São Paulo, fins de março de 1985

Vinte e um anos depois, o Camarada Indigestão voltou ao casarão em que tudo começara, onde havia convocado os demais Camaradas para uma reunião. Caminhava empertigado, embora reformado há muito tempo; apesar da idade avançada, gozava de excelentes saúde e disposição. Mas não de bom humor, pois a Ditadura acabara de terminar ingloriamente. Ao ser saudado pelos Camaradas, avisou que a reunião não era com ele; também tido sido convocado para a visita de um personagem muito importante. Os Camaradas estranharam, pois, pela primeira vez na vida, o Chefe parecia ter medo.

Pouco depois, chegou o visitante esperado. Apenas o Chefe o havia encontrado, cinqüenta anos antes; apenas o Chefe sabia que ele usava o mesmo terno de linho branco, e tinha exatamente o mesmo rosto, com os mesmo cabelos e bigodes negros como os olhos.

O estranho não cumprimentou ninguém, e o sorriso zombeteiro que tinha ao entrar se transformou instantaneamente em uma expressão de reprimenda:

— Bonito, hem? Poucas vezes, em toda a história de nossa Organização, se viu tanta incompetência junta! Vocês conseguiram fazer uma das ditaduras mais ridículas de que se tem notícia: conseguiram combinar todos os inconvenientes do autoritarismo com a ineficiência, a falta de seriedade, o desperdício, a corrupção e a inépcia que sempre atribuíram às democracias!

Normalmente, tais palavras teriam provocado violenta reação dos Camaradas, mas, vendo que o Chefe apenas abaixava a cabeça, fizeram o mesmo. O visitante continuou:

— Também, quem manda?! Fomos investir num país onde contrabandistas bebem, traficantes cheiram e prostitutas gozam! Se os marginais comuns têm tal falta de profissionalismo, o que poderíamos esperar dos repressores?

Os olhos dele pareceram olhar bem dentro dos olhos de cada um, enquanto dizia com asco:

— E sabem por quê? Porque esses anos todos vocês só pensavam no Vida Longa, mesmo durante o trabalho que deveria ser sério! A obra do Mal também exige profissionalismo! Mas vocês desgovernaram pensando nele, desperdiçaram pensando nele, roubaram pensando nele, censuraram pensando nele, reprimiram pensando nele, prenderam pensando nele, torturaram pensando nele, mataram pensando nele! Vocês conseguiram imunizar um país contra a Ditadura, talvez para sempre!

Tão rapidamente quanto se fora, o sorriso zombeteiro voltou:

— Mas o que está feito, está feito. Vim dar a vocês uma missão simples, muito simples. Melhor ainda: algo de que vocês vão gostar muito. Duvido que venhamos a contar com vocês para algum de nossos futuros empreendimentos, mas talvez ainda tenhamos utilidade para o Vida Longa. Portanto, vocês vão mantê-lo bem cuidado e ocupado, pois não quero que a dinastia venha a se extinguir, nem que perca suas notáveis habilidades e características.

Dirigindo-se ao Chefe:

— Posso contar com vocês pelo menos para isso, não?

O Chefe assentiu, balançando humildemente a cabeça. O sorriso do visitante se abriu:

— Claro, tenho certeza de que seus Camaradas tudo farão para manter o Vida Longa sempre na melhor forma. Mas você, meu caro Camarada Indigestão, já deu muito de si. É hora de descansar.

Colocou a mão no ombro do Chefe, num gesto amistoso e compassivo. O Camarada Indigestão olhou para ele por um momento, com expressão de profundo terror. Depois caiu. Estava morto.

O estranho apontou para o secretário do Chefe, o mais jovem dos presentes:

— Você, meu caro Henrique, passa a ser o novo Chefe. Tenho certeza de você tem o perfil adequado. Lembra-me até meu prezado amigo Rudolf Hess... Coitado! Preciso fazer-lhe uma visitinha.

Henrique não perguntou como o visitante sabia o nome dele. Como todos os demais, ficou em silêncio, vendo o estranho deixar o casarão e se afastar pela calçada. Era um fim de tarde, e o sol baixo projetava uma grande sombra no muro do casarão. A projeção das abas do paletó de linho branco, batidas pelo vento, lembrava as asas de um Grande Dragão.

Fim da Lenda... mas o Vida continua!

     

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