Os Enviados de Asmodeu

Hindemburg discorria como professor entusiasmado pelo assunto que ensinava:

— Em muitas culturas, a associação da homossexualidade com as funções de feiticeiro, profeta e sacerdote é tradicional; e isso é algo que ocorre no mundo inteiro. Já foi observado entre tribos da Patagônia, do Alasca, da Sibéria, de Bornéu, de Madagascar, da África Ocidental, do Congo... Heródoto menciona que os citas tinham feiticeiros conhecidos como andróginos, dotados por Vênus de poderes de adivinhação. Na Bíblia, o Livro dos Reis menciona várias vezes sacerdotes de certos cultos da região que, conforme a tradução, são chamados de sodomitas ou prostitutos. E existe, é claro, toda a tradição de celibato sacerdotal, em muitas religiões...

Percebendo os risinhos, ele disse:

— Ora, vocês são muito maliciosos... Não me estou referindo a alguma religião em particular. O celibato existe na Igreja Católica, como existe ou existiu em muitas outras: entre os monges budistas, os sacerdotes astecas, os adoradores de Cibele e outros cultos de mistério... Enfim, explorar todas as associações entre religião e as diferentes formas de sexualidade, inclusive a ausência dela, é prato para os antropólogos. A tribo de Águia Rosa estava entre as muitas tribos norte-americanas onde existe o costume de encaminhar para o sacerdócio os meninos que demonstrem algum temperamento Uraniano, como diria Edward Carpenter... Vocês o conhecem, não?

— Sim, respondi. Um dos fundadores do Partido Trabalhista britânico, filósofo, escritor e ativista homossexual.

— Além de socialista, ambientalista, vegetariano, estudioso de astrologia e da Grécia antiga, por uns tempos diácono anglicano, depois adorador do Sol... O tipo do sujeito que a direita raivosa gosta de apontar como perfeito exemplo de que todo comunista é gayzista e satanista, e vice-versa, e vice-versa. Bem, voltemos a Águia Rosa. Na tribo dele, em que o uso do espanhol é comum, os rituais mais importantes cabem aos chamados mujerados, escolhidos entre os homens mais fortes da tribo, o que era o caso dele. Águia Rosa passou por muitas provações de fome, silêncio, isolamento no deserto, privação de sono, dor, exposição ao frio e calor; as provas que são requeridas para que o feiticeiro aprenda a dominar incondicionalmente o corpo. Aprendeu com os mestres dele a usar poderosas ervas, fumadas e em chás, assim como cogumelos e venenos de animais. Mas, no final das contas, concluiu que não queria ser um mujerado.

Uma pequena pausa de efeito, e continuou:

— Supostamente, mujerados, como o nome diz, têm que adquirir maneiras e aparência femininas, vestindo-se como mulheres e desenvolvendo mamas, voz aguda e formas arredondadas. A maneira como conseguem é bem estranha: masturbando-se, ou sendo masturbados, muitas vezes por dia, e cavalgando sem sela.

Os homens presentes fizeram todos uma careta de incômodo, o que fez com que Hindemburg comentasse:

— A teoria deles é que essas cavalgadas sem sela provocam também ejaculações e, portanto, perda do princípio masculino. Bullshit. Devem é triturar os ditos cujos. Então, essa era uma parte em que Águia Rosa não estava interessado, e deixou a tribo. Os Pueblos são conhecidos pela proficiência lingüística; muito cedo, Águia Rosa já falava bem o inglês, o espanhol, muitos dialetos dos Pueblos e idiomas de outras nações, como o dos Navajos. Assim, ele se alistou como Code Talker na Guerra da Coréia. Como podem ver, ele não é lá tão jovem... E foi aí que ele encontrou os nossos.

Code Talker era o termo usado para os índios (ou americanos nativos, como preferem atualmente ser chamados) alistados no exército americano, cuja função era transmitir mensagens secretas, usando as línguas nativas deles como código. Um método de codificação muito eficaz, pois esses idiomas são muito pouco conhecidos fora dos Estados Unidos, sem literatura escrita e com estruturas gramaticais exóticas para os falantes das línguas mais comuns.

Completou Hindemburg:

— Como Code Talker, Águia Rosa conheceu meu antecessor, que então estava no Exército americano, trabalhando em... operações especiais. Terminada a Guerra da Coréia, meu antecessor deu por encerrada sua participação em forças regulares, coisa que para nós é sempre transitória; apenas uma oportunidade de aprendizado e treinamento. Águia Rosa veio com ele, gostou de nosso modo de vida, e nós gostamos de ter um feiticeiro de verdade entre os nossos, pois nossa Companhia tem ligações muito antigas e importantes com os Poderes Ocultos... Depois disso, Águia Rosa viveu em nosso meio por muito tempo, e percorreu o mundo como nosso combatente. Na infantaria e artilharia, se precisasse, mas principalmente, é claro, com as especialidades de sua cultura: ele é um dos melhores rastreadores do mundo; e rivaliza com as operadoras da Falange na infiltração sorrateira e do manejo dos venenos mais letais... Venenos esses usados não apenas como armas, mas também como parte das técnicas de exploração do Oculto.

Virou-se para mim:

— Talvez o Basileu estranhe que um professor de Berkeley diga isso, mas não são coisas em que eu acredite, no sentido em que religiosos acreditam. São técnicas de eficácia comprovada por prática secular, não importando se operam por meio de sugestão ou de outros mecanismos entendidos ou não-entendidos pela Ciência.  E aqui chegamos, finalmente, ao ponto que nos interessa no momento.

Dirigiu-se então a Gloria:

— Pois, minha querida Gloria, entre as muitas habilidades de Águia Rosa, ele domina uma técnica muito especial de terapia de regressão. Ele é capaz de fazer com que você se lembre dos detalhes daquela viagem, quando era uma criança de colo. Com clareza suficiente para descobrir rapidamente como entrar na Caverna, assim que chegarem ao local.

Perguntei, surpreso:

— Ele conhece também técnicas de terapia psiquiátrica?

— Ele até conhece, mas o que ele realmente usa são as técnicas de xamã, não as terapias dos brancos.  O método dele, certamente, é muito perigoso, e só pode ser manejado por um feiticeiro da mais alta perícia...

Observei que os outros aceitavam as explicações como se tudo isso fosse coisa muito normal. Hindemburg disse então, em tom mais grave:

—Envolve não só hipnose, como o uso de certas substâncias que podemos considerar como alucinógenos pesados, e até de venenos vegetais e animais. Mas seu pai não teria pensado nisso, se não tivesse certeza, como eu tenho, de que você é capaz de enfrentar essa prova.

Eu consideraria que os métodos de terapia de regressão de Águia Rosa, descritos por Hindemburg, eram apavorantes. Embora Gloria tivesse reagido à informação com muita tranqüilidade, seguiu-se um momento prolongado de silêncio, evidenciando o impacto com que todos tinham recebido as palavras do Grão-Mestre.

Finalmente, Hindemburg fez uma expressão de “vamos mudar de assunto”, e disse:

— Bem, acho que dei uma idéia geral do que tem que ser feito. Seth sabe onde fica a cabana de Águia Rosa, lá no meio do deserto, e conduzirá vocês até lá. Entretanto, quando temos inimigos tão perigosos que podem estar à espera, todo cuidado é pouco. Essa viagem tem que ser muito bem planejada, recorrendo-se às melhores táticas de despiste, para que os oponentes não saibam para onde e por onde vocês estarão indo. Entretanto, Seth atualmente conhece os níveis tático e operacional melhor do que eu. Portanto, Gloria, sugiro que você passe com nossos guerreiros para o escritório, para discutirem esse planejamento. Enquanto isso, ficarei aqui com o Basileu numa conversa de velhos acadêmicos.

Depois que o grupo mais jovem foi para o escritório discutir os planos da viagem, eu disse a Hindemburg que sabia de algumas coisas sobre os Enviados de Asmodeu, baseado em informação que eu tinha recebido da Grande Fênix, mas que gostaria muito de saber o que mais o líder máximo da organização me pudesse contar.

Quanto à origem da Companhia, Hindemburg basicamente repetiu a versão de Ibrahim al-Dajaj: os Enviados se originaram dos sacerdotes de Set, o destruidor de Osíris, dominados por Ramsés graças ao Bastão do Poder, presenteado por um poderoso rei-feiticeiro núbio. Confirmou que, sendo Ramsés ruivo, era tido como abençoado pelo feroz Set, e, devotados ao grande Faraó, seus sacerdotes deixaram o escuro domínio de Apep, o Senhor das Trevas, e passaram a usar o Poder do Mal para combater o Mal.

Do Egito, os servos de Set levaram sua doutrina para a Pérsia e a Grécia. Na primeira, associaram-se ao culto de Asmodeu, principal auxiliar de Arimã, ou Angra Manyu, o Princípio do Mal e das Trevas, o Oposto de Ahura Mazda, Senhor da Luz. Asmodaios é uma adaptação grega de Aeshma Deva, que significa Demônio da Ira, aquele cuja missão seria encher o coração dos homens de ira e desejos de vingança. Asmodeu também era tido como o senhor do desejo carnal, condição na qual ele aparece na Bíblia no Livro de Tobias, no qual, supostamente apaixonado por Sara, filha de Raguel, ele mata seus sete primeiros maridos nas respectivas noites de núpcias. Ou talvez estivesse com inveja de Sara, já que também era tido como protetor dos homossexuais.

Já na Grécia os sacerdotes de Set perderam muito da conotação religiosa, e adquiriram uma feição principalmente militar, mesclando-se com a tradição dórica que levava a glorificação da masculinidade ao extremo de valorizar mais as relações entre homens do que entre os sexos opostos.  Tornaram-se a elite dos exércitos de todas as cidades gregas, da austera Esparta à sofisticada Atenas. Logo adquiriram esses ancestrais gregos a fama de serem os melhores mercenários de todo o mundo mediterrâneo; durante as últimas dinastias egípcias, voltaram à terra de origem para formar as tropas mais aguerridas dos faraós. Nessa condição, por exemplo, é que foram destacados por Necao II para dar cobertura militar à famosa expedição.

Do ramo grego, a derivação mais famosa foi o Batalhão Sagrado de Tebas, única força que se mostrou capaz de derrotar os espartanos, nas guerras internas gregas. O Batalhão era formado por pares de amigos muito íntimos, tal maneira que cada um lutava ferozmente para proteger seu par, e mais ferozmente para vingá-lo, se tombasse em batalha. Desse conceito descendem remotamente os pares de policiais americanos, tornados famosos por Hollywood. Como sabem os amantes de filmes policiais, o assassinato de um dos parceiros costuma impelir o tira sobrevivente a um frenesi de destruição de bandidos.

O gênio militar de Alexandre da Macedônia finalmente derrotou o Batalhão Sagrado. Alexandre era, ele próprio, simpatizante dos conceitos dessa tropa de elite, tal como seu pai Filipe, que se suspeita tenha sido assassinado por um amante desprezado. Alexandre incorporou os sobreviventes do Batalhão vencido a sua guarda pessoal, colocando-os sob a direção de seu mais fiel companheiro, o conhecido Heféstion. Tiveram papel capital na conquista do Império Persa, inclusive porque, do lado persa, a elite das tropas também era formada por mercenários gregos. Não foi a primeira nem a última vez em que a Companhia, sendo uma corporação mercenária, lutou de ambos os lados de um conflito.

Após a conquista da Pérsia, o poderoso eunuco Bagoas, que trocara a intimidade de Dario III pela de Alexandre, contribuiu para dar-lhes uma doutrina mística, baseada no culto de Asmodeu. Daí em diante, passaram a ser conhecidos como Εκπροσωποι Aσμοδαιου, Ekprosopoi Asmodaiou, que atualmente se traduz em inglês como Asmodeus Delegates, e em português como Enviados de Asmodeu.

A partir daí, os Enviados passaram, frequentemente, a desempenhar o papel de guarda-costas de soberanos e outros potentados. Júlio César, por exemplo, era guardado por um batalhão da companhia; seus inimigos escolheram o cenário do Senado para assassiná-lo precisamente porque era proibida a presença de guarda-costas no plenário, como ocorre também nos parlamentos atuais. Se César chegou a participar efetivamente das manobras da Companhia, Hindemburg não quis confirmar, limitando-se a repassar os mexericos da época.

Até o final da República Romana, os ilustres cidadãos costumavam exibir pontos de vista homofóbicos, embora apenas o papel passivo fosse reprovado, como ainda acontece em muitos lugares no mundo atual (por exemplo, no interior do Brasil, acrescentaria eu). Por isso, uma maneira usual de denegrir um político adversário era espalhar um suposto relacionamento homossexual. Isso aliás, acontece até hoje no Brasil, tanto que um famoso político disse, não há muito tempo: “No Brasil, todo mundo que faz sucesso fica sendo corno, viado ou ladrão. Ainda bem que dizem que eu sou ladrão”.

No caso de César, três casos ficaram mais notórios. O primeiro foi com Nicomedes IV, rei da Bitínia. Suetônio relata que, no desfile triunfal de César após as Guerras Gálicas, seus soldados cantavam: “César pode ter conquistado a Gália, mas Nicomedes conquistou César”. César negou o caso sob juramento; de qualquer maneira, o fato é que Nicomedes, em testamento, legou seu país a Roma, coisa que o Senado aceitou sem perguntar por quê.[1]

O poeta Catulo escreveu poemas sobre uma suposta ligação de César com Mamurra, seu principal engenheiro militar. Processado, Catulo se retratou e foi perdoado por César. E houve a fofoca, também divulgada por Suetônio, sobre a suposta ligação com Otávio, que teria sido adotado como filho em troca de favores sexuais. A acusação é ainda mais grave porque Otávio era sobrinho-neto de César e, na época, estava no início da adolescência. Otávio negou veementemente e atribuiu a história a uma campanha de difamação por parte de Marco Antônio. Que era parente deles, e sobre quem, por sinal, havia algumas histórias de teor similar.

Os historiadores observam também que César era notoriamente mulherengo e conquistou não só muitos países, como também muitas e muitas mulheres. O que, segundo Hindemburg, não significa muita coisa, pois muitos dos Enviados são bissexuais e apreciam bastante o sexo feminino.

Com o advento do Império, cresceu a participação dos Enviados na segurança imperial, chegando, em algumas épocas, a constituir o núcleo da guarda pretoriana. Os velhos Inimigos, sempre desejosos de retomar os Asmodeus para seu redil, conseguiram dominar alguns imperadores. Casos notórios foram os de Calígula e Nero; este, apaixonado por um dos guarda-costas, mandou fazer uma cirurgia no infeliz, para transformá-lo em mulher e casar-se com ele. Com a técnica cirúrgica da época, pode-se imaginar que belo resultado deve ter sido. Nesses e em outros casos, a Companhia se considerou dispensada de seus votos de fidelidade, e tratou de despachá-los sem muitas delongas.

Em compensação, um dos maiores patronos da Companhia foi também o maior e mais sábio dos Imperadores: o grande Adriano, em cujo tempo o Império atingiu seu ápice territorial, militar, econômico e cultural. Infelizmente, cometeu o erro de almejar o comando da companhia para Antínoo, o belo jovem por quem estava loucamente apaixonado. Não teria dado certo, pois este era um jovem vaidoso o bastante para suicidar-se simplesmente por não suportar a idéia de ficar velho e feio; certamente, não era alguém de estofo militar.

.Sobre os Enviados na Idade Média, Hindemburg acrescentou detalhes a episódios a que outros já se tinham referido, nesta narrativa. Relembrou como Eleanor de Aquitânia, ao notar certas peculiaridades do filho Ricardo, encaminhou-o aos Asmodeus, que o transformaram em Ricardo Coração de Leão, um dos mais ferozes reis guerreiros da época. Na Companhia, Ricardo tinha como parceiro o famoso Blondel[2]. Este era um menestrel e não um combatente, mas era um agente secreto de valor. Quando Ricardo foi aprisionado no castelo de Dürnstein, foi o menestrel quem o localizou, ao ouvi-lo responder à canção deles.

Outro caso em que os Enviados participaram dos dois lados de um conflito foi nas Cruzadas. Do lado muçulmano, tinham grande prestígio, pois, naquela época do Islã, a homossexualidade não era anatematizada como é atualmente; pelo contrário, era tolerada e até incentivada, pois não corria o perigo de gerir progênie bastarda, que era o que realmente preocupava os califas e sultões. Foi assim que se criou a famosa guarda do Califa de Bagdá, que, como narrei no primeiro livro, pereceu heroicamente, defendendo o último califa contra o assalto dos mongóis. Como havia a superstição de que derramar sangue real dava azar, os mongóis embrulharam o califa em um tapete, e passaram a cavalaria por cima dele. E, como Pierre Lecoq me contara na França, esse incidente provocou uma rixa entre os Enviados e a Grande Fênix, aliada dos mongóis, que só viria a ser sanada pela mediação de Leonardo e Michelangelo.

Do lado cristão, havia não só casos como o de Ricardo Coração de Leão, mas principalmente a corporação dos Templários, um dos mais brilhantes ramos de toda a história dos Asmodeus.

[1] Segundo a autora de ficção histórica Colleen McCullough, que tenta apresentar versões que considera realistas, César, na época com vinte anos, e Nicomedes, já com 80, desenvolveram grande amizade, tipo relacionamento neto-avô, mas sem conotações sexuais, exceto periódicas cantadas de brincadeira, da parte de Nicomedes; e o legado da Bitínia a Roma foi uma decisão política, pois Nicomedes, sem herdeiros homens, temia que o reino caísse sobre o domínio muito mais cruel de Mitridates do Ponto, que mantinha a única filha de Nicomedes como refém.

[2] Nome significativo, por sinal. Lembra-me de Aquiles, que, quando adolescente, vivia disfarçado de mulher, usando o nome de Pirra, que significa Ruiva, mas alguns traduzem como Loura.

     

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