Baviera, 1934

Em meados de 1934, Hitler se aproximava rapidamente do poder total. O presidente von Hindemburg parecia ter poucos meses de vida, talvez semanas. Para evitar qualquer tentativa de golpe conservador, e conseguir o apoio militar e econômico de que precisava para levar seus planos adiante, ele tinha agora como obstáculo aquele que fora um dos maiores suportes de sua ascensão: Ernst Röhm.

O próprio Hitler desconfiava da ambição de Röhm, e temia cada vez mais que o antigo amigo resolvesse ganhar vida própria. A elite militar, em boa parte proveniente da aristocracia prussiana, temia a proposta de Röhm de fundir SA e forças armadas regulares: o Exército era limitado a cem mil homens, pelo Tratado de Versalhes; a SA tinha dois milhões e meio! Os capitalistas odiavam o discurso socialista de Röhm, que pregava a “segunda revolução”, desta vez contra os reacionários. E havia os que condenavam a homossexualidade de Röhm e outros líderes da SA, por moralismo ou por hipocrisia.

Os outros líderes nazistas, como Himmler, Göring e Goebbels, desejavam livrar-se do perigosíssimo rival, contra quem forjaram provas de um suposto suborno francês para que Röhm derrubasse Hitler. Mas a decisão do Führer foi finalmente tomada nos últimos dias de junho, quando Himmler lhe levou o dossiê que continha todo o material sobre o Vida Longa, tanto o cedido por Lord Joe, quanto o material mais recente, conseguido pela espionagem da SS dentro da SA.

Himmler tocou num ponto nevrálgico. Durante toda a carreira de Hitler, correram os mais variados boatos sobre vida sexual do Führer, variando do total desinteresse pelo sexo ao complexo por ser roncolho, do sadomasoquismo à coprofagia. Mas os mais insistentes sempre versaram sobre uma possível homossexualidade, enrustida ou não; desde supostas atividades como garoto de programa, antes da Primeira Guerra, até o que teria realmente acontecido entre ele e Röhm, na época da prisão.  Himmler espicaçou cuidadosamente a irritação de Hitler com o assunto, ponderando que parte daquele material vinha do antigo companheiro de Vida Longa, um lorde inglês, e, portanto, podia-se dar por certo que o Serviço Secreto britânico estava muito bem informado sobre o assunto, e não deixaria de divulgá-lo quando lhe fosse conveniente, com inevitáveis respingos para o Reich e o Führer.

Hitler então ordenou que Röhm convocasse uma reunião da liderança da SA em um hotel na estância de Bad Wiessee, próxima a Munique. Na noite de 30 de junho, assumiu o comando pessoal do destacamento da SS que formava sua guarda pessoal, e dirigiu-se ao hotel. O que se segue não é nenhum ficção cômica, mas o depoimento de Alfred Rosenberg, principal ideólogo do partido e um dos enforcados de Nurembergue:

Escoltado por um destacamento da SS, o Führer se dirigiu a Bad Wiessee e bateu suavemente à porta de Röhm. “Mensagem de Munique”, disse, disfarçando a voz. “Entre”, disse Röhm ao suposto mensageiro, “a porta está aberta”. Hitler escancarou a porta, caiu sobre Röhm, que estava na cama, agarrou-o pela garganta e gritou: “Você está preso, seu porco!” Então ele entregou o traidor à SS. Primeiro, Röhm se recusou a vestir-se. A SS jogou então as roupas no rosto do Chefe do Estado-maior, até que ele resolvesse vesti-las. No quarto ao lado, acharam jovens em atividade homossexual. “E esses são os tipos que queriam ser líderes da Alemanha”, disse o Führer, tremendo.

O que o relato oficial nazista não conta é que um dos tais jovens era o Vida Longa. Era preciso denegrir a imagem de Röhm, mas não exagerar na dose.

Nas horas seguintes, no que a ficou conhecido como a Noite das Longas Facas, a SS liquidou dezenas, talvez centenas de líderes da SA, juntamente com vários rivais conservadores de Hitler, que nada tinham com a história, mas a chance era muito boa para ser desperdiçada. Röhm foi executado na prisão, em Munique, depois de recusar a possibilidade de suicídio. Mas Vida Longa, por terminantes e expressas ordens de Himmler, foi poupado e levado preso, para o Castelo de Wolfenstein.

Poucas semanas depois, Hitler recebeu a cúpula nazista para um jantar, em sua suntuosa residência de Berghof, no deslumbrante cenário dos Alpes bávaros. A convidada de honra era a atriz e diretora de cinema Leni Riefenstahl, que, depois muito doce, concordara em dar seqüência a seus documentários sobre a magnificência nazista. Ela deveria filmar o congresso do Partido em Nurembergue, a ser realizado em setembro. Esse documentário, como se sabe, entrou para a história do cinema com o título de O Triunfo da Vontade, e é de onde geralmente são tiradas aquelas multidões de nazistas em formação, que aparecem volta e meia nos canais de TV por assinatura.

Os garçons estavam atarefados, preocupados em servir as bebidas corretas para cada um: Borgonha para Goebbels, Bordeaux para Göring, e cerveja para Hitler. O que nos leva a uma pequena, mas pertinente digressão. Muito se tem especulado sobre os hábitos pessoais de Hitler, com ênfase, como dissemos acima, nos aspectos sexuais. A propaganda nazista preferia divulgar a imagem de um Hitler ascético, abstêmio, não-fumante, vegetariano, e quase assexuado, pela dedicação integral à grandeza do Reich. Os adversários, por outro lado, têm-lhe atribuído todos os tipos de taras possíveis e imagináveis.

Parece haver uma natural expectativa de que os hábitos pessoais de um governante tenham correlação com suas atitudes políticas. Assim, ninguém se surpreende com as taras e monstruosidades de Nero ou Calígula, e as pessoas se escandalizam com detalhes da conduta pessoal dos que são tidos como heróis políticos, como Gandhi, Churchill ou Roosevelt. Quanto a Hitler, há muita especulação e poucos fatos documentados, mas o retrato que tem emergido do trabalho dos historiadores mais recentes é inesperado e, creio eu, muito mais assustador. Ou seja: as indicações mais fortes são de que o maior criminoso da História era um homem de hábitos pessoais moderados e medianos, típicos da época, sem nada de notável em qualquer sentido.

Assim, ao que parece, ele bebia cerveja em quantidades moderadas; fumava cigarros, mas menos que a maioria dos contemporâneos; tratava razoavelmente bem os empregados domésticos, gostava de animais e beijava a quota de criancinhas de qualquer político; e tinha uma vidinha sexual mais para medíocre, nada muito fora do comum. Nesse setor, o máximo de escândalo razoavelmente comprovado foi o caso que manteve com a própria sobrinha, Geli Raubal, quando já namorava Eva Braun; a oposição da mãe de Geli acabou levando a moça ao suicídio, e Hitler ao rompimento temporário com a irmã. Quanto a Eva Braun, procurava comportar-se da maneira bem discreta que Hitler exigia, evitando aparecer em ocasiões oficiais; era dada a hábitos naturistas que, segundo alguns, enfureciam Hitler, mas, segundo outros, este pouco se importava, como é comum entre alemães.

No jantar em Berghof, Hitler, como os demais chefões nazistas, proferia discretos galanteios à bela Leni. Não que estivesse muito interessado, pois preferia mulheres como Eva Braun, tipo loura de anedota, do que uma mulher inteligente como Leni (até onde uma simpatizante nazista poderia ser considerada inteligente). Mas não deixava de comparecer com pequenas cantadas, no estilo daqueles chefes que se sentem na obrigação de estar sempre dirigindo indiretas às mulheres de seu ambiente. A certa altura, para tornar a conversa mais picante, distribuiu algumas fotos de Vida Longa, perguntado aos presentes o que deveria ser feito com o prisioneiro africano.

Leni arregalou os olhos e exclamou:

— Mas que maravilha, este colosso núbio! Adolf, realmente precisamos reconquistar nossas colônias na África! Ah, você vai me deixar fazer um ensaio fotográfico com este deus de ébano. Você sabe como minha estética valoriza o nu artístico! Prometo que será uma edição bem exclusiva, que só circulará entre a cúpula do Partido!

Hitler respondeu com raiva meio verdadeira, meio fingida:

— Minha charmosa cineasta, era só o que me faltava! Fazem-me uma bela dupla, você e Eva: uma gosta de fotografar nus, a outra gosta de ser fotografada nua! Esqueceu-se de que aqui somos racistas? Já que faz tanta questão de fotografar homens nus, por que não uns rapazes da Juventude Hitlerista, gloriosamente arianos?

Leni sentiu a resposta chegar-lhe à ponta da língua, mas achou melhor guardá-la para si. Hermann Göring, por outro lado, ficou irritado com a menção a Vida Longa; passara a detestar o prisioneiro, depois de ouvir de alguém a piadinha de que o Vida possuía um bastão maior do que o de um Marechal de Campo, justamente a honraria que Göring esperava receber no futuro próximo. Propôs, portanto, que Vida Longa fosse sumariamente executado, para encerrar, segundo ele, essa vergonhosa história.

Ribbentrop, o assessor de política externa e futuro Ministro do Exterior, procurou acalmar Göring, argumentando que, no devido tempo, o Führer poderia criar um novo nível de Marechal, com um bastão ainda maior (e, de fato, Hitler veio a criar o posto do Marechal do Reich, com bastão tamanho família, exclusivamente para Göring). Argumentou também que estava envolvido em delicadas negociações com os ingleses, com os quais a Alemanha ainda não estava em condições de bater de frente; que Vida Longa era um súdito britânico, e que, se era para livrar-se dele, melhor aproveitar para devolvê-lo à Coroa Britânica e fazer um gesto de boa vontade.

Goebbels tomou então a palavra, para retrucar:

— Penso que está fora de cogitações a hipótese de devolver o africano aos britânicos. Nesse mais de um ano de convivência com os camisas pardas, ele ficou sabendo de segredos demais, que, podemos ter certeza, muito agradariam ao MI6. Esse indivíduo, além de schwarz e schwul, é um remanescente da era Röhm, cujas idéias perigosamente semelhantes às dos comunistas precisamos erradicar. Como dizem nossos doutrinadores, todo comunista é homossexual; segue-se, pela lógica, que cultivo na qualidade de Doutor em Filosofia e Literatura por Heidelberg, que eliminando os homossexuais, automaticamente estaremos eliminando os comunistas. Além disso, estaremos avançando na purificação moral do Partido e do Reich, e consolidando nossa reputação como defensores da tradição, da família e da propriedade. Estaríamos assim mostrando que não contemporizamos com tais perversões, desmentindo certos boatos insidiosos fabricados por nossos inimigos.

Hitler, que, como vimos, era particularmente sensível a esse tipo de insinuações, balançou a cabeça, parecendo concordar. Mas foi justamente Himmler, que semanas antes tinha usado precisamente essa linha de raciocínio, quem contra-argumentou:

— Com todo o respeito pelos honrados camaradas, mas aqui o especialista em planos de extermínio sou eu, e neles incluirei os Schwule, no seu devido tempo. Mas temos que reconhecer que, durante um bom tempo, Röhm e seus semelhantes nos foram muito úteis, até que pudéssemos dispensar os préstimos deles. Pois bem. Tenho um plano que afastará daqui este africano, e ao mesmo tempo o fará prestar serviços úteis.

Fez uma pausa, para saborear a expectativa causada, e então continuou:

— Como todos sabemos, existem numerosas colônias de origem alemã na América do Sul, onde muitos jovens estão dispostos a ouvir o chamado da Vaterland, especialmente se receberem um incentivo adequado a suas aspirações. Geralmente têm hábitos violentos e professam odiar os Schwule, mas, ao mesmo tempo, têm irresistível atração pela companhia masculina. Impossibilitados de canalizar suas energias em um empreendimento nobre como nossa Juventude Hitlerista, são fácil presa de costumes degenerados, habituais naquelas latitudes tropicais. Pelo que soube, esse Vida Longa tinha o estranho poder de tranqüilizar os camisas pardas, tornando-os mais receptivos. Assim sendo, estudei a viabilidade de enviá-lo secretamente à América do Sul, e utilizá-lo para que nos ajude a domar essa juventude indócil, mas de grande potencial de serviço a nossa Causa.

Hitler perguntou, não muito convencido:

— E para onde, precisamente, o enviaríamos?

— Há colônias germânicas significativas em vários países, como o Chile, a Argentina, o Paraguai e a Bolívia, mas o lugar mais conveniente seria o Brasil; não só pelo tamanho, mas pela maior quantidade de descendentes de africanos, o que permitiria que o tal Vida Longa chamasse menos a atenção de quem não interessa. Em particular, localizei certa região no Sul do Brasil, onde vivem descendentes de tribos similares à desse indivíduo, e onde poderemos recrutar sucessores, quando se fizerem necessário. Quanto a esse detalhe, nossos espiões já fizeram o devido trabalho de campo.

E completou, olhando para Hitler:

— Além de tudo, este plano me foi pessoalmente recomendado por ele.

Hitler claramente entendeu a quem Himmler se referia, e os demais, se não entenderam, não ousaram perguntar. O Führer suspirou e disse, resignado:

— Ahh... então é um plano dele. Pois muito bem. Que assim seja feito.

     

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