqueles que viessem conosco seriam deixados nas costas africanas, desde que nos ajudassem a capturar novos escravos para substituí-los; com isso, muitos núbios imploraram para que fossem requisitados pela frota, e, repetindo esse expediente, esperávamos periodicamente trocar os escravos fatigados por outros fortes e descansados.

Nós egípcios, além dos sacerdotes, contribuiríamos com alguns de nossos melhores agricultores. Pois, em uma expedição de duração imprevisível, não havia como determinar a quantidade de mantimentos a levar. Resolveu-se que, uma vez por ano, os navios fundeariam em portos convenientes, e os agricultores desceriam à terra para semear. Durante alguns meses, aguardaríamos a colheita, enquanto caçávamos para reabastecer o estoque de carnes salgadas. Assim, a Expedição seria auto-sustentável.

Partimos de um porto do Mar Vermelho, no início do verão. Oficialmente, anunciou-se como uma grande expedição comercial à Terra de Punt. À boca pequena, nossos serviços de contra-informação deixaram vazar que se tratava de uma circunavegação da África. Essa informação praticamente verdadeira serviria para satisfazer os espiões do Cão e da Serpente, ocultando os aspectos mais sagrados da Missão.

Os primeiros meses da viagem foram tranqüilos, exceto por um singular incidente. Nosso serviço de informação, por vários indícios, suspeitou que um dos mercadores fenícios a bordo era secretamente membro dos Filhos da Cadela. Não querendo correr riscos, usamos de um ardil para livrar-nos dele. Sabedor da gula do mercador, e de sua curiosidade por pratos exóticos, um de nossos agentes comentou com ele sobre como era delicioso um dos pratos preparados pelos escravos núbios: uma espécie de pasta apimentada de farinha de arroz, incrementada com camarões e pedaços de peixe, e feita com um óleo extraído de certa palmeira, que dava ao acepipe o sabor e a cor amarela peculiares, assim como um aroma tentador. O referido prato nenhum mal fazia aos escravos, acostumados com ele desde a infância, mas o mercador, mais habituado aos finos azeites do Mediterrâneo, foi presa de terrível diarréia, agravada pelo balanço do mar. Diante do terrível mau-cheiro, ele próprio concordou em ser deixado em uma aldeia costeira, aos cuidados do feiticeiro local.

Na ocasião, tivemos alguns remorsos, que foram dissipados muitos anos mais tarde, quando o mercador reapareceu são e salvo no Egito, e, de fato, revelou-se como um Filho da Cadela. Durante a estada na selva, dizia ter encontrado o famoso feiticeiro que passara a Ramsés o Bastão do Poder, e obtido deste a fórmula de uma pomada milagrosa, que seria a responsável pelos longos vigor e fertilidade do Favorito. Essa história não é muito crível, pois ninguém tem vida tão longa, exceto, dizem, alguns dos Inimigos; mas os clientes acreditaram, e esse mercador chegou a ficar muito rico por causa de sua Pomada Núbia.

Chegou o final do primeiro outono, e fundeamos em local adequado, para fazermos a semeadura. Na maior parte, os escravos núbios tinham sido substituídos por outros, capturados ou comprados das populações locais. Embora de pele negra como os núbios, tinham feições um pouco diferentes, sendo geralmente mais atarracados, de narizes mais largos e lábios mais grossos, não tão altos e velozes quanto os núbios, mas ainda mais fortes que eles. Ao chegar a primavera, colhemos os grãos, e partimos novamente.

Essa parada serviu também para que promovêssemos festas de congraçamento com os nativos e principalmente as nativas, para grande satisfação dos esforçados tripulantes. Pois nós, sacerdotes, contávamos com algumas sacerdotisas, com as quais celebrávamos as tradições da Nobre Ave; os navegadores e comerciantes fenícios estavam devidamente acompanhados e servidos de escravas de ótima qualidade; e os gregos resolviam o problema lá entre eles mesmos. Mas aos baixos escalões da tripulação só restava, durante os longos meses no mar, recorrer ao revezamento na barrica, tradicional entre os marujos.

Nesse ponto, começaram a acontecer estranhos fenômenos. Esperávamos que os dias se tornassem mais quentes e mais longos, com a chegada do novo verão, mas, ao contrário, começaram a ficar mais curtos e mais frios, como se o inverno fosse antecipado meio ano. Além disso, constatamos que, ao navegarmos rumo a oeste, o Sol se mantinha à nossa direita, e não à esquerda, como acontecia em todas as terras conhecidas!

A costa se curva cada vez mais para o oeste, dando-nos a esperança de que realmente fosse possível contornar a África. Mas os mares se tornavam mais tempestuosos e, para grande pavor da maioria, começaram a surgir os monstros marinhos que jorravam água pelas cabeças! Para acalmar a tripulação, os naturalistas gregos chamaram a atenção para o fato de que os monstros não se assemelhavam a serpentes ou dragões, e sim a peixes, ainda que sem escamas e com nadadeiras traseiras horizontais. Além disso, pareciam também ter receio de nós, pois evitavam aproximar-se demais de nossas embarcações.

Finalmente, depois que passamos um promontório de mar muito tormentoso, a costa voltou a se curvar para o norte. Aos poucos, os dias voltaram a se alongar e aquecer. Mas nova provação nos aguardava; chegamos a um trecho onde o deserto encontrava o mar, a névoa prejudicava a navegação, e, ao tentar chegar à costa, uma de nossas naves naufragou. Continuamos no rumo norte, e chegamos a uma região mais quente e coberta de florestas, onde encontramos tribos semelhantes às da região em que tínhamos invernado, e também tribos de anões. Percebemos que as correntes começavam a nos puxar para o oeste, mas os comandantes fenícios assinalaram a conveniência de subir mais ao norte para novamente semear e invernar, antes que os grãos começassem a escassear.

Sempre rumando para o norte, chegamos a uma região onde encontramos a mais estranha das tribos. Tinham a pele negra como outros africanos, mas eram ainda mais fortes, tinham os narizes muito mais achatados, e eram mais peludos que os mesopotâmios. E pareciam ser de uma raça muito distinta, pois tinham os pelos lisos e os quadris estreitos como os europeus. Mais espantoso ainda: andavam encurvados, apoiando-se com ajuda de seus longos braços; não falavam, apenas grunhiam; e embora ferozes, não caçavam e não comiam carne. E as mulheres eram quase tão fortes quanto os homens, e igualmente ferozes e peludas. Foi inútil tentar recrutá-los como escravos; alguns que chegamos a capturar não conseguiram aprender ofício algum, e morreram em pouco tempo.

Logo depois desse ponto, a costa se curvou novamente para o oeste. Mas a navegação se tornou difícil, pois a corrente oceânica se inverteu, dificultando nosso avanço. Os navegadores mais experientes sugeriram que aportássemos para invernar e semear, para que os escravos pudessem descansar e ser capazes de remar contra a corrente. Nós, sacerdotes de Bennu, fumamos nossas ervas sagradas, e concluímos que se tratava de um sinal para que rumássemos para oeste, onde a Missão nos aguardava.

Após muita discussão, decidiu-se que dois terços da frota invernariam, e um terço retrocederia um pouco ao sul, onde a corrente oceânica empurrava para oeste. Sabíamos que riscos pavorosos poderiam aguardar este grupo, e que possivelmente morreríamos de fome e sede, perdidos no oceano sem fim. Mas assim foi feito. E Bennu não nos desamparou: depois de algumas semanas, avistamos terra novamente, desta vez à nossa frente.

[1] Tradicionalmente tida como sendo a atual Somália.

[2] Uma espécie de rímel antigo.

[3] Atual Lisboa.

[4] Já ouvi falar dessa imprecação. Ela sugere uma utilização heterodoxa de certo vegetal de duplo sentido.

     

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