Cilada no Deserto

Diante do grupo reunido, Seth Harkonnen recapitulou a estratégia traçada. O grupo seguiria no carro até onde houvesse estrada, mesmo precária, pois o veículo tinha tração nas quatro rodas. Sendo um veículo híbrido, ele seria usado apenas em modo elétrico; a bateria estava com plena carga. Assim, ele não seria detectado, mesmo que os adversários usassem dispositivos com visão infravermelha, pois estaria na mesma temperatura que o ambiente. Também não haveria barulho de motor ou emissão de gases, que poderiam também ser usados para detecção. Coruja Eloqüente tinha pintado os faróis para que a iluminação deles fosse mínima. Para compensar, Seth Harkonnen, que iria ao volante, usaria óculos de visão noturna.

. A partir do ponto em que o carro não pudesse mais passar, Luz e Gloria usariam uma moto, que iria a reboque. A moto também era elétrica e silenciosa. Estava também com o farol pintado, e Luz também a pilotaria com óculos de visão noturna. Gloria completou que elas parariam no sopé de uma encosta, e ela subiria a encosta sozinha até o ponto de entrada na Caverna, enquanto Luz dava cobertura. Seth lembrou que todos tinham que estar de volta à cabana de Águia Rosa até o nascer do sol, quando o veículo voltaria a ser visível aos satélites.

Nesse ponto, argumentei que eu gostaria de também ir no carro, em lugar de ficar esperando na cabana. Com todas as precauções tomadas, parecia extremamente improvável que o grupo fosse descoberto. E, se fosse, era bom ter uma pessoa a mais para dirigir o carro e pedir socorro, liberando os guerreiros para enfrentar os oponentes. Gloria concordou, e, como era dela a palavra final na expedição, lá fui eu.

Seth assumiu a direção, pela experiência em dirigir em estradas precárias. Gloria foi de navegadora, por ser quem sabia o caminho. Depois de umas duas horas de viagem por uma estrada cada vez mais sinuosa e difícil, tivemos uma surpresa. Uma vasta instalação com um conjunto de edificações que pareciam muito velhas, rodeada por uma cerca de arame farpado. Os prédios estavam escuros e silenciosos, e pareciam abandonados. No portão fechado, havia uma placa:

INSTALAÇÃO MILITAR SECRETA

NÃO ENTRE

À primeira vista, a estrada terminava no portão. Perguntei:

— Vamos ter que penetrar em uma instalação militar?

Gloria respondeu:

— É uma instalação dos anos cinqüenta, da época dos testes nucleares. Na época em que eu vim aqui, a madrinha disse que já estava completamente abandonada. Além disso, não vamos entrar nela e sim contorná-la.

De fato, observando-se bem, podia-se ver que uma trilha ainda mais precária que a estrada saía do lado do portão, contornando a cerca. Houve um pequeno debate sobre se a moto deveria ser usada a partir daquele ponto. Seth observou que, pela parte da trilha que podia ser vista, o carro ainda podia continuar por algum tempo, e que seria conveniente reduzir ao mínimo o trecho que as duas estariam sozinhas na moto.

Gloria, usando a lembrança readquirida na regressão, confirmou que o ponto terminal da viagem de carro não estava muito longe, e que daí em diante seria outro tanto até o alvo. Decidiu-se então que o veículo prosseguiria pela trilha.

De repente, meia hora depois, outra surpresa, bem pior. Um grupo de militares bloqueava o caminho. Seth e Gloria saíram do carro e foram até eles, e ela perguntou qual era o problema. Um oficial respondeu:

— Os senhores estão invadindo área militar, Ma’am.

— Como? A área militar é dentro da cerca, nós estamos fora.

— É uma área militar secreta, senhora. Portanto, aquela cerca é apenas um decoy, uma camuflagem. Na realidade, a área militar se estende bem adiante da cerca.

Seth ficou irritado:

Bullshit, man. Você está se divertindo às nossas custas. Área secreta com delimitação invisível e cerca de mentira! Eu fui militar por muito tempo, e nunca ouvi falar de tamanho absurdo!

Nessa hora, outro oficial abriu caminho. Tinha divisas de general! Olhou para Seth e disse, sorridente:

— Olá, Seth. É bom ver você de novo.

Depois de alguns segundos de dúvida, Seth o reconheceu e avançou para cima dele, gritando:

— Frank, seu filho da puta!

Imediatamente, dois guarda-costas parrudos agarraram Seth, mas ele derrubou os dois e continuou investindo sobre Frank, que recuava. Imediatamente, Seth foi sacudido por uma convulsão, e caiu no chão, onde foi dominado. Tinha sido atingido por um disparo de taser: a pistola que lança dardos que aplicam uma descarga elétrica violenta, com voltagem e duração calibradas para produzir a contração tetânica de todos os músculos do corpo, sem afetar os órgãos internos. Quer dizer, espera-se que não afete.

Imediatamente, outro tumulto estourou a poucos metros. Fuk Yu Two saíra do carro e começava a dar seus saltos prodigiosos de Mestre do Dragão Branco, derrubando dois ou três em cada salto. Até ser colhido por uma rede, que retardou seus movimentos o tempo suficiente para que fosse também atingido por um disparo de taser. Depois, foi muito bem acorrentado e amarrado, como Seth tinha sido. Por via das dúvidas, colocaram-nos desacordados com injeções de sedativos.

Quanto a Gloria e a mim, eles simplesmente nos algemaram. O General disse para ela:

— Interessante, o plano de vocês. Deve ter sido coisa do Seth. Um carro elétrico, com faróis pintados! O único problema é que continua sendo visível ao radar.

Colocaram-nos dentro dos veículos deles e nos levaram para dentro da área cercada, onde agora havia luzes acesas. Só não se deram conta de que estavam levando apenas quatro de nós.

Pois Luz tinha desaparecido, sem que tivessem dado por isso. Não sei se isso fazia parte dos planos de Seth, mas distração causada pelos tumultos dele e de Yu Two fez com que sequer percebessem que ela estava dentro do carro. Nem que o carro rebocava uma moto elétrica, que também havia sumido silenciosamente.

***

O que, por fora, parecia uma área abandonada, por dentro era uma base militar em pleno funcionamento. Chegando lá, tiraram nossas algemas, mas nos colocaram em celas separadas. Lá ficamos durante um dia inteiro.

Fiquei refletindo sobre se aqueles sujeitos eram realmente militares americanos, ou outra coisa. O fato de haver uma base dos Fuzileiros Navais em pleno deserto, muito longe do mar ou mesmo de qualquer rio navegável, pode parecer estranho para o leitor brasileiro. Mas, nos Estados Unidos, ao contrário da maioria dos países, os Marines são uma Força Armada separada, com características mais semelhantes às do Exército que as da Marinha. Em princípio, os Marines são treinados para combater em qualquer tipo de ambiente, já que são tradicionalmente usados como força invasora de outros países.

E eles participaram ativamente dos primeiros testes atômicos, realizados no deserto americano. A idéia, parece, era testar como combateriam em terreno devastado por explosões atômicas, o que se imaginava poderia eventualmente acontecer, por exemplo, na invasão do Japão. Mas usar uma área abandonada como camuflagem de uma instalação secreta era, realmente, um tanto bizarro.

No início da noite seguinte, recebi a vista de Frank. Novamente com uniforme de general, entrou e foi falando:

— Então o senhor é o Professor Xilóforo, de nenhuma organização que se tenha notícia. Para começar, é bom que o senhor saiba que tudo que Seth Harkonnen andou espalhando a meu respeito é mentira. Esses fags não têm jeito melhor de difamar um bom e velho homófobo como eu, do que espalhar que somos bichas enrustidas. E já matei muitos comunas e terroristas na vida, mas não aquele vizinho. OK, o sujeito era meio doidão, mas tenho mais o que fazer que sair por aí matando qualquer doidão. O azar meu e dele foi que nós dois tivemos filhos que não prestam. Mas, felizmente, um velho soldado como eu tem bons camaradas, que podem nos dar a mão forte e amiga nas horas difíceis. Foi assim que voltei à ativa e posso continuar servindo à Pátria, defendendo a liberdade e combatendo a imoralidade de sodomitas como Seth, inimigos de Deus e da família.

Não sei por que ele se estava dando ao trabalho de todas essas explicações, mas, antes de me dar conta da imprudência do que estava dizendo, perguntei:

— E a história do encontro com os Assassinos no Afeganistão, também é mentira?

Por alguns segundos, Frank fez cara de mas como é que você sabe? Em seguida, recuperou o tom pomposo que estava usando, e disse:

— Naquela época, aqueles sujeitos eram combatentes da liberdade. Se alguns viraram terroristas depois, não é culpa nossa. Coisa de comunistas infiltrados, talvez. Mas para minha missão, não fazia diferença. Forças Especiais não são muito diferentes umas das outras, não importa o tempo, o lugar e, para falar verdade, se são nossas, de amigos ou de inimigos. Os métodos são mais ou menos os mesmos, e certamente tínhamos alguma coisa a aprender com esses sujeitos.

E, recompondo-se:

— Bem, quem devia estar aqui fazendo perguntas sou eu. Mas, na realidade, só tenho uma coisa para perguntar. Por que um professor argentino...

— Brasileiro, corrigi.

— Tanto faz. Por que um professor latino-americano metido a besta aparece neste fim de mundo na companhia de um homossexualista militante que acha que é macho, de uma garota mexicana que é até bonita, mas é de uma seita imoral, e de um meliante chinês que, se não for gangster, deve ser comunista? Disseram-me que foi por pura curiosidade. É verdade?

— É verdade, confirmei.

Frank faz uma careta que poderia ser interpretada como cacilda, ou, em bom paulistês, ‘orra, meu! Depois, disse:

— Bem, não sei o que meus superiores vão resolver a seu respeito, mas se seu negócio é curiosidade, acho que vai gostar do que vai ver a seguir. Vim buscá-lo para presenciar o que vocês intelectuais chamam de momento histórico.

E me estendeu as algemas:

— Faça o favor. Mera formalidade.

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