A Regressão

Na última etapa da viagem, Seth assumiu o volante, pois ele era o único que sabia o caminho. Deixamos o asfalto, e percorremos estradas de terra sinuosas. Eu não sabia mais se ainda estávamos no estado de Nevada, ou se tínhamos entrado no Arizona; em estradas sem importância como essas, a fronteira não estaria assinalada.

No final da tarde, chegamos a uma casa de madeira, no meio de lugar nenhum. A casa era relativamente grande; tinha um paiol e um poço; de animais, apenas uns cabritos. Quando saímos do carro, Seth apontou para uma pedra, dizendo:

— Águia Rosa me ensinou a comer isso. É bom.

Era uma cascavel, que modorrava, aproveitando o resto de sol. Fuk Yu Two balançou a cabeça, concordando. Gloria fez cara de nojo, mas Luz achou graça.

Apareceu o assistente a quem Seth se referira como “Igor”. De fato, tinha a aparência de um assistente de mago ou de cientista louco, com olhos muito grandes, um pouco esbugalhados. Nada disse, mas fez um gesto para que entrássemos. Seth comentou comigo:

— O nome verdadeiro dele é Coruja Eloqüente. É porque é mudo, mas presta atenção de forma muito eloqüente.

Quanto a Águia Rosa, era bem magro e não muito alto; tinha o cabelo completamente prateado, longo até a altura dos ombros, com uma tira de couro na testa. A idade não era bem definida, mas talvez tivesse setenta e alguma coisa.

Estava pronto para nós um jantar com cabrito assado, milho cozido, alguns legumes e bolachas. Disse que não iria jantar, e que Gloria também não deveria fazê-lo, pois tinham que ter os estômagos vazios para o que viria em seguida. Tomaram apenas grande quantidade de chás de ervas.

Ao cair da noite, Águia Rosa chamou Gloria para se sentar com ele junto a uma pequena mesa. Olhou-a de alto a baixo e disse uma altura e um peso, que ela confirmou. Sentaram-se e ele segurou as mãos dela. Nós outros fizemos um meio círculo em torno deles. No começo, Águia Rosa perguntou algumas coisas sobre a vida dela, inclusive se ela se lembrava de algo daquela casa. Gloria disse que não tinha a menor lembrança.

A iluminação era fraca, e, no começo, tudo parecia uma sessão de hipnose convencional. Águia Rosa falava baixo, inicialmente dizendo muitas coisas em inglês, mas também algumas no que imagino fossem idiomas indígenas. Gloria foi ficando silenciosa, com a respiração compassada.

Águia Rosa acendeu uma espécie de charuto e colocou na boca. Acendeu outro e deu para Gloria. O cheiro não era de tabaco nem daquela erva-que-passarinho-não-fuma. Aliás, Coruja Eloqüente trouxe uma bandeja com cigarros desta. Os outros aceitaram, mas agradeci e dispensei. Coruja Eloqüente me ofereceu então uma garrafa de bourbon e um copinho. Fiquei bebericando.

A respiração de Gloria se tornou mais funda, e ela fechou os olhos. Depois de alguns minutos, abriu-os novamente, e perguntou a Águia Rosa:

— Quem é o senhor? Um colega de vovô?

Olhou em volta, encontrou Luz, e disse:

— Luz, você está... diferente. Quem são estas pessoas?

Falava agora em espanhol, com o cantado de uma adolescente mexicana. Luz respondeu:

— São amigos, Gloria. Está tudo bem.

Águia Rosa perguntou, também em espanhol:

— Quantos anos você tem, garota?

Ela respondeu que tinha dezessete. Águia Rosa disse que era realmente um amigo de Juan Balam, e que estavam fazendo um tratamento. Era necessário que ela agora tomasse um chá.

Coruja Eloqüente trouxe uma leiteira fumegante, e despejou em dois copos, usando um coador. Deu para ver que o material retido no coador era formado por cogumelos. Águia Rosa  tomou um dos chás, e passou o outro para Gloria. Depois, voltou a murmurar, intercalando o espanhol com as línguas indígenas. Gloria voltou a fechar os olhos e respirar fundo.

Depois de mais alguns minutos, abriu novamente os olhos. Olhou assustada em volta e, achando Luz, disse:

— Mamãe, o que está acontecendo?

Luz não demonstrou surpresa; afinal, ela também era uma feiticeira. Apenas respondeu calmamente:

— Querida, você está fazendo um tratamento com um amigo do vovô.

Águia Rosa perguntou novamente a idade, e ela respondeu que tinha dez anos. De fato, a voz dela se tinha transformado em uma voz de menina. E a Luz de hoje devia ser muito parecida com a mãe delas, há pouco mais de vinte anos.

O feiticeiro pegou então um frasco de vidro e tirou um escorpião. Colocou na palma da mão, e deixou que o escorpião o picasse, sem fazer careta alguma. Em seguida, ofereceu o escorpião a Gloria. Esta se voltou, muito assustada, para Luz:

— Mamãe, estou com medo.

Luz respondeu:

— Amor, o tio Águia é um grande feiticeiro, sábio como o vovô. Você precisa fazer isso, para o tratamento dar certo. E a maior parte do veneno já ficou na mão dele.

Gloria fez uma pequena careta, quando o escorpião picou a mão dela. Fechou novamente os olhos, e agora parecia estar em sono profundo. Águia Rosa fez um sinal para que Luz se afastasse para o fundo da sala, nas sombras. Certamente, como Teodora não participara do episódio original da vista à Caverna, ele não queria que Luz fosse vista por Gloria, na próxima etapa. Depois, Águia Rosa também fechou os olhos, e passou a falar mais alto, agora apenas nos idiomas índios. Os outros se mantinham em completo silêncio.

Depois de uns quinze ou vinte minutos, Gloria abriu os olhos, olhou para Águia Rosa, e disse feliz:

— Oi, tio Águia! Onde estão papai e a madrinha?

— Estão trabalhando, Gloria. Estão na Caverna. Você quer ir comigo até lá?

— Quero! Vamos!

Falava como uma criança de cinco anos, e parecia ter ficado excitada com a proposta de ir à Caverna; nem prestou atenção em que estava em volta. Águia Rosa disse, falando também com voz mais jovem:

— Se formos de carro, vai demorar um pouco. Sei de um jeito mais rápido.

— Qual?

— Sabe quando o vovô Juan se transforma em jaguar?

— Sei! É legal!

— Pois é, eu sei me transformar em águia. E posso transformar você também. Você quer?

— Quero, sim!

Águia Rosa segurou as mãos de Gloria, e murmurou algumas palavras no ouvido dela. Em seguida, os dois assumiram uma postura que lembrava pássaros. E começaram a voar.

Concretamente, o vôo era apenas sugerido pela expressão corporal. Não chegaram realmente a abrir os braços, mas o posicionamento deles, principalmente das mãos, e o ondular do corpo sugeriam um vôo majestoso e tranqüilo, usando principalmente as correntes de ar. Os olhos miravam a frente, fixamente. Em alguns momentos, os dois oscilavam em sincronia, como se estivessem fazendo uma curva. Tive a impressão de que, se Águia Rosa quisesse, nós os teríamos enxergado realmente sob a forma de águias.

Finalmente, pararam os movimentos, como se tivessem pousado. As posturas de águia desapareceram, e Gloria voltou a ser uma garotinha. Águia Rosa perguntou:

— Você sabe como entrar lá?

— Sei, sim!

Movimentou o corpo como alguém que subisse uma pequena encosta. Em seguida, fez gestos como se esgueirasse o corpo entre pedras. Devia estar vendo uma espécie de labirinto, pois faz várias mudanças de direção. Finalmente, colocou as mãos na cintura, como se chegasse em um salão e olhasse em volta. Águia Rosa perguntou:

— Gloria, tem certeza de que é este o lugar?

— Tenho, sim.

— O que você acha dele?

— É lindo! Tem pedras coloridas... Luzes... Barulho de água, mas tem um barulho que parece música...

— Como é esse barulho?

— Dentro da cabeça... Eu não entendo, mas papai e a madrinha entendem... Há uma pedra negra... Quadrada... Não, comprida... Ela fala, mas eu não entendo...

— Está ótimo, Gloria. Vamos voltar. Você vai se lembrar disto?

— Vou, sim.

— Promete?

— Prometo.

Águia Rosa colocou a mão na testa de Gloria, e ela adormeceu novamente. O feiticeiro chamou o assistente:

— Coruja Eloqüente, os antídotos!

O assistente entregou duas seringas. Águia Rosa aplicou uma injeção em Gloria, e outra em si mesmo. Gloria começou a tremer, como se estivesse com muito frio. Águia Rosa a carregou nos braços, aparentemente sem o menor esforço, como se ela fosse realmente uma criança e ele um homem de meia idade. Colocou-a na cama, cobriu-a com vários cobertores, e disse para nós:

— Ela agora precisa de descanso, e eu também. Sugiro que vocês também descansem um pouco, pois a parte principal da missão de vocês ainda está por vir. Daqui a umas duas horas, quando ela acordar.

De fato, Gloria acordou duas horas depois, dizendo que estava com muita fome. Coruja Eloqüente trouxe uma sopa grossa e fumegante. Ela tomou vários pratos, como se tivesse uma larica gigantesca.

Depois, disse para nós:

— Vamos. Temos que aproveitar o resto da noite. Já sei o caminho.

     

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