A Xenoetologia do Mal

A essa altura da conversa, eu já tinha terminado há muito meu Dubonnet e degustava um excelente conhaque, já que Íblis insistira em colocar tudo na conta dele. Parecia-me que financiar a bebida de um desendinheirado doutorando em Xenoetologia era, pelo menos, uma aplicação benigna do dinheiro de um comerciante de armas. Que eu continuava a considerar sujo, embora não conseguisse rebater a dialética de Íblis. Enquanto eu fazia uma pausa para refletir e saborear o perfume do conhaque, Íblis mudou de tom, como se tivesse uma nova idéia:

— Por falar no Diabo, eis um bom exemplo de como um dos mitos mais temidos da Humanidade está sujeito ao que você chamaria de efeitos xenoetológicos. A personificação do Mal, já que o Homem precisa personificar tudo, mesmo aqueles que dizem ser o Mal apenas a ausência do Bem. Você diria que o Mal é uma espécie de Inusitado?

— Sim, se sua referência for uma Ética, seja de origem natural ou divina, que defina o que é correto ou permitido. O Mal é aquilo que não é esperado por essa Ética; portanto, Inusitado.

— Nesse caso, Satanás, ou o Demônio, ou Belzebu, ou Íblis, se quiser, deveria ser o maior dos Inusitados, quem sabe o mítico Inusitado Absoluto. Mas as religiões monoteístas rejeitariam essa idéia, pois coloca o Adversário no mesmo patamar de poder que a Divindade, como fazem os zoroastristas ao emparelhar Ahriman com Ahura Mazda. E os seres malignos das religiões politeístas não têm lá esses poderes maléficos; geralmente são uns coitados, que no fim das histórias sempre levam ferro dos heróis. Mas vamos considerar o que dizem as religiões abraâmicas: quem é Lúcifer?

Respondi sem pestanejar:

— O Portador da Luz, ou seja, a Estrela da Manhã, a aparição matinal de Vênus, que precede o nascer do Sol. Durante alguns minutos, o astro mais brilhante do céu, que desaparece em seguida no fulgor do dia. Mencionado pelo profeta Isaías como símbolo do Rei da Babilônia, cujo Império foi esplendoroso, mas breve.

— Corretíssimo, Basileu. Propaganda política: Babilônia ficava na Mesopotâmia, ou seja, Israel versus Iraque, já naquele tempo. Mas John Milton escreveu o Paraíso Perdido, e criou a lenda do mais belo dos anjos, que se rebela e é esmagado; mas não deixa de ter um lado heróico: Melhor reinar no Inferno do que servir no Céu.

— Como a maior parte dos cristãos não conhece a Bíblia, acham que isso está lá.

— Como também acham que a serpente que tentou Eva é o Diabo. Mas não é isso o que Gênesis 3 diz, e sim: A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos. E é com o Conhecimento que a serpente tenta o casal: vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal. E o Deus dessa passagem é bem estranho; passeia pelos jardins, Adão lhe ouve os passos, esconde-se, Deus o acha, e pergunta o que fez, como se não fosse Onisciente. E finalmente castiga o homem e a mulher por quererem o conhecimento, e a serpente por oferecê-lo.

Comentei:

— Pois acho também estranha a associação entre serpentes e sabedoria, que existe em outras passagens bíblicas: Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas. Pombas, na realidade, são mais inteligentes do que cobras.

— A fama de astúcia e sabedoria das serpentes aparece em praticamente todas as culturas, assim como a oposição entre elas e as aves. Esses mitos não teriam uma fundamentação comum?

O sorriso de Íblis sugeria que ele não estava argumentando a sério, e não me dei ao trabalho de responder. Mas, agora, depois de tudo que já sei sobre a Fênix e o Dragão, fico pensando se ele não estava dando algum recado... Seja como for, ele imediatamente voltou ao assunto do Diabo na Bíblia.

— A única aparição significativa de Satã no Velho Testamento é no Livro de Jó. Mas lá não está escrito que Satã seja o Demônio, mas, sim, aparentemente, mais um funcionário da corte celestial, uma espécie de acusador, ou promotor. O responsável pela Garantia da Qualidade do Homem, em suma. E com intimidade suficiente com o Senhor para ficarem fazendo apostas sobre como Jó se comportará nesta e naquela situação.

Repliquei:

— No Livro das Crônicas, Satã incita Davi a recensear Israel.

— No Livro de Samuel, que é bem mais antigo, é Deus quem faz isso. Em ambas as versões, o povo de Israel é punido severamente por isso, até que o rei faça penitência. Fora a ética duvidosa de punir um povo por uma suposta transgressão do rei, o que há de errado em fazer um recenseamento?

— Talvez os autores façam propaganda contra os recenseamentos, já que eles serviam principalmente para calcular impostos.

— Como vê, mais um objetivo político. Como também o caso de Belzebu: um deus dos inimigos filisteus, como está claro no próprio Livro dos Reis. Mas prevalece a tradição de demonizar os deuses e reis inimigos. Belzebu se transforma de Senhor das Coisas que Voam em Senhor das Moscas; a Besta do Apocalipse representa o Império Romano; o deus chifrudo dos celtas é convenientemente transformado na imagem atual do Diabo...

Comentei:

— De fato, o Diabo assumiu no Cristianismo uma importância muito maior do que no Judaísmo.

— As citações do Novo Testamento são mais freqüentes, mas não menos inusitadas. Muitas estão ligadas a episódios de possessão diabólica; os sintomas descritos são muito parecidos com o que hoje entendemos como doenças mentais... E a tentação de Jesus? Por que o Inimigo se daria ao trabalho de tentar o próprio Filho de Deus? Tinha alguma esperança de sucesso, ou era apenas obrigado a cumprir seu papel em um espetáculo?

Já participando da conversa com entusiasmo, comentei:

— Mas, pelo seu nome e sua aparência, você deve conhecer melhor ainda o Diabo do Islã...

— Você acha mesmo que sou árabe, não é?...  O Shaytan do Corão também é muito interessante, pois ele não tem o poder de fazer o Mal, por si só. Ele pode apenas sussurar idéias pecaminosas na cabeça dos homens, para tentar desviá-los dos preceitos divinos.

Comentei, lembrando meus conhecimentos técnicos:

— Se o Satã dos judeus é o agente da Garantia da Qualidade, o do Islã é a Equipe de Testes...

— Mas o detalhe importante do Satã islâmico é o porquê! Dizem que, quando Deus criou o Homem, ensinou-lhe os nomes de todas as coisas, que os anjos não sabiam. Depois de exibir diante da platéia angélica o conhecimento da nova criatura, o Todo-Poderoso exigiu que os anjos se prostrassem diante do Homem e o homenageassem. Meu homônimo se recusou, alegando que um anjo, criatura feita do fogo, não poderia se curvar diante de uma criatura vinda do barro; altivo como o Lúcifer de Milton! Por isso, foi amaldiçoado para sempre.

Respondi:

— Gosto do detalhe poético que os xiitas acrescentam. Shaytan era a criatura que mais amava ao Criador, e, por isso, seu castigo foi manter-se eternamente apartado de seu objeto de amor, pois o Inferno é a Ausência de Quem Mais se Ama!

— Detalhe poético ou não, não elimina o fato de que os grandes motivos de Shaytan são a inveja e, principalmente, o ciúme. Como diria De Gaulle, que falta de grandeur... Quando encontrar o ilustre José del Tamiz, pergunte a ele se isso é Coisa de Macho.

Pelo jeito, ele conhecia todos os xenoetólogos. Ao longo da conversa, eu ia ficando intrigado com o fato de que um comerciante de armas tivesse tanto interesse em assuntos humanísticos, em particular de religião, e resolvi perguntar isso a Íblis. Ele respondeu em tom condescendente, como se fosse uma coisa óbvia:

— Qualquer livro de marketing lhe ensinará que o bom vendedor deve conhecer muito bem os seus clientes. Ora, quase todos os conflitos humanos, direta ou indiretamente, estão relacionados com as religiões.

— Quase todos?

— Talvez todos. Os conflitos do Oriente Médio opõem muçulmanos a judeus, cristãos, ou muçulmanos de outras seitas. Na África, muçulmanos contra cristãos e animistas. Hindus brigam com muçulmanos na Índia e Paquistão, com budistas no Ceilão, muçulmanos com budistas na Tailândia e com cristãos nas Filipinas. Na Irlanda do Norte, católicos contra protestantes. A União Soviética e a Iugoslávia são mantidas em paz pela mão de ferro comunista; quando esta se soltar, elas se desintegrarão, e muito do sangue derramado será por pretextos religiosos, mesmo que lá, atualmente, todo mundo se diga ateu.

Lembrando agora essa conversa, é estranho que a referência à União Soviética e à Iugoslávia tenha usado a palavra quando e não a palavra se. Essa é apenas uma das lembranças estranhas que Íblis evoca.

Dentro do tema, ele continuou:

— Portanto, conhecer as religiões me ajuda a conhecer meus clientes, e fortalece meus argumentos de venda. Por exemplo, mesmo que eu não tivesse qualquer informação prévia sobre você, saberia que você não tem religião, pela maneira como se divertiu com minhas ironias, e exatamente por isso sei que não corri risco de ofendê-lo.

— E você, como se define? É agnóstico, ateu, ou algo diferente?

— Agnósticos, por definição, não sabem alguma coisa. Sei de muitas coisas, em minha longa experiência, e acho que estaria ostentando uma falsa modéstia, se me declarasse agnóstico.

Realmente, Íblis era muito pretensioso, ou, mais provavelmente, brincava de sê-lo. Perguntei então se ele se definia como ateu. A resposta dele foi parecida com a que Carl Sagan tornaria famosa, anos mais tarde:

— Defina Deus, e eu lhe direi se Ele existe ou não. Se você se refere à figura que aparece nas escrituras das religiões monoteístas, você sabe que é inverossímil, no mínimo porque é muito contraditória. Se você se refere a uma Entidade infinita, você, que tem formação matemática, sabe que isso apenas quer dizer uma entidade maior do que tudo que conseguimos imaginar. Ora, o Homem se julga a suprema entidade existente no mundo físico, aqui e agora. Mas quem garante que entidades muito superiores não surgirão no futuro, seja por evolução do próprio Homem, seja das máquinas? Ou que essas entidades muito superiores, praticamente incompreensíveis, já não existam em outras partes do Universo? Ou até que elas estejam por aqui, ocultas e disfarçadas por motivos que o Homem não entende?

— Agora você está parecendo um esotérico, dos que acreditam em UFOs, ou magos, ou espíritos...

— Esotéricos acham que, se algo é possível, então existe. Alguns acham que mesmo o impossível existe, pois a impossibilidade de certas coisas seria uma farsa cultivada pela conspiração de governos, cientistas e jornalistas. Eu não estou afirmando nada, estou explorando possibilidades inusitadas, exatamente como fazem vocês xenoetólogos.

Anoitecera, e o movimento do Boulevard ficara ainda mais colorido, com seus personagens que seriam inusitados, se ali não fosse Paris. Um engolidor de fogo cuspia labaredas cada vez maiores, para um público apenas medianamente interessado. Achei oportuno voltar ao início da conversa:

— Íblis, estou até com medo de seu poder de argumentação. Se eu tivesse dinheiro, talvez você conseguisse até me vender uma de suas metralhadoras. Para que, não sei, mas isso não é obstáculo para um bom vendedor.

— E como ficaria sua ética, meu bom Basileu?

— Provavelmente, você daria um jeito de me convencer de que seria por uma boa causa. Um discurso que você deve usar com freqüência.

A expressão de Íblis pareceu confirmar minha suposição, mas ele me respondeu com outra pergunta:

— Suponhamos que, tal como na história de Eça de Queiroz, eu lhe oferecesse uma campainha. Basta um toque, e você matará um mandarim na China, e herdará toda a sua fabulosa fortuna. Por hipótese, não existe a menor possibilidade de que sua culpa seja descoberta, e que você sofra alguma punição real. Como você não acredita no sobrenatural, podemos descartar as hipóteses de castigo divino, maldição do Karma, e outras que tanta gente invoca. Você tocaria a campainha?

Dei-me de conta de que o jeito de Íblis lembrava em muito o estranho que oferece a campainha ao personagem Teodoro. Procurei dar uma resposta bem honesta:

— Eu gostaria de responder que não mataria, pois assim ordena o imperativo ético. É o comportamento mais ético, filosófico e civilizado.

— Mas existe mesmo tanta diferença entre esse imperativo ético e o medo das conseqüências? O próprio conto de Eça ilustra o ponto. O personagem Teodoro não acredita em Punição Divina, mesmo depois de ter aceitado um presente de alguém, que se quisermos, podemos identificar com o Princípio do Mal. Mas o remorso se materializa na figura do Mandarim, que Teodoro passa a enxergar por toda parte, e se torna tão insuportável quanto uma tortura física, levando-o a uma série de aventuras esdrúxulas, e finalmente estragando-lhe a vida. E, se você quiser, é fácil encontrar justificativas para crer que o Mandarim mereça a punição.

— Sim, é fácil argumentar que o dinheiro será mais bem empregado em minhas mãos. Posso achar, por exemplo, que a probabilidade de que o Mandarim seja honesto é baixíssima. Se ele for um gangster em Hong-Kong, talvez seja em breve eliminado por outro gangster; ou, se for um alto funcionário corrupto em Pequim, talvez caia em desgraça e seja fuzilado. Em ambos os casos, provavelmente a fortuna dele passará para outros malfeitores.

A expressão de Íblis era quase paternal, ao dizer:

— E não é melhor que o dinheiro passe para alguém esclarecido, que possa usar tal cabedal em benefício do público?

— Viu como você já está me convencendo a matar o Mandarim?

— Eu não o estou convencendo de nada, Basileu. Você é quem está descobrindo as justificativas. E nesses casos, quanto mais a gente precisa do dinheiro, mais facilmente vêm as justificativas à cabeça.

Respondi, levemente irritado por me sentir apanhado:

— A Ética é um contrato social. Na média, todos ganham com ela. Toda a sua argumentação baseada na imprecisão do conhecimento é falaciosa, pois, na prática, existe um consenso civilizado sobre o que é certo e o que é errado, partilhado até pela maioria das religiões e das ideologias.

— Parece-me que o Teste do Mandarim prova que há exceções. E Testes do Mandariam acontecem, na vida real. Na vida de todos, sempre há ocasiões em que aparecem oportunidades de ganho antiético, com pouco ou nenhum risco. Se você invocar a consciência pesada, não estará, de forma disfarçada, com medo de uma punição sobrenatural?

— A consciência pesada é a punição que a evolução desenvolveu para o comportamento anti-social. Receber no cérebro uma carga de hormônios depressivos pode ser pior do que uma tortura física, e é mais um risco a ser computado no jogo da Ética.

O sorriso de Íblis se tornou bem largo, e ele bateu palmas:

Touché! Muito bem, Basileu! Quanto à Ética humana, uma bela explicação! Mas, no domínio hipotético, seres que não estejam sujeitos a essa punição de Darwin não saberiam o que é consciência pesada. Esses estariam livres dos entraves da Ética, pelo menos dessa suposta ética consensual.

— Agora você está parecendo mais um que pega emprestado o conceito de Super-homem de Nietzsche, e o usa para justificar crimes, como fizeram os nazistas!

— Como fez muita gente, fictícia ou real. Os nazistas, que eram de maneira geral simplórios e ignorantes, fascinam muita gente até hoje; Leopold e Loeb, jovens que mataram simplesmente para tentar cometer o crime perfeito, vêm alimentado a ficção há décadas. Mas não estou falando desse tipo de gente, que, como prova o próprio fracasso deles, no fundo eram uns idiotas.

— Idiotas eventualmente úteis aos traficantes de armas.

Como sempre, Íblis não pareceu nem um pouco ofendido. Disse apenas:

— Que seja. Mas eu estou falando é de seres que não tivessem os genes que injetam os tais hormônios negativos, que não passaram por essa parte da evolução, ou que a superaram. Mutantes, máquinas inteligentes, alienígenas, talvez até humanos com extremo domínio sobre sua própria mente, sabe-se lá por que técnicas...

— Você está falando de seres puramente hipotéticos.

Íblis não respondeu, pois novamente acenara para alguém do outro lado da rua. O novo sujeito era também corpulento, mas tinha traços orientais, com bigodinho e barbicha que lembravam alguns retratos de Confúcio. Íblis se levantou e disse:

— A conversa está muito boa, meu jovem Basileu, mas tenho que ir. Negócios me chamam. Uma espécie de Negócio da China. Quem sabe, eu possa até fazer alguma coisa por Fuk Yu-meng... Gostaria de ter tido tempo de convidá-lo para um jantar no Tour d’Argent, para comer uns patos numerados... Aves estão sempre entre meus pratos preferidos, sabia? Au revoir.

Com aquela observação estranha e até meio boba, Íblis desapareceu juntamente com o chinês. Tive a impressão de vê-lo outras vezes, em Paris e em muitos outros lugares, mas sempre ao longe. Claro que seria absurdo imaginar que estivesse a me seguir durante esses anos todos, como fizera Fuk Yu Two durante minha estadia na China. Portanto, deve ter sido apenas impressão. Mas, impressão por impressão, eu continuava a ter a impressão de que ainda ia encontrar Íblis frente a frente, de novo. O Au revoir final tido soado muito literal.

Com o tempo, fui reconhecendo os traços de Íblis em vários personagens. Ele era bastante parecido com Peter Coyote, principalmente no papel que faz em Lua de Fel, de Polanski, exceto que Coyote tem olhos bem azuis, e os de Íblis eram profundamente negros, de um negro que realçava o efeito hipnótico. Hoje eu até me pergunto se os argumentos de Íblis são realmente tão convincentes, ou se ele apenas domina uma técnica avançada de hipnose, que aplica nos clientes. Ele tem também algo do Al Pacino de Perfume de Mulher e, principalmente, O Advogado do Diabo; mas aí, talvez eu o esteja identificando demais com o Íblis islâmico...

Por isso, enquanto eu recordava todo esse episódio, novamente no Deux Magots, quando alguém chamou meu nome, eu tive, por um momento a sensação de que era Íblis, de volta. Mas o homem que se apresentava tinha aparência benigna e quase nada em comum com Íblis. Lembrava um pouco o mestre Tastevin, embora mais corpulento. Disse:

— Muito prazer, professor Basileu. Eu sou Pierre Lecoq.

 

     

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