Encontro em Saint-Germain

Tastevin estava realmente entusiasmado com a formalização dos Três Efeitos Xenoetológicos, pois, poucos dias depois, comunicou-me que havia organizado um workshop para debater o assunto com ilustres colegas de nossa ciência. Encomendou-me uma apresentação bem caprichada.

— Veja só, Basileu, essa é uma grande oportunidade para que você faça contatos que lhe serão muito importantes no futuro. Podem até render alguns pós-doutorados. Da Alemanha, por exemplo, virá o professor Johann Sebastian Freiermund, de Heidelberg, o formulador da Sociologia Eleuterostomática, a Ciência da Boca Livre. Freiermund não só conseguiu estabelecer uma firme reputação na academia sociológica, como é, de nós todos, o que faz mais sucesso com consultorias empresariais. Da Itália virá monsenhor Papabile, recentemente transferido para a Cúria Romana, exatamente porque o Papa reconheceu a importância de se estabelecer um departamento xenoetológico no Vaticano; mas ele continua com contatos na Universidade de Pádua, onde trabalham com a xenoetologia literária. Virá também gente de Salamanca, onde trabalham com o inusitado no amor e no sexo, bem dentro da tradição romântica espanhola, e de Coimbra, onde um núcleo de Inteligência Artificial trabalha com inusitados cibernéticos.

O leitor de A Grande Fênix terá reconhecido a origem de meus futuros laços com a Alemanha e a Itália, tão importantes no meu caminho para até a Nobre Ave. Freiermund veio a ser meu orientador de pós-doutorado, e hoje represento no Brasil os seminários de Boca Livre para Executivos, a mina de ouro do mestre de Heidelberg. Pietro Maria Cacciagermi, meu contato na Interpol, iniciava a carreira de professor de Microbiologia em Pádua, quando lá fiz minha análise do Efeito Palimpsesto na Divina Comédia. O especialista em sistemas Manuel Rui Pontes foi meu colega em Coimbra, e meu orientador em Salamanca, José del Tamiz, foi o formulador da Machística, divulgada no Brasil por um discípulo entusiasta que, em homenagem ao mestre, adotou o pseudônimo de Zé do Crivo.

Tastevin lamentou apenas que, embora os xenoetólogos, de maneira geral, tivessem tendência política de esquerda, dois dos mais eminentes não pudessem vir, exatamente por serem considerados suspeitos pela ortodoxia marxista. Ivan Svobodrotsky, que emulava Freiermund nos estudos da Boca Livre, tinha desagradado a Brezhnev, que o encarregou de avaliar a qualidade das refeições a bordo de um pesqueiro soviético no Ártico. E Fuk Yu-meng, depois de chegar a ser um dos mais importantes conselheiros de Mao, tinha caído com seu mentor Deng Xiaoping, durante a Revolução Cultural, e estava desaparecido desde então. Naturalmente, o leitor do primeiro livro sabe que o caso de ambos teve final feliz: Svobodrotsky é um dos consultores mais procurados, na Rússia avidamente capitalista, e Fuk Yu-meng reapareceu juntamente com Deng, depois da queda da Gangue dos Quatro. Mais tarde, voltou para sua universidade original de Oxford, onde tive o privilégio de assistir a suas brilhantes lições de Xenoetologia Econômica. Com o beneplácito de Deng, que, tendo resolvido adotar a via quase capitalista proposta por Fuk Kwik-li, achou uma boa idéia livrar-se do antigo amigo sem maiores traumas.

Em suma, eu tinha todas as razões para encarar como muito importante minha apresentação no workshop. Depois de alguns dias de muito trabalho de pesquisa, achei conveniente espairecer, enquanto colocava em ordem, e fui ao Deux Magots, como fazia agora no presente. Pedi lá o meu Dubonnet, e beberiquei-o parcimoniosamente enquanto folheava alguns livros e fazia anotações. Depois de algum tempo, fui surpreendido por uma voz zombeteira, bem ao meu lado:

— Vejo que o jovem Basileu está realmente decidido a impressionar os ilustres xenoetólogos!

A voz pertencia ao sujeito que tinha sentado na mesinha ao lado, sem que eu percebesse. Vestia um terno de linho branco, e tinha uma aparência talvez de árabe, mas talvez de israelense ou iraniano ou até afegão, com cabelos, bigode e olhos profundamente negros. Falara em português com perfeito sotaque brasileiro. Como ele sabia meu nome, e sobre o workshop dos xenoetólogos? Perguntei se ele era também da Universidade.

— Não, mas freqüento muito esta redondeza; como as pessoas acham que tenho cara de nobre, alguns me chamam de Conde de Saint-Germain... E, em Saint-Germain, e é impossível não ouvir comentários sobre os assuntos du jour na academia. E o professor Tastevin entende de marketing do conhecimento; tem feito uma bela propaganda dos Três Efeitos xenoetológicos...

Normalmente, eu encararia a interrupção como algo aborrecido, mas havia alguma coisa naquele estranho que dava vontade de dar seqüência à conversa; quase que uma fascinação hipnótica. Perguntei como se chamava e o que fazia. Disse que o nome original dele era um tanto complicado, por isso as pessoas geralmente o chamavam de Íblis. Quanto à profissão, repeti surpreso o que o tinha entendido dizer:

Negociante de almas?

— Não deixo de ser, de certa forma, mas o que disse foi negociante de armas.

Imediatamente, fechei a cara. Embora nessa época eu ainda não soubesse muito sobre a Confraria de Csífodas, os relatos de Pitágoras Xilóforo me tinham infundido ojeriza contra os Confrades, e destes, segundo meu avô, os traficantes de armas formavam a escória da escória.

Como se tivesse lido meus pensamentos, Íblis respondeu:

— Ora, meu caro Basileu, você está tendo uma reação preconceituosa, pouco apropriada para um cientista. Julga com base em um mínimo de informação, com completo desconhecimento do contexto. Um belo Efeito Elefante.

Perguntei, sem refletir muito, mas em tom desafiador:

— E desde quando o tráfico de armas é ético?

— Apenas para efeito de raciocínio, vou aceitar que exista uma noção de ética comum à maioria das pessoas.  Pois bem. O que é tráfico para uns, é comércio para outros; como crítico dos Csífodas, você certamente concorda com isso. E, por sinal, não pertenço a essa Confraria. Faço negócios com eles, quando me convém, como você e os outros xenotólogos dão lá suas consultorias e treinamentos para os distintos confrades, se a paga for boa. E você não sabe quem são meus clientes, e para que eles usam as armas. Você concorda, por exemplo, que enquanto houver criminosos e infratores haverá necessidade de forças policiais?

— Certamente, respondi.

— E policiais têm que estar armados, de preferência mais que os bandidos. Quem venderá armas para as polícias? E as forças armadas? Mesmo sendo filosoficamente pacifistas, temos que convir que, se um país agride outro, este tem o direito de se defender. Se o pacifismo tivesse sido levado ao extremo, o mundo hoje não seria pacífico, seria nazista. Quem fornece armas para os exércitos do mundo?

Respondi um tanto asperamente:

— Negociantes de armas vendem para quem paga, não para quem tem razão.

Íblis abriu um enorme sorriso:

— Ahá!... O brilhante jovem formulador do Efeito Rashomon poderia me dar uma aula sobre como, dependendo de quem conta a história, as mesmas pessoas podem ser terroristas ou combatentes da liberdade, o que uns chamam de Mundo Livre outros chamam Imperialistas, o que uns chamam de Mundo Socialista, outros chamam de Cortina de Ferro... E lá no Brasil, vocês chamam de Ditadura o regime que se intitula Revolução, e eles chamam de subversivos a quem quer que se oponha...

Eu não vi como rebater, portanto mudei um pouco de assunto, perguntando se ele tinha passado muito tempo no Brasil, já que falava tão bem o português.

— Apenas tenho alguma facilidade para aprender línguas, vindo do Oriente Médio, com tantos idiomas e dialetos... Estive no Brasil, mas foi há mais de trinta anos. E, se você quer saber, não forneci armas nem para Vargas, nem para os comunistas ou integralistas. Fui apenas resolver assuntos de amizade; encontrar alguns amigos de lá, e levar para lá um amigo que consegui retirar de uma prisão alemã.

Aquilo, eu achei surpreendente, e perguntei:

— Um opositor político, ou um judeu?

— Não exatamente, um rapaz africano que tinha sido envolvido em um lamentável episódio, que não vem ao caso. Pelo que sei, ele se deu muito bem no Brasil, e os camaradas de lá ficaram encantados com seu enorme talento.

De alguma maneira, tive a sensação de que, com aquela história esquisita, Íblis não estava querendo simplesmente parecer bonzinho; a expressão irônica o desmentia. Talvez se divertisse à minha custa. E me dei conta de que Íblis, se tinha os cerca de quarenta e poucos anos que aparentava, não poderia estar fazendo negócios no Brasil, mais de trinta anos atrás. Questionei isso, e ele me respondeu:

— Você não é o primeiro a se iludir: sou bem mais velho do que aparento. Sou bem conservado. Acho que tenho hábitos saudáveis.

Comentei meio bestamente:

— Um tanto estranha, essa história.

— Como formulador do Efeito Palimpsesto, você sabe que, quanto mais se escava uma história, mais inusitada ela se torna. Por exemplo, o golpe militar no Brasil. Dizem lá os milicos: foi para combater o comunismo que Jango estava trazendo. Você dirá que Jango nada tinha de comunista, e que a CIA esteve envolvida no golpe, como parte da estratégia da Guerra Fria. Se cavoucamos um pouco mais, começamos a descobrir as motivações de cada personagem; por que Lacerda combateu Juscelino e Jango tão ferozmente, e agora se une a eles contra os milicos? E se eu lhe disser que o emprego que arrumei para o jovem africano acabou tendo uma relação importante com tudo o que aconteceu? Aliás, relação é o termo apropriado... Está certo, vejo que você agora ficou confuso, mas é uma longa história. Bem longa.

Nesse momento, Íblis sorriu e acenou para alguém do outro lado do Boulevard. Era um sujeito alto e gordo, vestido à maneira dos judeus ortodoxos. Que não respondeu ao aceno, mas fechou a cara, fez com a mão um gesto de desprezo na direção de Íblis, e seguiu o caminho. A discrição me impediu de perguntar se era um amigo de Íblis, mas ele me respondeu como se tivesse ouvido a pergunta.

— Eu o considero um amigo, mas, como você viu, não sou correspondido. Mas fazemos negócios, e pode-se dizer que somos uma espécie de sócios. Um tipo difícil de agradar, o Elói.

Mais uma vez tive a sensação de que estava servindo de diversão para Íblis. Elói vem de Elohim, um dos nomes hebraicos de Deus, o único aplicável a deuses de outras religiões. Íblis, um dos nomes do Diabo no Corão. Para não dar o braço a torcer, comentei que meu interlocutor e o suposto amigo tinham nomes bem estranhos. Por acaso não estaria ele gozando a minha cara?

— Ora, meu caro Basileu, aposto que muita gente acha o seu nome estranho, e pensa até que é um pseudônimo. Em Bizâncio, quando alguém se referia ao Basileu, todos sabiam que esse era o título do Imperador, não o nome dele. E, depois, qual é o nome verdadeiro de alguém? Nomes secretos fazem parte de longa tradição cultural humana; codinomes são praticamente obrigatórios em profissões antiqüíssimas, como a espionagem e a prostituição. Enamorados costumam usar, entre eles, apelidos bobinhos, que só eles conhecem. Nas culturas asiáticas antigas, potentados e líderes religiosos costumavam possuir diferentes nomes, a serem usados conforme a ocasião. E são conhecidas as tradições judaicas referentes a nomes secretos de Deus. Uma delas diz que o mais secreto de todos só podia ser pronunciado pelo Sumo Sacerdote, uma única vez por ano, na véspera do Yom Kippur, ao entrar no Santo dos Santos. Mesmo assim, ele corria o risco de ser fulminado se não estivesse devidamente preparado, ou se não pronunciasse o nome de forma perfeitamente correta; por isso, ele entrava no recinto com uma corda amarrada a um tornozelo, para ser puxado caso caísse morto. Já os muçulmanos não se cansam de repetir os noventa e nove nomes de Deus, mas nunca o centésimo, que também é secreto...

Aproveitando a referência ao Islã, perguntei se o nome que ele usava não lhe causava problemas no mundo árabe. Respondeu, sempre de bom humor:

— Pelo contrário. Meus clientes árabes são reis, ditadores, comandantes militares, não o povinho. Alguns são religiosos e outros não, mas sempre acham que é um codinome engraçado, apropriado para meu tipo de mercadoria. Aliás, os árabes são excelentes clientes, pois no Oriente Médio sempre precisam de armamentos; ora contra Israel, ora para guerrearem entre si, em guerras civis, para trocar um ditador por outro... Talvez quando os mulás tomarem o poder, e isso ainda vai acontecer, eu precise de outro nome, mas, por enquanto, amedrontar garçons e atendentes de hotel é conveniente...

 

     

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