Apocalipse

Assim que entramos, o helicóptero decolou. Lá dentro, pude vir que Hindemburg era o piloto. E que o último tripulante era quem eu menos esperaria: meu ilustre mestre, doutor Fuk Yu-Meng, o grande filósofo e economista chinês, agora radicado na Inglaterra.

O doutor Fuk me acenou bem humorado, mas fiquei aparvalhado. É certo que eu, Cockburn e Hindemburg estávamos longe de ser jovens, e que Sir Reginald era pelo menos uns dez anos mais velho do que nós. Mas o que estava fazendo ali um homem quase centenário? E, ainda por cima, o velho mestre a todo momento bebericava de um cantil onde estava escrito D2O. O símbolo da água pesada, na qual o hidrogênio é substituído por deutério, o isótopo que tem um nêutron, além do próton solitário do hidrogênio normal.

Não tive tempo de pensar mais no assunto, pois Gloria interpelava o pai, aflita:

— Pai, realmente os Inimigos levaram a melhor. Iblis não apenas tem a Fênix, cujo sacrifício no Brasil, aparentemente, foi apenas uma encenação. Ele agora também tem Connie, o que significa que logo terá o segredo da Caverna. Não creio que ela fosse usar o veneno, mas, de qualquer maneira, ela mesma disse que não o tem. E, se por um acaso ela uma vez na vida resolver honrar seus juramentos da Ordem, a lavagem cerebral dos Inimigos quebrará facilmente qualquer resistência dela.

Em paralelo, pude ver com o canto do olho que Luz dava rapidamente instruções a Seth e Fuk Yu Two, em voz baixa. Donald Cockburn respondeu gravemente:

— São problemas para nos preocuparmos depois. No momento, temos que colocar rapidamente o máximo de distância possível entre nós e a base. Este helicóptero não tem armamentos pesados; essa foi uma das condições da negociação. E, mesmo tendo nas mãos a Nobre Ave e uma detentora do Segredo da Caverna, ele pode querer completar o dia eliminando, de uma só vez, o punhado de inimigos importantes que está neste helicóptero. Afinal, não é todo dia que se pode liquidar de um só golpe com dirigentes de nossa Ordem, dos Asmodeus, da Falange e do Clã.

Sir Reginald perguntou:

— Acredita que ele ousaria nos atacar, havendo um Observador a bordo?

Cockburn respondeu:

— Dizem que o Diabo e forças similares do mal aderem de forma escrupulosa à letra dos acordos que firmam, mas o grande perigo está no que não foi escrito. Já vimos como ele usou astuciosamente de pretextos para eliminar Takawara e passar por cima de Connie, e como ocultou de mim o fato de que Connie estava naquela base. Portanto, existe o perigo de que sejamos atacados à traição, e ele alegue que foi sabotado.

Como para confirmar o que ele acabara dizer, nesse momento vimos que dois mísseis eram disparados da base, e começaram a vir velozmente na direção do helicóptero. No mesmo momento, Fuk Yu Two se colocou na porta do helicóptero, de costas para fora. Uma bola de fogo foi lançada atrás dele, ganhando velocidade na direção dos mísseis. Atraídos pela bola, eles se dirigiram para ela, e mísseis e bola explodiram em um enorme clarão.

Mas uma vez, éramos salvos pelo poder do Peidouken, a bola de gases combustíveis que é incendiada por uma descarga elétrica, resultante do Qi, o fogo vital, o plasma gerado pela eletricidade corpórea.

Segundos depois, a voz de Iblis apareceu no sistema de comunicação do helicóptero. Parecia ansiosa e cheia de urgência, algo que de maneira alguma combinava com o jeito de ser do Iblis que eu conhecia, senhor de enormes e misteriosos poderes.

— Atenção, senhores, sabotadores desconhecidos penetraram em nosso sistema de computadores e lançaram esses mísseis. A equipe do General está tentando neutralizar o ataque, mas recomendo que os senhores tentem alcançar o cânion próximo, mergulhem nele, e se ponham fora do alcance visual. Repito, estamos tentando deter a sabotagem, mas todo cuidado é pouco!

Cockburn disse para Sir Reginald:

— Não acredito que sabotadores sejam capazes de penetrar em um sistema controlado por Iblis. Ele sabe que o senhor está com um canal aberto para a sede dos Observadores, que estão monitorando tudo o que está acontecendo, e quer apenas se eximir da culpa pelo ataque. Provavelmente, colocará a culpa no General, e entregará a cabeça dele aos senhores, como bode expiatório.

Sir Reginald perguntou:

— E se ele estiver dizendo a verdade?

— Se houver um segundo ataque e ele estiver dizendo a verdade, significa que perdeu o controle de sua própria instalação. Em ambos os casos, quer seja verdade ou mentira, a Convenção de Guerra das Sociedades Secretas, avalizada pelos Observadores, nos autoriza a retaliar.

Sir Reginald balançou a cabeça, concordando. Eu ia perguntar como podíamos retaliar sem ter armas pesadas, mas já estávamos quase chegando sobre o cânion, quando a segunda rajada de mísseis foi lançada. Desta vez, era pelo menos meia dúzia, que se separaram em direções radialmente divergentes. Cockburn disse:

— Os mísseis se separaram para depois convergir sobre nós. A separação deles significa que Fuk Yu Two não conseguira emitir Peidouken em quantidade suficiente para atrair e neutralizar a todos eles. E, mesmo que consigamos nos esconder dentro do cânion, eles já nos viram o suficiente para extrapolar a trajetória, e vir atrás de nós lá dentro.

Sir Reginald fez novo gesto de concordância, e Cockburn acenou para Fuk Yu-meng. Luz rapidamente distribuiu óculos de soldador para todos. O velho mestre tomou um último gole de água pesada, e veio substituir o sobrinho na porta do helicóptero, também de costas para fora. Fuk Yu Two e Luz o seguraram com firmeza. No primeiro momento, não entendi por que ela foi para lá, pois seria mais lógico que ele fosse seguro por Seth, de longe o mais forte de todos. Mas Seth apenas se colocou de pé entre os assentos.

Cockburn gritou:

— Coloquem os óculos e apertem os cintos, já!

Depois, tudo aconteceu em poucos segundos. A imensa bola de fogo surgindo atrás de Fuk Yu-meng, muito maior que a do sobrinho. Fuk Yu Two e Luz voando, carregando o velho mestre. O helicóptero sacudido por um estrondo, quando a bola quebrou a barreira do som. Seth encontrando os três em pleno vôo, como se fosse uma acrobacia de circo coreografada, agarrando o doutor Fuk, colocando-o num assento, e afivelando o cinto. Logo em seguida, Seth, Yu Two e Luz escorregando para os respectivos assentos, e também colocando os cintos. E o helicóptero entrando no cânion, Hindemburg desligando todos os seus sistemas, e o aparelho começando a cair como uma pedra.

E, de repente, o céu se incendiou. Mesmo estando nós com os óculos de soldador, a noite se transformou em um dia ofuscante.

O helicóptero descia em queda livre, fugindo da onda de choque que estava vindo. Ainda bem que fazia muitas horas que nos tinham servido algo para comer. Mas Hindemburg era um piloto de grande perícia, e, depois de alguns segundos de queda, ligou novamente os sistemas do helicóptero, endireitou-o, e pousou com impacto em uma reentrância protegida. Nesse momento, entendi por que o desligamento. Se ele não tivesse feito isso, o gigantesco pulso eletromagnético emitido pela detonação nuclear poderia ter fritado a eletrônica do aparelho, e, aí sim, estaríamos liquidados.

No instante seguinte, o helicóptero foi sacudido pela onda de choque, que arrancou muitas pedras da parede do desfiladeiro. E continuou a ser sacudido por um vendaval, que logo se transformou em tempestade de areia. Continuamos pousados por um bom tempo, até que a tempestade começasse a se dissipar.

Eu ia comentar sobre o perigo da radiação, mas imediatamente vi que era bobagem. Quando uma bomba de hidrogênio é detonada, a precipitação radioativa não é causada pelo secundário, o núcleo de deutério cuja fusão nuclear libera a maior parte da energia, e sim pelo primário, a espoleta que é necessária para detonar o secundário. O primário é uma bomba de fissão, feita de urânio enriquecido ou plutônio. No Peidouken nuclear, pelo que entendi, a fusão do deutério é disparada por compressão hipersônica. Não existe espoleta, e a única radiação emitida é radiação eletromagnética de alta energia, emitida com a velocidade da luz, apenas no instante da explosão. Dessa radiação, o cânion nos protegeu.

Durante algum tempo, todos ficaram em silêncio. O primeiro a falar foi Hindemburg, que disse:

— Para falar a verdade, essa foi por pouco.

Cockburn respondeu:

Nothing ventured, nothing gained.

Ou seja: Quem não arrisca, não petisca. Fuk Yu-meng respondeu:

— Iblis devia ter lido mais a Bíblia. Lá está escrito: Quem semeia ventos, colhe tempestades.

As risadas quebraram a tensão. Perguntei então ao velho mestre se ele tinha certeza de que o estranho fenômeno iria funcionar. Ele respondeu:

— Claro que sim. Cheguei há poucas horas da Inglaterra, convocado pelos aliados da Grande Fênix, porque sabiam que esta intervenção poderia ser necessária. Já fiz isso duas vezes antes. Foi há mais de sessenta anos, mas um Grande Mestre do Clã do Legítimo Dragão jamais esquece como se faz. A única diferença é que normalmente usa-se apenas o deutério que existe naturalmente na água do corpo. Pela idade, achei prudente reforçar com este cantil...

Perguntei:

— E quais foram as vezes anteriores?

O velho mestre respondeu, sorrindo:

— Uma contra os japoneses, e outra contra o Kuomintang. Deixei que Lin Biao levasse a fama. Era melhor para nós dois, para Mao, para o Clã e para o Exército Popular...

Finalmente, levantamos vôo. O helicóptero voltou até pairar sobre a estrada que tínhamos tomado antes. Podia-se ver que a base tinha sido praticamente vaporizada. E vimos na estrada uma moto e duas pessoas. O helicóptero pousou ao lado deles. Eram Águia Rosa e uma moça de cabelos ruivos compridos, um pouco mais jovem que as irmãs León, vestida em estilo hippie. Gloria exclamou:

— Serena!

Correu até ela e abraçaram-se. Depois, Cockburn disse:

— Agora que Connie Millet se foi, podem ir duas pessoas até a Caverna. Consultei os dirigentes leais do Conselho Norte-americano, e todos concordaram que Serena Nightingale é a pessoa indicada.

Gloria e Serena subiram na moto e partiram. O helicóptero nos levou de volta à casa de Águia Rosa.

Ao nascer do sol, o helicóptero trouxe as duas de volta. Tinham no rosto uma expressão que é muito difícil de se descrever. Talvez, uma versão mística da expressão de meu amigo Manuel Rui Pontes, quando diz: Ora, pois, pois, e não é que agora entendi tudo?

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