Seth Harkonnen

Já era bem tarde quando o grupo mais jovem terminou a reunião de planejamento deles, e Hindemburg e eu encerramos a conversa sobre os Enviados de Asmodeu. No dia seguinte, limitei-me a circular por lugares como a Chinatown, o Golden Gate Park e o Fisherman’s Wharf, enquanto Gloria e colaboradores tomavam as providências necessárias para a expedição. Concordaram em me levar pelo menos até a morada de Águia Rosa, já que contavam, uma vez tomadas as precauções, que a viagem fosse bastante segura.

Saímos no outro dia bem cedo, mais uma vez em um carro alugado de aparência bastante comum. Da garagem do hotel, em pequenos intervalos, saíram outros carros dirigidos por gente dos Falcões, da Falange ou dos Asmodeus, tomando diferentes direções. Enquanto atravessávamos a Califórnia, esse estratagema foi repetido várias vezes. Entrávamos em alguma garagem tida como segura, ficávamos por lá algum tempo, e depois vários carros saíam com intervalos, em diferentes rumos. Pelo que eu soube, os carros-clones também se ramificavam do mesmo modo em vários lugares, de tal modo que, depois de algumas horas, o nosso era apenas em entre dezenas de carros aliados que seguiam os mais variados roteiros. Quem nos estivesse vigiando não poderia saber qual era o nosso carro, mesmo que dispusesse de satélites espiões, coisa com a qual tínhamos que contar.

Depois de muitas horas, entramos no estado de Nevada, rumo ao deserto. A paisagem lembrava a da Lua, em alguns lugares, e mesmo tendo seu lado bonito, havia muitas extensões monótonas, longamente retas. As moças se revezavam na direção; eu, na qualidade de mais velho, ficava no banco do co-piloto, e Fuk Yu Two e Seth Harkonnen dividiam o banco de trás com a moça restante. Para passar o tempo, a conversa rolou sobre vários assuntos. Eu já conhecia a história dos demais, e, por isso, pedi a Seth que contasse alguma coisa sobre ele.

Seth começou a narrativa na época em que tinha uns dezoito anos, quando, segundo ele, já tinha descoberto as preferências dele há algum tempo. Tinha sido considerado um menino inteligente, mas, aborrecendo-se facilmente com os estudos, foi abandonando as aulas e se metendo em confusões. Mas gostava de malhar em academias, e já era bastante parrudo. Gostava de procurar brigas, e oportunidades sempre apareciam, quando algum desavisado o chamava de sissy ou fag. Numa dessas, machucou seriamente um outro rapaz, foi expulso da escola e passou uma temporada em um reformatório.

Ao sair, resolveu assumir a total vagabundagem. Ia para parques, e passou a usar os good looks para se tornar garoto de programa. O dinheiro era pouco, mas fácil, e servia para comprar tanto granola quanto algumas drogas mais leves, pois pelo menos tinha discernimento suficiente para não usar coisas que lhe prejudicassem a capacidade física. Poderia ser considerado uma espécie de pit boy; só que, ao invés de enrustido e homofóbico como esses rapazes costumam ser, ele era assumidamente do outro lado, e ai de quem olhasse torto.

Há muitos gays bem de vida em São Francisco, e Seth começou a cobiçar as riquezas que via nas casas dos clientes. Depois de algum tempo, deixou de se contentar com os honorários pelos serviços prestados, e passou a fazer alguns furtos, sempre que havia ensejo. Mas houve casos em que os clientes perceberam, e Seth andou batendo em uns dois ou três. Cada caso desses significava uma área de onde ele tinha que sumir por uns tempos, e as coisas estavam caminhando para o ponto em que ele acabaria matando alguém. Daí em diante seria ladeira abaixo, até se deparar com um cliente armado, ou então com o Corredor da Morte.

Um dia em que Seth ruminava essa perspectiva num parque, um sujeito gordinho o chamou para ir à casa dele. Tinha jeito de intelectual, mas Seth percebeu que era um sujeito rico e bastante viajado, pois a casa tinha preciosidades de vários lugares do mundo. Num intervalo de uma conversa que Seth estava considerando como puro bullshit, o gordinho saiu da sala e Seth aproveitou para embolsar uma jóia que lhe chamara mais a atenção. Ao voltar, o gordinho disse:

— Essa aí, infelizmente, não posso lhe dar de presente. É de estimação. Devolva, por favor.

Seth calculou que não precisaria bater muito no gordinho para deixá-lo apavorado, e avançou para cima dele. No instante seguinte, não soube como, ele estava deitado de barriga para baixo, e o gordinho em cima das costas dele, com um joelho no pescoço, segurando com mão de ferro o braço dolorosamente dobrado de Seth. Disse então o gordinho:

— Agora, vamos conversar como gente civilizada. Você vai se sentar no sofá, e ficar bem quieto enquanto ouve o que eu tenho a dizer. Bem quieto, mesmo, porque estou armado, e sou muito melhor como atirador do que como judoca. E não tenha idéias suicidas, pois nem vou lhe matar; você vai precisar apenas de amputar a perna.

Seth se sentou e ouviu, trêmulo de medo. O gordinho continuou:

— Estou vendo, aliás, estou ouvindo e cheirando o seu pavor. Mas estou ouvindo também as engrenagens de sua cabeça funcionando: se esse gordinho é tão bom de briga, o que não poderia eu ser... Bom. É um bom começo.

Esse foi o começo da longa relação de Hindemburg e Seth, como mestre e discípulo; se eles eram mais do que isso, Seth não disse, e obviamente não lhe foi perguntado. O fato é que Hindemburg como que adotou Seth; dava-lhe uma pequena mesada, para que não se prostituísse mais, e obrigou-o a voltar à escola. Durante alguns anos, o próprio Hindemburg complementou a formação cultural de Seth, apresentando-o ao muito que a cidade de São Francisco tinha para oferecer.

Mas, principalmente, Hindemburg mostrou a Seth como a raiva do mundo e o fascínio pelo Mal, que ele tinha dentro si, podiam ser domados e fornecer-lhe energia para realizar grandes coisas. E, aos poucos, na medida em que foi adquirindo a confiança do Mestre, Seth foi aprendendo o que eram os Enviados de Asmodeu. Teve que passar por muitas provas, até ser admitido como noviço.

Foi então que recebeu do padrinho o codinome de Seth Harkonnen, que evocava dois personagens mitológicos associados tanto ao mundo gay quanto às forças do Mal. O deus egípcio, destruidor de Osíris, patrono dos ruivos, dos estrangeiros e da família de Ramsés, símbolo do poder destrutivo, mas domado. E o barão Vladimir Harkonnen, o astuto e poderoso vilão de Duna, de extrema crueldade, mas também possuidor de parte da carga genética necessária para gerar o Kwisatz Haderach, o Messias da Galáxia.

Seth terminou o curso secundário, e fez um curso técnico, por recomendação de Hindemburg. Depois, também por recomendação do mentor, entrou para uma academia militar, pois os Asmodeus costumam passar um período nas forças armadas regulares, que eles encaram como parte da formação. Seth escolheu os Marines, ou seja, os Fuzileiros Navais, que, nos Estados Unidos, são uma força armada separada da Navy, a Marinha. A principal razão para essa escolha foi o simples fato de que os Marines eram tidos como os mais durões.

Tornou-se oficial, e passou alguns anos no US Marine Corps, algumas vezes participando de missões bastante perigosas. Seth mostrou uma foto dele numa dessas missões: usava uma camiseta sem mangas, uma faixa na cabeça, e carregava uma metralhadora que, por sinal, estava ali no porta-malas do carro; a pose e a expressão eram parecidas com as do Rambo. Os planos de Seth eram de ficar por mais algum tempo, mas aconteceu então um incidente que o obrigou a mudar de rumo mais cedo do que previa.

O pivô foi um oficial mais graduado, um tenente-coronel a quem Seth identificou apenas pelo primeiro nome: Frank. O sujeito passou a se interessar por tudo o que Seth fazia, a aparecer de repente em lugares onde ele estava, tanto de serviço quanto de folga, e a fazer algumas perguntas inconvenientes. Seth comentou com alguns amigos, mas foi aconselhado a ter paciência, pois o tal Frank tinha fama de ser um dos oficiais superiores mais durões, e era arriscado tornar-se um desafeto dele.

Um belo dia, quanto Seth estaria de folga, recebeu um convite de Frank para ir à casa dele. O sujeito recebeu Seth sorridente, abriu um vinho que Seth, graças às lições de Hindemburg, identificou como bom e caro, e falou da vida dele. Disse que tinha mulher e um filho na Califórnia, mas preferia estar ali no quartel, na companhia dos camaradas. Falou de vários fatos de sua carreira militar, e principalmente do Vietnã, onde, segundo ele, tinha tido um grande amigo. O amigo tinha morrido em combate, mas era inesquecível, e Seth tinha muita semelhança com a aparência e o jeito do tal amigo.

Seth já não tinha gostado da cara de Frank desde o começo, estava achando a história bastante aborrecida, e as aventuras de Frank um tanto idiotas, comparadas com as sagas que Hindemburg lhe contara sobre a Companhia. Mas ficou realmente enojado quando Frank resolveu lhe mostrar a coleção de memorabilia nazista. Seth detesta nazistas: Hindemburg lhe contara muitas histórias sórdidas dos Camisas Pardas, e como Hitler, depois que não precisava mais de Ernst Röhm, tinha feito com que os SS massacrassem os SA, e passar a enviar homossexuais para os campos de concentração, obrigando-os a usar um triângulo rosa. E a tal coleção de Frank nem como curiosidade servia: era simplesmente trash da pior espécie.

Foi nesse ponto que Frank começou a fazer propostas mais explícitas, dizendo que tinha identificado Seth como alguém de gostos similares. Seth, já bastante irritado, esqueceu-se das admoestações de Hindemburg para que controlasse o notório estopim curto; e acabou revelando mais do que era prudente. Tentou manter um mínimo de educação, mas disse que o fato de ser bissexual não significava que estivesse disposto a se relacionar com qualquer um; que Frank, definitivamente, não fazia o gênero dele; e acabou por se retirar de forma tempestuosa.

Poucos dias depois, Seth teve uma surpresa muito desagradável. Já estava em vigor nas Forças Armadas americanas a política de don’t ask, don’t tell: era proibido investigar se alguém era homossexual, mas os que eram estavam também proibidos de admiti-lo abertamente. Frank havia gravado toda a conversa e deu queixa contra Seth, apresentando uma versão cuidadosamente editada, que dava a impressão de que partira deste a iniciativa do assunto, e continha apenas as partes que incriminavam Seth.

Seth recebeu baixa desonrosa. Quis recorrer, mas Hindemburg o dissuadiu: o escândalo seria prejudicial à Companhia e, de qualquer maneira, julgava que Seth já tinha aprendido nos Marines tudo o que precisava aprender, e que estava na hora de partir para as partes menos convencionais da formação de um Asmodeu. Hindemburg apurou também que Frank tinha sido admitido nos Enviados, tempos atrás, mas tinha sido expulso, por suspeita de estar de em contato com os Inimigos. Especificamente, tinha participado de uma missão no Afeganistão, na época da ocupação soviética, quando os insurgentes islâmicos eram chamados de combatentes da liberdade e não de terroristas. Descobriu-se então que Frank estivera envolvido em transações estranhas com um grupo ligado aos Assassinos; o mesmo do qual fazia parte um tal de Osama bin Laden.

Poucos anos mais tarde, soube que Frank dera baixa, e voltara para a Califórnia. Lá se envolvera em um episódio estranho. O filho de Frank já era um jovem e, para desgosto do pai, tinha saído bem diferente do que o pai esperava: bastante irreverente, meio anarquista, e ganhava algum dinheiro como pequeno traficante de maconha. Segundo o rapaz, trabalhava apenas com coisa fina, cara e de alta qualidade. Moravam numa casa daquelas típicas de suburbia, bonitinha, com verde gramado sem cercas.

O filho começou a namorar a filha do vizinho, que era uma garota meio problemática. Tinha vergonha do pai, um sujeito que tinha um empreguinho medíocre e, segundo a garota, ficava dando em cima das coleguinhas dela; e tinha vergonha também da mãe, uma corretora de imóveis um tanto galinha. Chegou a pedir ao filho de Frank que desse um jeito de matar o pai dela e, o rapaz, que tinha mania de andar com uma câmera de vídeo, achou a história engraçada e gravou a conversa.

Mas um dia deu a louca no tal vizinho. Largou o emprego, arrumou um bom dinheiro chantageando o chefe, e passou a gastar o tempo com duas coisas: malhando, com o objetivo de pegar uma amiga de filha, que tinha dito que só lhe faltava ser mais musculoso, para ser irresistível; e queimando o fumo obtido com o filho de Frank, tornando-se amigo do rapaz. Numa das entregas da erva, Frank viu pela janela o filho e o vizinho; estavam apenas negociando, mas, pela posição em que estava, Frank teve a impressão de que o filho estava fazendo um blowjob  no outro.

Quando o filho voltou para casa, Frank o espancou, chamando-o de bicha em altos brados. O filho viu nisso a oportunidade de sair de casa e mentiu, dizendo que era bicha sim, e garoto de programa dos mais requisitados. Como queria, foi posto para fora de casa.

Mais tarde, Frank apareceu na casa do vizinho, e de repente, o abraçou e tentou beijá-lo. O vizinho disse algo como: Alto lá, amigo, você está enganado, meu negócio não é esse. Frank se retirou, extremamente humilhado. Depois, calçou luvas e voltou à casa do vizinho com uma pistola. Deu-lhe um tiro na cabeça, à queima-roupa.

Seth ficou sabendo do caso pelos jornais e acho que pelo menos teria o prazer perverso de ver o inimigo no Corredor da Morte. Mas houve uma reviravolta. Apareceu a fita de vídeo em que a filha do vizinho pedia ao filho de Frank que matasse o pai dela. Os dois foram incriminados, uma vez que não havia impressões digitais na arma.

Nesse ponto, Seth foi autorizado por Hindemburg a caçar Frank. Pretendia capturá-lo e obrigá-lo a confessar o crime; ou, se não fosse possível, até plantar provas definitivamente incriminadoras contra Frank. Seth tinha aprendido como fazer esse tipo de coisas.

Mas Frank desapareceu completamente, como se tivesse evaporado. Seth acreditava que ele estivesse em algum lugar sob a proteção dos Inimigos, trabalhando novamente para eles. Não lhe restou senão usar a técnica asmodaica de transformar o desejo de se vingar e punir Frank em mais uma força motivadora.

Hindemburg enviou então Seth para a última etapa de sua formação como Enviado: um estágio com Águia Rosa; literalmente, como aprendiz de feiticeiro. Sobre esta etapa, não quis dar muitos detalhes, mas disse:

— Águia Rosa é também um mestre nas artes de sobrevivência nos ambientes mais inóspitos. Eu mesmo já tinha o feito o curso de sobrevivência na selva ministrado pelo Exército brasileiro, que, como deve saber o professor Basileu, muitos dizem ser o melhor curso de sobrevivência do mundo. Mas há algumas coisas que lá não ensinam aos treinandos estrangeiros.

— No Brasil, chamamos esse tipo de coisa de pulo do gato, disse eu.

— Claro, disse Seth. Ninguém ensina todos os truques a potenciais concorrentes ou até, na pior das hipóteses, possíveis adversários. Mas, enquanto fui discípulo de Águia Rosa, ele complementou meu treinamento em selvas tropicais com um estágio duríssimo e perigoso nos pântanos da Luisiana. Tive que encarar muitos jacarés e cottonmouths [1]. E ainda aprendi com ele a sobreviver no gelo do Alasca e, é claro, no deserto americano, que é onde ele se sente em casa.

Seth complementou:

— Águia Rosa é mestre não apenas do xamanismo nativo-americano, mas aprendeu técnicas de muitas outras culturas. Durante meu estágio na Luisiana, ele me levou a uns colegas em Nova Orleãs, que me ensinaram alguma coisa de voodoo e hoodoo.

Hoodoo? Perguntei.

Ele esclareceu:

— Certa vez, Hindemburg me fez uma comparação das crenças da Luisiana com as afro-brasileiras. Disse que, grosso modo, voodoo está para hoodoo como candomblé para quimbanda. Voodoo é mais religião, hoodoo é mais mágica.

E completou:

— Enfim, Águia Rosa está atualmente aposentado. Sort of. Na realidade, a Companhia ainda recorre a ele de vez em quando, e, quando precisamos dele, ele ainda faz coisas muito importantes para nós. Mas voltou ao deserto e lá vive como um ermitão, tendo apenas a companhia de um assistente, uma espécie de Igor... Bem, não estamos muito longe.

[1] Cobra venenosíssima do sudeste americano, chamada de Boca de Algodão por ter o interior da boca branco.

     

Anterior

Basileu

Próxima