Londres, 1976

Em sua elegante mansão na região de Middlesex, o já centenário Lord Joe aguardava o momento do chá das cinco. Faltavam poucos minutos para as quatro das tarde, e o lorde se entregava aos devaneios. E às lembranças do Vida Longa.

Depois de expulso da Alemanha nazista, Lord Joe tentou em vão reaver o amigo. Passou a odiar os nazistas, embora também fosse de ideologia conservadora e autoritária. Durante alguns anos, teve a esperança de que seu ídolo Mussolini pusesse ordem na Direita européia, restaurando o respeito aos valores estabelecidos. De fato, na época do seqüestro do Vida, o Duce ainda não era aliado de Hitler, e, no ano seguinte, chegou a abortar um golpe nazista na Áustria. Mas, em poucos anos, Mussolini se entregou de corpo e alma a Hitler, e não restou a Joe senão esperar que seus compatriotas, com a ajuda dos americanos e dos — argh!! — soviéticos, aniquilassem seus malévolos inimigos.

Lord Joe pensou em voltar ao Sudão para buscar substituto. Através de seus contatos nos escritórios coloniais, soube que os Vidas Longas sobreviventes tinham, misteriosamente, desaparecido em uma caçada. O medo dos agentes nazistas o impediu de voltar ao lar do Vida, até o fim da guerra; depois desta, o Sudão começou a se envolver na turbulência do fim do colonialismo, estado em que, aliás, permanece até hoje. Lorde Joe detestava esses radicais nacionalistas comunistas islâmicos, ou seja lá o que fossem, tão ingratos com a civilização européia, e principalmente a britânica, e nunca mais colocou os pés na África.

Durante os primeiros anos sem o Vida, teve um breve flerte com o jovem e brilhante matemático Alan Turing. Achou muito interessante a máquina de computação que este concebera, na qual quaisquer cálculos podiam ser feitos, colocando-se pauzinhos em uma fita. Mas Turing passou a evitá-lo, depois de perceber que Lord Joe havia entendido ao contrário a história dos pauzinhos na fita, e depois que se tinha proposto a programar a máquina para gerar figurinhas engraçadinhas. Ficou também na dúvida se Lord Joe passaria no teste que depois recebeu o nome de Teste de Turing (para quem não sabe, um teste para distinguir inteligências naturais de artificiais; nada a ver com o teste da farinha).

De qualquer maneira, prometeu a Lord Joe que ajudaria a derrotar os odiados nazistas. De fato, Turing deu uma grande contribuição para isso. Durante a guerra, tornou-se o chefe do grupo chamado de Cabana 8, encarregado de decifrar os códigos nazistas. Ali, inventou a Bombe, uma máquina capaz de decifrar os textos codificados pela famosa máquina Enigma, um dos mais importantes segredos de guerra dos alemães.

Em anos mais recentes, recebera numerosos pedidos de Leni Riefenstahl, para que a ajudasse a localizar a tribo do Vida Longa, e realizar o sonho do álbum de nus artísticos desse povo. Leni, absolvida por insuficiência de provas pelos tribunais de desnazificação, mas vista com desconfiança e boicotada pela comunidade artística em geral, não tinha coragem de entrar em contato com os nazistas sobreviventes, e nem estes confiariam nela o suficiente para passar-lhe tão preciosa informação. A princípio, Lord Joe se recusara. Mas Leni, de qualquer maneira, publicou um livro de fotos dos Nubas Masakin, uma tribo sudanesa relacionada com a do Vida, e a curiosidade e a saudade de Lord Joe venceram-lhe o ódio aos nazistas. Assim, Leni pôde publicar o segundo livro, que agora Lord Joe esperava.

O devaneio de Lord Joe foi interrompido pelo relógio, que batia as quatro da tarde. No exato momento, James, o majestoso mordomo sudanês, entrou com uma salva de prata, onde estavam uma chaleira com o melhor Darjeeling, uma pequena leiteira, guloseimas diversas, e o livro que o patrão esperava. O patrão agradeceu ao mordomo, pensando: That’s a jolly good fellow, mas não é a mesma coisa que o Vida.

Lord Joe bebericou um pouco de chá, mordiscou um scone, e abriu o pacote. Lá estava o livro, cheio de fotografias magníficas de homens e mulheres da tribo. Dentro, havia uma carta de Leni Riefenstahl. Agradecia a ajuda de Lord Joe, indispensável para localizar a tribo correta. Segundo Leni a tribo, que ela chamou de Nubas de Kau, não conhece os outros Nubas, não fala o idioma deles, e têm personalidade oposta à dos Masakin: são selvagens e apaixonados. Suas máscaras, lutas de faca e danças de amor seriam como “pinturas vivas de Picasso”, não existindo em qualquer outro povo primitivo com tal forma e diversidade.

Contou Leni também que, após o misterioso desaparecimento dos Vidas Longas aposentados, os anciães da tribo tentavam manter a tradição, treinando os jovens em algumas das artes dos grandes líderes. Mas jamais tinham voltado a entronizar um Vida Longa, pois acreditavam que só o chefe desaparecido poderia ungir um sucessor da forma correta, mantendo a legitimidade da linha.

Depois que Leni ganhou mais confiança dos anciães, um dos mais velhos lhe contou que, anos atrás, outro estrangeiro estivera por ali. Foi numa das épocas em que a guerra civil chegara mais perto da aldeia. Inicialmente, julgaram que fosse um traficante árabe de armas, pela aparência e porque falava árabe como os árabes. Mas também falava inglês como um inglês, e dominava com perfeição o próprio dialeto daquela tribo. O estrangeiro lhes disse que a linhagem dos Vidas Longas continuava sendo mantida, no distante Brasil. A partir daí, como em lugares remotos do globo a única coisa que se sabe sobre o Brasil é que é o país do futebol, criou-se o mito de que Vida Longa joga na seleção brasileira. E que ele voltará, no dia em que a tribo construir um estádio, que será inaugurado com um jogo do time brasileiro.

Lord Joe pensou: Iblis, mais uma vez. Aposto que usava um terno de linho branco, e que tinha os olhos, os cabelos e o bigode negros como sempre. Quem será ele? Alguém que encontrou a verdadeira fonte da Eterna Juventude, não uma alegoria como o Vida Longa? Talvez um daqueles a quem as crenças esotéricas atribuem a conquista da Imortalidade. O patriarca Enoque? O profeta Elias? O faraó Ramsés II? O Judeu Errante? O alquimista Nicolas Flamel? O Holandês Voador? Connor MacLeod, o Highlander? Jack Sparrow, o Pirata do Caribe? O Conde de Saint-Germain?

Foi até a escrivaninha, e fez uma emenda de última hora ao testamento. Lord Joe não deixara descendentes diretos, mas estipulara que seu vultoso quinhão na fortuna dos Josephson passaria ao sobrinho-neto, bisneto ou trineto que satisfizesse as seguintes condições: cultivasse a imagem dele, Lord Joe; dominasse a técnica de gerar figurinhas engraçadinhas nos computadores, que só agora, nos últimos anos de Lord Joe, começavam a se prestar para isso; e encontrasse o Vida Longa e o arrebatasse dos braços dos nazistas, se é que ainda estava com eles. Agora, o lorde acrescentou a anotação de que o Vida estava no Brasil, devendo aí ser procurado.

Lord Joe então se deitou num divã e começou a sonhar com o jogo de futebol que inauguraria o estádio construído pela tribo do Vida Longa. De um lado, a seleção brasileira, tendo o Vida de center forward. Do outro, o English Team, tendo como goalkeeper um Lord Joe rejuvenescido e belo, com um elegante uniforme desenhado por Mary Quant; debaixo do calção hot pant a calcinha da mesma griffe. Vida Longa penetra impetuosamente na grande área, depois na pequena, passa por um, passa por outro, todos o agarram mas ele passa sempre, até ficar cara a cara com o goleiro. Lord Joe está muito atento, vigia a direita, vigia a esquerda, mas Vida Longa passa para a outra perna, e entra com bola e tudo. Vencedor e vencido comemoram juntos.

E foi assim que Lord Joe alçou vôo rumo a Urano, para se encontrar com todos os Vidas Longas do passado[1]. Pelo menos, foi o que James pensou, enxugando uma lágrima de remorso pelo chá que preparara, conforme as ordens do Estranho. Mas essa era a secular missão dos mordomos.

[1] Não se sabe se Leni Riefenstahl provou do famoso leite, mas ela só veio a morrer em 2003, aos 101 anos. A polêmica sobre o valor artístico de suas obras continua. Ela deixou uma fundação, que mantém um sítio memorial. Algumas palavras da carta a Lord Joe são ali reproduzidas. A foto de que Lord Joe mais gostou foi uma que, aparentemente, mostra um candidato a Vida Longa durante um treinamento.

 

     

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