A Estratégia de Leonardo

Quando Lecoq disse o nome de Leonardo, eu tive que rir:

— Mais um da lista dos Grãos-Mestres do Priorado de Sião! Não me diga que Leonardo também foi um Arquigalo!

Lecoq respondeu, sério:

— Não. Ele era apenas membro do Conselho Supremo. Logo após a deposição de Botticelli, foi o próprio Leonardo quem salientou os inconvenientes de termos uma celebridade como dirigente máximo. E, de fato, isso nunca mais aconteceu. Além disso, nossa tradição requer que o Arquigalo seja heterossexual, pois a dualidade macho-fêmea é um tema central do simbolismo da Fênix. Mas Leonardo era o membro mais influente do Conselho, e, daquela época até o fim da vida, foi quem traçou a nossa estratégia. Felizmente, pois se não fosse a Estratégia de Leonardo, os danos causados pela Divisão do Mundo teriam sido muito maiores.

Já estava ficando tarde, e Lecoq propôs que continuássemos a conversa no dia seguinte. Iríamos a Amboise, visitar tanto a casa e museu de Leonardo, quanto o famoso castelo, onde, em algum recanto secreto, ficava a Sede Alternativa.

No dia seguinte, começamos a visita pelo Clos Lucé, a casa que o rei Francisco I colocou à disposição de Leonardo. Já com seus quinhentos anos de existência, abriga agora um museu, cujos itens mais famosos são as réplicas das máquinas de Leonardo, construídas sob patrocínio da IBM. Leonardo parece fascinar os gigantes da Informática, pois seu manuscrito mais famoso, o chamado Codex Leicester, é atualmente propriedade de Bill Gates.

 O Clos Lucé é ligado ao castelo, distante quinhentos metros, por uma passagem subterrânea. Iniciado no Século XI, foi embelezado no início do Renascimento por artistas italianos, dos quais Leonardo foi o mais famoso. Lá, na capela de Santo Huberto, está o túmulo dele. Enquanto visitávamos o enorme castelo, Pierre Lecoq foi contando muitos detalhes da história de Leonardo, alguns registrados na História oficial, outros preservados apenas pelos anais da Grande Fênix.

Leonardo nasceu em 1452, filho bastardo do notário ser Piero, da cidade de Vinci. Como era costume na época em relação aos filhos ilegítimos, não recebeu um sobrenome, mas apenas o nome do pai e da cidade: Leonardo di ser Piero da Vinci.  Já na infância, aconteceram-lhe alguns incidentes notáveis. Ainda bebê, uma águia desceu do céu e pairou sobre o berço, tocando o rosto do menino com as penas! Como disse Pierre Lecoq:

— Um presságio fantástico! Acreditamos que o Princípio Imanente que se encarna na Fênix mandou um recado claríssimo sobre quem seria um de seus mais notáveis seguidores, em toda a História!

Lecoq falou sobre outros presságios:

— Muito pequeno ainda, embrenhou-se nas montanhas e descobriu uma caverna. Mais tarde registraria como explorou a caverna, movido pela intensa curiosidade, ainda que tivesse medo de que ali se escondesse algum terrível monstro. Talvez aí ele tenha aprendido a enfrentar monstros sem vacilar, como narrarei daqui a pouco.

Aos cinco anos, foi morar com o pai e com a jovem madrasta, que gostava muito dele. Logo começou a pintar, e um camponês, ouvindo falar do talento do menino, pediu a ser Piero que o garoto lhe fizesse uma pintura. Leonardo pintou cobras cuspindo fogo; o pai achou o quadro tão aterrorizante, que o vendeu a um marchand florentino, por uma boa soma. Fizeram ótimo negócio o marchand, que por sua vez o vendeu ao Duque de Milão, e ser Piero, que comprou uma pintura de um coração flechado, e a entregou ao satisfeito camponês. Interpreta Lecoq:

— Cobras terríveis cuspindo fogo... mais um presságio de quem Leonardo iria enfrentar!

Com talento tão evidente, Leonardo foi aceito aos quatorze anos no atelier do grande Verrocchio. Ali foi treinado em praticamente todas as técnicas artísticas da época, e conheceu alguns outros grandes artistas que trabalhavam no atelier. Principalmente Botticelli, e, claro, aí começou a conexão com a Ordem. Um dia, junto com o mestre Verrocchio, pintou o famoso Batismo de Cristo. Diz a lenda que Leonardo pintou o anjo que segura as roupas de Jesus, e que Verrocchio ficou tão abismado com a qualidade artística do anjo, que nunca mais pintou.

Terminado o aprendizado, Leonardo trabalhou para os Medici em Florença, e depois foi enviado por estes aos Sforza, em Milão, levando uma lira de prata em forma de cabeça de cavalo, construída por ele mesmo, que também era músico. É conhecida a carta em que Leonardo descreve para Ludovico Sforza seus conhecimentos de engenharia, e informa, en passant, que também sabia pintar.

Em 1498, as manobras de Alexandre VI o tornaram aliado do rei da França, até então um adversário. Os franceses tomaram Milão, e Ludovico Sforza teve que fugir. O mesmo fez Leonardo, que foi para Veneza. Disse Lecoq:

— Nesse ponto, como vimos ontem, Lucrezia, depois do nascimento do Infante Romano, partia para o segundo casamento, atendendo às conveniências de Cesare. Por isso, nosso Conselho Supremo ficou extremamente temeroso, quando Leonardo anunciou que passaria a trabalhar para Cesare Borgia, na qualidade de engenheiro militar. Os casos de Botticelli e Lucrezia evidenciavam o poder da influência maligna a que Cesare servia. Mas Leonardo disse que sabia o que estava fazendo, e pediu confiança e tranqüilidade.

Nessa época, por volta de 1500, Cesare Borgia atingia o auge de sua carreira militar e política. Demonstrando extraordinária perícia tanto nas armas quanto na diplomacia, conseguira transformar várias situações desfavoráveis em vitórias estrondosas. As mais poderosas famílias nobres italianas esqueciam inimizades seculares e se uniam contra ele, mas em vão. Niccoló Machiavelli registrou em O Príncipe sua admiração pelas táticas e estratégias de Cesare, que nada mais eram do que a aplicação dos ensinamentos dos Inimigos. Aliás, Machiavelli parece ter sido uma espécie de cronista dos feitos dos Outros, pois ele também registrou, como testemunha ocular, a execução de Savonarola... Sobre isso, Lecoq acrescentaria mais informação, posteriormente.

Leonardo passou algum tempo a serviço de Cesare Borgia, tornando-se grande amigo deste e de Lucrezia. Por mais que os jovens Borgia fossem pérfidos e depravados, eram também inteligentes e cultos, e souberam apreciar devidamente a oportunidade de conviver com o maior gênio da época. Chegou-se a falar num romance entre Leonardo e Lucrezia; segundo Lecoq, ela própria espalhava esses boatos para se exibir diante das amigas, insinuando que teriam participado, dentro da Ordem, de rituais à moda antiga. Mas Leonardo realmente não gostava do ato entre homem e mulher, chegando a dizer que l'atto della procreazione e tutto ciò che ad esso è connesso è così disgustoso che l'umanità si estinguerebbe se non ci fosse un'usanza da tempo consolidata e se non ci fossero visi graziosi e nature sensuali[1]. Comentei:

— Parece aquela história dos ingleses, de que it is disgusting, and the position is simply ridiculous. Mas se ele achava isso, como é que foi parar logo na Ordem da Grande Fênix?

Respondeu Lecoq:

— Vejo essa frase como, antes de tudo, uma refutação da doutrina católica de que o objetivo único e exclusivo do sexo é a procriação. E concordo com ele que os rostos graciosos e as naturezas sensuais são indispensáveis, embora, é claro, cada um perceba a graça e a sensualidade à sua maneira. Mas se Leonardo fosse realmente assexuado, como dizem alguns que não querem enxergar a natureza das relações do mestre com seus aprendizes prediletos, ele não seria admitido na Ordem, com toda a sua genialidade. Newton e Kant não o foram, exatamente por cometerem aquele que é o único comportamento sexual que consideramos aberrante. Como também achamos bobagem a teoria de Freud, para quem a suposta frigidez de Leonardo era causada, adivinhem pelo quê?

Pelos traumas de relacionamento com o pai e a mãe, dadas as circunstâncias de sua infância, é claro. Lecoq descartou a explicação freudiana como pura conversa fiada, embora a Grande Fênix concorde com os freudianos em muitas coisas, principalmente na visão de que a sexualidade tem a ver com tudo. Segundo ele, o que aconteceu foi que Leonardo, ainda bastante jovem, quando aprendiz de Verrocchio, foi acusado de sodomia com outro jovem, um de seus modelos. As acusações foram feitas pela sinistra organização Oficiais da Noite, grupo especializado em perseguir pessoas de comportamento tido como imoral, sobretudo prostitutas e homossexuais. Como era freqüente quanto o acusado tinha protetores influentes, o caso de Leonardo foi arquivado por causa de tecnicalidades jurídicas, mas o gênio tratou de ser bastante discreto pelo resto da vida, o que explicaria os boatos de desinteresse pelo sexo.

De qualquer maneira, Lecoq confirmou a teoria usual de Leonardo teve dois grandes amores. Um foi Gian Giacamo Caprotti, conhecido como Salai ou Il Salaino (O Sujinho ou O Diabinho), que se tornou criado de Leonardo em 1490, aos dez anos. O relacionamento foi bastante tempestuoso, e Leonardo se queixava muito das artes do discípulo. Mas acredita-se que ele tenha sido o jovem retratado em vários desenhos homeróticos e no famoso São João Batista, que aparece como um jovem de expressão safada e um dedo apontando para cima (o indicador, é bem verdade). O outro foi Francesco Melzi, um jovem conde que foi viver com Leonardo aos quinze anos, em 1506; no princípio, despertou os ciúmes do Salai, mas depois os três conviveram em boa paz. Segundo o próprio Melzi, Leonardo sentia por ele um sviscerato ed ardentissimo amore. Salai deixou o artista pouco antes da morte deste, e Melzi ficou com ele até o fim. No testamento, Leonardo dividiu a fortuna entre os dois.

Por mais discreto que Leonardo fosse, em sociedade tudo se sabe, e os Borgia sabiam muito bem de suas preferências. E assim foi que, um belo dia, Cesare ofereceu ao mestre o escravo núbio, julgando estar a fazer-lhe um agrado. Leonardo agradeceu polidamente, mas declarou que o núbio não fazia o seu gênero. E sugeriu a Cesare que libertasse um escravo tão inteligente, simpático e de nobre porte, pois não era correto que um príncipe escravizasse outro príncipe, mesmo sendo este de uma distante tribo africana. Cesare ficou muito envergonhado, e acabou por confessar que tinha sido uma sugestão do famoso Mouro, traficante de armamentos. Leonardo disse então que, por falar nesse Mouro, tinha uma série de reclamações quanto à qualidade dos armamentos entregues, e que gostaria de uma reunião com o Mouro para expor essas críticas.

Quanto se soube disso na Ordem, foi extremo o temor do que poderia acontecer a Leonardo. O Mouro já adquirira fama de ter poderes mágicos extraordinários. Segundo alguns, era capaz de ler pensamentos; de coagir as pessoas a executar seus planos, simplesmente encarando-as de forma hipnótica; de matar com um simples toque no ombro; de falar dezenas de idiomas com perfeição. Dizia-se que teria centenas de anos de existência, apesar da aparência de homem de meia idade. Mais uma vez, Leonardo pediu calma e tranqüilidade.

No dia do encontro, depois de brevíssimo cumprimento, Leonardo recitou os defeitos encontrados nos armamentos vendidos pelo Mouro. Segundo as testemunhas da cena, o Mouro ouviu calado, apenas olhando fixamente para Leonardo, que sustentou de volta o olhar. Ainda sem dizer nada, o Mouro fez menção de tocar no ombro de Leonardo, que simplesmente continuou a encará-lo placidamente. O Mouro interrompeu o gesto e disse:

— Em princípio, essas reclamações muito me surpreendem, pois esmeramo-nos em oferecer aos nossos clientes equipamentos de melhor qualidade, e possuímos os melhores fornecedores do planeta. Mas, quando um gênio como Mestre Leonardo faz tais críticas, sinto-me na obrigação de revê-las com nossos fornecedores e, onde elas nos indicarem algum caminho para a melhoria da qualidade, exigir desses fornecedores as devidas providências técnicas. Portanto, senhores, peço licença para estudar as questões levantadas.

Logo depois dessa ocasião, Cesare libertou o escravo núbio. Dizem que ele entrou para um grupo teatral, e que percorreu a Europa por alguns anos, exibindo seu grande talento. Finalmente, estabeleceu-se em Paris, tendo um jovem nobre inglês por empresário e companheiro. Juntos, viveram uma vida longa.

Logo depois desse incidente, Leonardo anunciou que sua missão junto aos Borgia estava cumprida. Ainda continuou a se corresponder com Cesare, e dar-lhe assessoria técnica, quando solicitado, mas passou os anos seguintes entre Milão, Florença e Roma, realizando diversos trabalhos. Cesare continuou por mais algum tempo suas proezas políticas e militares. Entretanto, parecia agora agir totalmente fora de controle, visando unicamente a aumentar o poder e a riqueza de sua família. Os últimos anos de Alexandre VI testemunharam uma espécie de massacre da cúpula da Igreja. Vários cardeais morreram repentinamente; falava-se em veneno, e dizia-se que cada um tinha passado a última noite com Lucrezia Borgia. Cada cardeal que morria era imediatamente declarado rebelde, e tinha seus bens confiscados pelo Papa.

Foram os dias de império da cantarella, nome dado ao veneno dos Borgia, que simulava a morte natural, e sempre deixava a dúvida sobre a existência do assassinato. Alguns achavam que era um derivado do arsênico, mas, provavelmente, tratava-se da digoxina, que provoca a bradicardia, a desaceleração do coração, e, por isso mesmo, é usada até hoje como remédio cardíaco, em doses mínimas, é claro. O reinado da cantarella terminou bruscamente em agosto de 1503, quando Alexandre VI morreu de repente, e Cesare ficou muito doente, ao mesmo tempo. Oficialmente, foram vítimas da malária que até tempos recentes grassava nos verões romanos, alimentada pela podridão do Tibre.

 Segundo alguns, Cesare envenenou acidentalmente a si mesmo e ao pai. Lecoq acha que os dois se tinham tornado incômodos para os Outros, e por isso foram eliminados de forma exemplar. Certamente, o veneno usado não foi a digoxina. A morte do Papa veio depois de alguns dias de sangramento pelos orifícios, febres e convulsões. O corpo de Alexandre enegreceu e ele inchou tanto que ficou tão largo quanto alto, segundo relato de seu camareiro. Segundo outras testemunhas, Alexandre soltava espuma pela boca como uma chaleira, e gases sulfurosos por todos os orifícios. O camareiro teve que pular sobre o cadáver para fazê-lo caber no caixão. O corpo teve que ser levado para a Espanha, pois o sucessor Pio III lhe recusou ritos cristãos e sepultura em São Pedro.

Cesare tratou de se apoderar dos tesouros do pai antes que a morte fosse anunciada, mas, também muito doente, foi preso por seus inimigos. Dois meses depois, Pio III também morreu de forma suspeita, e o trono papal passou para Júlio II, velho inimigo dos Borgia, que tinha perdido a eleição para Alexandre, apesar de ter também efetuado gastos consideráveis com subornos. Júlio II era também político e general competente; por algum motivo, não quis sujar as mãos com o sangue de Cesare, e o exilou na Espanha.

Ali, no porto de Sevilha, Cesare foi visto discutindo violentamente com o Mouro. Na Espanha da época, a vida de um mouro valia tão pouco quanto a de um judeu, e as testemunhas julgaram que o resultado fosse a imediata prisão do Mouro. Em lugar disso, Cesare foi preso mais uma vez, e desta vez durante dois anos. Ainda escapou desta prisão, mas, em 1507, morreu convenientemente, durante uma batalha, a serviço do cunhado, rei da Navarra.

Livre do pai e do irmão, e longe do escravo núbio, Lucrezia normalizou a vida com seu terceiro marido, Alfonso d’Este, príncipe de Ferrara. Tornou-se boa esposa e mãe, grande dama da sociedade italiana, protetora de intelectuais, e sacerdotisa exemplar da Ordem. Teve alguns casos rápidos com seus protegidos, mas nada que extrapolasse os costumes da aristocracia e as práticas da Grande Fênix. O marido não se importava muito, já que ele tinha uma coleção muito maior de amantes, com quem Lucrezia convivia tranquilamente, tudo dentro da boa e civilizada tradição da Ordem.

[1] O ato da procriação, com tudo que lhe é relacionado, é tão repugnante que a humanidade se extinguiria se não fosse um costume há muito consolidado, e se não existissem rostos graciosos e naturezas sensuais.

     

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