Janet Nightingale tinha querido nos esperar no aeroporto de São Francisco. Gloria, entretanto, convenceu-a a nos esperar em casa. Quando chegamos ao aeroporto, Gloria fez uma rápida ligação para ela, e fomos para o estacionamento de uma locadora, pegar o carro que as irmãs León tinham reservado. Era bem mais discreto que o carro esporte vermelho usado no México; evidentemente, elas queriam chamar menos a atenção. O que não impediu um jardineiro que trabalhava no jardim ao lado de prestar bastante atenção nelas. Não dei maior importância, já que a beleza delas costumava chamar mesmo a atenção dos homens circunstantes.
Deixamos nossas coisas em um hotel, e fomos para a casa de Janet. Era uma das charmosas casas de arquitetura vitoriana, em uma ladeira da Russian Hill, num dos pontos mais tradicionais da cidade. Gloria tocou a campainha. Ninguém respondeu.
Depois de tocar mais duas vezes, elas concluíram que havia alguma coisa de errado. Apesar da idade, segundo elas, Janet estava longe de ser surda. Luz sacou um fio de metal e fez menção de colocá-lo na fechadura. Nesse momento, alguém apareceu de repente, à nossa frente. Por um momento, tive a impressão de que Luz gritou, em inglês:
— Você também!
No instante seguinte, dei-me conta de que ela tinha dito “Yu Two”. Pois se tratava de Fuk Yu Two, o mesmo que o leitor já conhece como sobrinho do filósofo e economista Fuk Yu-meng, dono de restaurante chinês em Londres, guerreiro do Clã do Legítimo Dragão, e Mestre do Ken Pei-dou. Que, obviamente, era o mesmo que nos observara no aeroporto, usando o disfarce de jardineiro, habitual do seu Clã. Ele disse:
— Aconteceu alguma coisa muito séria. Esperem aqui. Eu vou entrar primeiro e verificar.
Luz acabou de abrir a fechadura, e Yu Two entrou na casa. Dois minutos depois, ele nos chamou da garagem. Entramos e vimos Janet caída no chão. Luz verificou a pulsação dela, e em seguida cheirou-lhe os lábios.
— Ela usou o Veneno.
Evidentemente, Janet percebeu que ia ser seqüestrada e tentou entrar no carro, mas viu que estava cercada. Deve ter avaliado que a situação era extremamente séria, uma vez que preferiu usar o Veneno, cuja única finalidade seria preservar o Segredo da Caverna. Mesmo sabendo que, com isso, deixaria Connie Millet como única detentora do Segredo.
Gloria caiu em prantos, mas, ao mesmo tempo, ficou furiosa, gritando:
— Isso é culpa daquela puta! Ela deixou a madrinha sem a proteção dos Falcões! Se é que isso não é obra dela mesma! Agora ela vai ouvir o que merece!
E discou um número no celular, antes que se pudesse discutir se isso seria a ação mais prudente. Mas ninguém respondeu. Luz tentou fazê-la parar, mas Gloria tentou outros números. Em Stanford, ninguém tinha visto Connie Millet há vários dias. Gloria resolveu então ligar para o pai.
Ela ouviu atentamente o que o pai dizia, e finalmente parou de soluçar. Disse-nos então:
— Papai acha que ainda há uma solução. Precisamos encontrar Águia Rosa.
Perguntei:
— Quem é Águia Rosa?
— Um feiticeiro índio. Um xamã, velho conhecido de papai.
— Ele vive aqui em São Francisco?
— Não. Não sabemos onde ele está. Mas Seth Harkonnen sabe.
Gloria ligou para outro número. Deu para ouvir que ela falava com uma mulher, que também chorou quando recebeu a notícia. Trocaram palavras rapidamente, e Gloria me disse:
— Falei com Serena Nightingale, a neta de Janet. É minha amiga, e é da ala do Conselho Norte-americano que faz oposição a Connie. Ela fará contato com a Polícia, e tomará as demais providências necessárias. Quanto a nós, temos que sair imediatamente daqui. O tempo urge, e não podemos gastá-lo prestando depoimentos em uma delegacia. E Seth está no Oyster Bar. Vamos para lá.
No caminho, Fuk Yu Two esclareceu a razão da presença dele ali. Donald Cockburn Sr. tinha entrado em contato com Fuk Yu-meng, colocado o velho mestre a par da situação, e informado que eu estava acompanhando as filhas dele. Mais uma vez, Fuk Yu-meng acionou o sobrinho, para que nos prestasse proteção, na qualidade de guerreiro do Clã do Legítimo Dragão. Fuk Yu Two nos seguiu ocultamente, até o momento em que percebeu que quem quer que estivesse tocaiando os líderes da Grande Fênix agira novamente.
Percebi que estávamos entrando em The Castro, o famoso bairro gay de São Francisco. Percebendo certa surpresa de minha parte, Luz disse:
— O Oyster Bar aonde nós vamos é um bar gay. Seth Harkonnen faz parte dos Enviados de Asmodeu. É um dos melhores guerreiros deles, se não o melhor.
Quando chegamos lá, já tinha anoitecido. A maioria dos freqüentadores tinha o visual conhecido como Castro clone: uns sujeitos bem malhados, de botas, calças jeans, cinturões largos, camisetas escuras, casacos de couro, bigodões, alguns com quepes também de couro e cavanhaques. Disseram-nos que Seth estava a caminho, e fomos esperar no bar. O barman era um sujeito com o mesmo visual, uns dois metros de altura, largura proporcional e bastante peludo. Tendo ouvido as León trocarem algumas palavras em espanhol, disse sorridente:
— O que as lindas mexicanas vão querer? Tequila sunrise, talvez?
Gloria aceitou o drinque feito com suco de laranja e tequila, com um gradiente de vermelho para amarelo, de baixo para cima, graças ao xarope de groselha sem misturar. Liz preferiu um gim-tônica, que veio fosforescente, por causa da luz negra do ambiente. Pedi a mesma coisa. O barman perguntou então para Yu Two:
— E o que faço para o primo de Jackie Chan aqui? Como você se chama?
— Fuk Yu Two.
— What?!!
O barman, furioso, agarrou Yu Two pelo colarinho. Pensei: Pronto, está feita a merda. Não duvidava que Yu Two fosse capaz de esfacelar o gigante, pelo que eu o tinha visto fazer na China, mas os freqüentadores do bar eram muitos, e provavelmente vários deles eram Asmodeus. Ou seja: membros de uma das mais ferozes e preparadas corporações de mercenários da História.
Felizmente, nessa hora, outro sujeito tocou no ombro do barman, e disse:
— Take it easy, Ursus. É apenas um nome chinês. Lembra-se de Wan Long-kok?
O recém chegado, logo vim a saber, era Seth Harkonnen. Apenas um pouco menor do que Ursus, ruivo, sem cavanhaque, mas com bigodões de morsa. Ursus pediu desculpas, abriu novamente o sorriso, e ofereceu a Yu Two, por conta da casa, um mai tai. Ainda ressabiado, Fuk Yu Two, agradeceu, mas dispensou o coquetel suave e enfeitado com uma pequena sombrinha de papel, dizendo preferir um mao tai, a fortíssima aguardente chinesa de sorgo. Observando bem, ele era mesmo parecido com Jackie Chan.
Sentamo-nos numa mesa, e Fuk Yu Two disse:
— Conheço esse Wan Long-kok. É dono de um restaurante macanês.
Referia-se ao grupo étnico originário de Macau, resultado da mistura de sangue chinês, português e africano. Seth disse:
— É uma excelente cozinha. Curioso é que dizem que, pelo lado africano, ele é aparentado com a famosa linhagem dos Vida Longa.
Seth escutou atentamente a história contada pelas gêmeas. Depois disse:
— Claro que você podem contar comigo. Não só pela aliança histórica entre nossas sociedades, como pelos nossos laços de amizade pessoal. Mas, ao que tudo indica, estamos lidando com gente muito perigosa. Possivelmente, esses atentados todos envolvem a Confraria de Csífodas, ou os Inimigos, ou até mesmo ambos os grupos. Além de alguns dos grupos de criminosos mais perigosos do mundo. Acho que precisamos nos aconselhar com Hindemburg.
Perguntei quem era Hindemburg, e esclareceram-me que era o Grão-Mestre da Companhia dos Enviados de Asmodeu, ou seja, o líder máximo da corporação. Fomos para a casa dele, que ficava no mesmo bairro.
Hindemburg era de estatura apenas média, e podia ser considerado gordinho. Usava um cavanhaque tão prateado quanto os cabelos. Vestia-se todo de preto, usando um medalhão de prata, que imagino fosse um símbolo da posição dele. Em contraste com os modos militares de Seth, falava manso e lembrava um professor universitário, o que de fato era, em Berkeley.
Preparou rapidamente um clam chowder, a típica iguaria de São Francisco: sopa cremosa de mariscos, servida dentro de crostas de pão tipo italiano. Serviu, para acompanhar, um Pinot Grigio; melhor ainda, o italiano, não o californiano. Gloria foi a primeira a falar. Olhou em volta e perguntou:
— Professor Hindemburg, sua casa é à prova de espionagem?
— Ora, Gloria, você sabe que Hindemburg é um codinome, portanto não tem o “Professor”... Em Berkeley, chamam-me por outro nome. Mas a casa é à prova de bugs, sim. Tenho o que há de melhor em matéria de equipamentos de varredura e bloqueio eletrônicos. Pode falar sem problemas.
Gloria recapitulou rapidamente os eventos do dia e disse:
— Assim que liguei para meu pai, ele me disse que certamente minha madrinha tinha algum plano alternativo, para o caso de ser morta ou capturada antes que pudesse falar comigo. Eu deveria estar atenta, pois alguém deveria estar encarregado de me mandar informação, caso algo acontecesse com ela. De fato, verifiquei em meu celular que chegou, há pouco, uma mensagem de correio eletrônico dela. Devia estar programada para ser enviada em caso de morte dela.
— Sim, disse Hindemburg. Nós mesmos costumamos usar esse tipo de dispositivo: um sensor que detecta a falta de pulsação, e dispara um processo que algum computador, que envia informação para alguém. Uma versão eletrônica do antigo método de deixar documentos comprometedores com um advogado, para serem publicados caso algo aconteça com o titular.
— Pois então. Recebi um arquivo codificado, absolutamente à prova de decifração. A codificação dele é baseada em brincadeiras que ela fazia comigo quando eu era criança, e que, portanto, só nós duas conhecemos. Mas ele tem as coordenadas da Caverna.
Aquela informação me surpreendeu, pois imaginei que o problema, então, estivesse resolvido. Mas não era bem assim, como Gloria continuou:
— Isso seria o suficiente, se eu dispusesse de tempo e segurança. Mas o local da Caverna é de difícil acesso e muito bem camuflado; tanto assim é, que ficou oculto por mais de dois milênios e meio. Mesmo tendo as coordenadas, levaria tempo para descobrir o ponto de entrada e remover vários obstáculos que existem para dificultar a penetração. Pior ainda, eu teria que fazer isso sozinha, ou talvez, no máximo, com mais uma pessoa, para manter mínimo o número daqueles que sabem como entrar na Caverna. É muito arriscado. Precisamos partir da premissa de que nossos oponentes podem ter sistemas extraordinários de vigilância. Se lhes for dado tempo suficiente, eles certamente conseguirão me achar.
Perguntou Hindemburg:
— E que ajuda você espera de nós?
— Papai disse que Águia Rosa pode me ajudar. Eu pergunto: como? Quem é ele?
Estando ou não no papel de professor, Hindenburg assumiu um tom didático:
— Águia Rosa é muitas coisas, e tem muitas habilidades diferentes. Em primeiro lugar, é um xamã de uma tribo dos Pueblos, um descendente dos Anasazi. Esse nome significa povo antigo, e, de fato, essa tribo se considera remanescente do Clã da Águia.
— Sim, completou Gloria. Conforme foi descoberto por minha madrinha, as lendas deles dizem que, quando Águia de Fogo voltou para o México, deixou-os encarregados de protegeram o Lugar Sagrado. Foi seguindo as pistas desse lugar, e com a ajuda deles, que ela achou a Caverna.
— Na realidade, o lugar onde ele mora não é muito longe de lá, e ele era amigo de Janet. Inclusive, foi da casa dele que Janet partiu com seu pai vendado, rumo à Caverna. Levando você. Isso é muito importante para a missão que ele pode lhe ajudar a cumprir. Mas esse é apenas um dos fatos notáveis sobre Águia Rosa. Como xamã, ele sempre teve contato com os feiticeiros do Clã do Jaguar, e aprendeu com eles muitas coisas. De fato, Luz, ele recebeu todo o treinamento de um dos auxiliares da Falange. Isso também é importante, considerando-se que ele deve ajudá-las a realizar uma missão altamente secreta.
Fez uma pequena pausa, como professor que espera enquanto os alunos absorvem uma novidade surpreendente, e continuou:
— E, finalmente, há a relação dele com nossa Companhia. Aí, tudo começou com as preferências dele... Durante décadas, Águia Rosa foi nosso instrutor, tanto de rastreamento, infiltração e sobrevivência, quanto das artes ocultas que também fazem parte de nosso cabedal.
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