Os Mercenários e o Rei

A Estratégia de Leonardo propunha também o revigoramento das alianças com Sociedades Menores de tradição guerreira, como tinha acontecido na China, com o Clã do Legítimo Dragão. Outras sociedades, tal como o Clã, tinham sido arrancadas à força do seio do Inimigo, na época quase mítica de Ramsés, o Favorito da Fênix. Por sua origem no Coração das Trevas, dominavam forças malignas, que tinham aprendido a canalizar para a Luz; mas, pelo mesmo motivo, seus integrantes eram constantemente tentados pela recaída e, ao longo da História, de fato muitos voltaram para o Lado Escuro. Isto, dizia Leonardo, não podemos deixar que se repita com nossos aliados.

Segundo Pierre Lecoq, o alvo mais importante da diplomacia de Leonardo foi a Companhia dos Enviados de Asmodeu. Tradicionalmente, considera-se que essa Companhia de guerreiros mercenários se originou dos remanescentes do Batalhão Sagrado de Tebas, reorganizado por Alexandre, sob o comando de seu amigo Heféstion. Por inspiração do eunuco persa Bagoas, adotaram o culto a Asmodeu, tido como demônio da vingança, protetor e sedutor dos homossexuais masculinos. Estudos mais recentes revelariam uma origem ainda mais antiga, que remonta ao culto de Set, deus do deserto egípcio, com atributos similares aos de Asmodeu. Disse Lecoq:

— Não é meu objetivo aqui contar detalhes de toda a história dos Asmodeus, que é bastante rica e interessante. Talvez o coloquemos em breve em contato com um deles, e você poderá ouvir essa história deles mesmos. O que vou narrar agora, apenas, é como Leonardo promoveu a reconciliação de nossa Ordem com os Enviados, e como isso também teve conseqüências importantes para o Renascimento.

Historicamente, os Enviados mantinham boas relações com a Ordem da Grande Fênix, mas tiveram um sério conflito no século XIII. Os planos da Ordem incluíam o apoio à formação do Império Mongol, já que os oráculos indicavam que a próxima Encarnação aconteceria na China, e que o futuro Favorito da Fênix deveria ser um Imperador de origem mongol. Para isso, a Fênix ajudou os mongóis a tomarem Bagdá, depondo e assassinando o último Califa, cuja guarda pessoal era formada pela Companhia dos Enviados de Asmodeu. Essa guarda era formada principalmente por integrantes de minorias, costume que potentados do Oriente Médio praticam até hoje. Deles, a História guarda os nomes dos cristãos Amadeu, Ildeu e Tadeu, chefiados por Zebedeu, um guerreiro judeu, conhecido como Leão de Judá[1] . Resistindo até o último homem, são até hoje venerados pela Companhia. Desse episódio resultou um ranço entre os Asmodeus e a Grande Fênix, que Leonardo se propôs a sanar.

Começou recrutando a ajuda de Michelangelo, o que, por si só, já era um empreendimento difícil. Michelangelo tinha muitos pontos em comum com Leonardo: a genialidade e a maestria em múltiplas disciplinas; o desinteresse por mulheres e a predileção pela companhia de rapazes, nunca assumida abertamente; e o fato de que nenhum dos dois valorizava a si mesmo como pintor. Leonardo, como vimos, dizia que sabia também pintar, e Michelangelo só muito a contragosto consentiu em pintar os afrescos da Capela Sistina, alegando ser apenas um escultor.

Neste último episódio, Michelangelo chegara a acusar Rafael de ter posto na cabeça de Júlio II a idéia dos afrescos, só para forçá-lo a competir em uma arte em que Rafael seria superior. Esse é um exemplo do temperamento irascível de Michelangelo, que já se voltara anteriormente contra Leonardo, aparentemente ressentido por achar que este era superior no domínio técnico. Assim, colocou em dúvida que Leonardo fosse capaz de fundir o gigantesco cavalo de bronze encomendado pelos Sforza, cujo modelo em gesso chegou a ser feito; essa dúvida nunca foi dirimida, pois o bronze destinado ao cavalo acabou sendo usado em canhões, que, inutilmente, defenderam Milão contra os franceses. Em outros acessos temperamentais famosos, martelou o joelho da estátua de Moisés, gritando Parla!, e deixou cair ferramentas sobre Júlio II, com quem brigava constantemente.

Outra diferença com Leonardo é que Michelangelo misturava a postura de humanista da Renascença com fases de religiosidade radical. Numa dessas fases, chegou a queimar as próprias obras na fogueira de Savonarola, como Botticelli. Tinha também fases de envolvimento político. Quanto os florentinos proclamaram a República, durante o Saque de Roma, Michelangelo voltou-se contra os Medici, seus antigos protetores, e trabalhou como engenheiro militar, na defesa de Florença. Nessa faceta pouco conhecida de engenheiro militar é que Michelangelo se approximara dos Enviados de Asmodeu.

Júlio II, determinado a fortalecer o poder militar papal, formara uma corporação de mercenários de estrita confiança, recrutados no ramo suíço dos Enviados de Asmodeu. Os mercenários suíços têm grande reputação guerreira, apesar da tradicional neutralidade do país, ou talvez exatamente por causa dela, e não é de se admirar que haja grande influência asmodaica nessa tradição. Até hoje, a Guarda Suíça guarda algumas dos costumes introduzidos pelos Enviados, como os trajes vistosos e coloridos, o requisito de permanecerem solteiros, e um conjunto de valores, assim descrito no próprio sítio Web da Guarda: são também unidos por certo gosto pela aventura, em um ambiente internacional, com espírito de camaradagem, de aprender o ofício de garantir segurança, aprofundar a própria fé... nesta atmosfera, muitos frutos amadurecem, inclusive a fé, a convicção, as proficiências, as amizades e a alegria de viver.

Nesse período em Roma, Leonardo acertou as diferenças com Michelangelo que, apesar do mau gênio, entendia e apreciava a política e a diplomacia. Michelangelo já era consultor técnico dos Asmodeus que serviam na Guarda Suíça e, sendo Leonardo também renomado como engenheiro militar, os assuntos de armamentos e fortificações serviram para quebrar o gelo. A partir daí, puderam colocar em pratos limpos as mágoas do passado.

Com a intermediação de Michelangelo, os Asmodeus deram vazão a seus sentimentos, lembrando o massacre dos companheiros em Bagdá, e a trágica morte do Califa: como havia a superstição de que derramar sangue real dava azar, os mongóis embrulharam o Califa em um tapete, e passaram a cavalaria por cima dele. E, poucas décadas depois, a Companhia sofreu na Europa o massacre e desmantelamento de um dos seus ramos mais gloriosos de sua história, os Cavaleiros Templários. Leonardo lembrou que a Ordem nada pudera fazer neste caso, estando ainda praticamente extinta na Europa; e que, pouco mais de quarenta anos depois do massacre de Bagdá, o próprio líder Templário Jacques de Molay negociara uma aliança com os mongóis, contra os muçulmanos. Na guerra, na política e na diplomacia, valia o lema Csífodas: inimigos, inimigos, negócios à parte.

Selada, enfim, a paz com os Enviados, Leonardo aceitou o convite de Francisco I, para que se mudasse para a França. Contribuiu para isso a boa recomendação que os Asmodeus deram do monarca francês, a quem protegiam com uma guarda de cem homens. Note-se que, ao contrário de outros monarcas famosos que usaram os serviços dos Asmodeus, o rei francês não lhes partilhava as preferências, e tinha fama de grande conquistador e amante ardoroso. Prova disso é a seguinte história, contada por Honoré de Balzac.

Em 1525, Francisco I foi derrotado por Carlos V na Batalha de Pavia, dando início à seqüência de eventos que levaria ao Saque de Roma. Preso em Madri, à espera do pagamento do resgate, Francisco I passou algum tempo de castidade forçada, e acabou por queixar-se ao colega e captor. Carlos V se condoeu, e determinou a certo capitão da guarda que providenciasse algum alívio para o ilustre prisioneiro. O capitão foi conversar com ele sobre o assunto. Francisco insistia em ter uma francesa, argumentando com a superior destreza destas nas artes do amor. O capitão sentiu que estava em jogo a fama das compatriotas, e propôs que Francisco lhe desse um título de nobreza na França, se conseguisse providenciar uma castelhana melhor que qualquer francesa que o rei tivesse degustado.

A primeira tentativa foi com a amante do Cardeal-Arcebispo de Toledo, que nunca havia experimentado um rei, apenas um príncipe da Igreja, e ficou curiosa. Depois, questionado pelo capitão, o rei francês disse que as espanholas eram passáveis, mas, quando a gentileza era necessária, substituíam-na pelo frenesi, enquanto o abraço de uma francesa jamais cansava, tornando o bebedor mais sedento do que antes. O capitão pediu nova chance na aposta, e trouxe desta vez uma mulher que se mostrou absolutamente maravilhosa, em todos os aspectos. No dia seguinte, Francisco admitiu a derrota, e prometeu um feudo ao capitão, dando palavra de rei. O capitão disse: Eu tinha certeza. Por quê?, perguntou o rei. Resposta: Majestade, é a minha mulher. Espanhóis detestam ganhar chifres, mas gostam menos ainda de perder apostas.

O entusiasmo pelas lides do amor foi apenas um dos motivos que levaram Francisco I a se tornar patrocinador da Grande Fênix. Francisco estava próximo do modelo de governante ideal da Ordem, e bem poderia ser um Favorito da Fênix, se calhasse haver uma Encarnação apropriada na época e lugar. Protetor de artistas e escritores, e ele próprio poeta; construiu ou ampliou castelos famosos, principalmente os grandes castelos do Loire, Amboise, Blois e Chambord; reformou a burocracia do estado, substituindo o latim pelo francês, como língua oficial; patrocinou as primeiras expedições francesas à América; e procurou conter o poder de Carlos V, que unia os impérios espanhol e alemão, aliando-se informalmente ao sultão Solimão, o Magnífico, governante de similar competência.

Leonardo passou os últimos três anos de vida em Amboise, aconselhando a Francisco I, talvez seu maior admirador dentre os potentados. Quando, no caminho de volta a Paris, fizemos uma breve visita ao Castelo de Chambord, o maior do Vale do Loire, Lecoq comentou que o rei quisera desviar o Loire para fazer o fosso do castelo, e Leonardo lhe mostrou, na ponta do lápis, o custo absurdo de tal obra. Francisco desviou, então, outro rio, menor e mais próximo. A admiração do rei valeu pensões generosas não só a Leonardo, como a seus pupilos Salai e Melzi.

Lecoq relata que Leonardo abriu os segredos da Ordem ao rei, que fez questão de participar de rituais à moda clássica, ou seja, com a Cerimônia do Portal Dourado, a mesma que Lucrezia Borgia tanto apreciava. Contou-lhe também sobre os Csífodas e os Inimigos, inclusive a associação destes com o mito do Dragão, e falou-lhe dos grupos que tinham sido subtraídos aos inimigos, como os Enviados de Asmodeu, que o rei conhecia de seus mercenários suíços, e o Clã do Legítimo Dragão. Francisco gostou particularmente da história do dragão chinês do Bem, associado à água, e veio daí o seu famoso símbolo da salamandra.

Este animalzinho, apesar de se assemelhar a um minúsculo dragão, é um batráquio e não um réptil. Sua pele úmida de anfíbio lhe confere alguma resistência ao fogo, o que gerou a lenda de que é capaz de sobreviver às chamas, tendo, portanto, poderes mágicos. Francisco concluiu que a salamandra seria a versão européia do Dragão Branco, Senhor da Água, e adotou-a como símbolo, adornando os castelos do Loire com centenas delas.

No Castelo de Amboise, Francisco I ofereceu a Leonardo as câmaras secretas que abrigariam o ramo local da Ordem. Leonardo comunicou o fato ao Conselho Supremo, em Roma, por missiva criptografada, recomendando-lhes que preparassem a transferência da Ordem para a França, antevendo o dia em que os Inimigos conseguissem tornar a permanência na Itália impraticável. Pouco tempo depois, Leonardo morreu, enquanto Francisco I lhe segurava a cabeça. Todos os seus bens foram legados a Salai e Melzi.

Depois da morte de Leonardo, começaram a correr histórias fantásticas, contou Lecoq. Especulou-se que ele seria um mutante, um homem vindo do futuro, um extraterrestre ou um feiticeiro poderoso, hipóteses que explicariam seus conhecimentos e poderes extraordinários. Como especulações semelhantes são feitas a respeito dos Outros, há quem ache que Leonardo seria um da raça deles, trazido para o Lado da Luz por alguma força misteriosa, que sabe o Espírito Imanente do Universo, para equilibrar o Tecido das Coisas. Daí, há quem ache que Leonardo, tal como Flamel, teria apenas simulado a própria morte, e ainda estaria em ação contra as Forças das Trevas... Lendas, é claro, completou Lecoq.

Cá com meus botões, fico imaginando que essa é uma lenda bem interessante, daquelas capazes de seduzir os crédulos, em sua insaciável avidez pelo Extraordinário. Quem sabe Leonardo ainda faz parte de um grupo dirigente da Grande Fênix, muito mais secreto e poderoso que o Conselho Supremo, sobre o qual eles jamais pretendem me revelar qualquer coisa. Quem sabe, junto com outros de visão inexplicavelmente superior, como Newton (teria sido mesmo barrado por ser assexuado?) e Einstein, aguarda o Armageddon, o momento do confronto final com Flamel, Pafúncio e o Mouro...

[1] Este episódio é narrado, com mais detalhes, em A Grande Fênix.

     

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