As Guerras das Estrelas

A narrativa da história da Falange Felina chegava ao final juntamente com a tarde de nosso segundo dia de viagem, e a própria viagem. Chegamos a Playa del Carmen, onde Teodora León agora vivia como pacata dona de uma bela pousada de praia, na companhia do Prof. Cockburn, já aposentado de Oxford. Gloria já tinha dito que, como a história da Encarnação Centro-americana envolvia muitos aspectos da arqueologia maia, deixaria a narrativa para o pai, que era o especialista no assunto.

Teodora nos recebeu já pronta para cuidar de suas obrigações junto aos hóspedes, usando um vestido mexicano tradicional, com saia comprida rodada, flor no cabelo e tudo a que se tem direito. Parecia uma versão mais madura de Luz. Já Gloria herdara a maioria dos traços do pai, por sua vez também uma versão mais madura do Donald Cockburn que eu tinha conhecido, a quem a família se referia como Don. Poucas vezes, aliás, foi mencionado, e nunca se tratou da questão do desaparecimento dele, de maneira que também evitei tocar no assunto.

A conversa com o Prof. Cockburn foi longa, e não se resumiu a essa noite. Na maior parte do tempo, acompanhada dos petiscos mexicanos da cozinha de Teodora; quanto às bebidas, preferi os excelentes mojitos que a família sabia fazer, pois considerei que margaritas não só seriam muito fortes, como também não gosto do sal nas bordas das taças. Para simplificar, resumo a conversa a seguir, na forma de uma narrativa de Cockburn Senior.

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Como já lhe foi contado, professor Basileu, o Século XVI foi um século de grande poder dos Inimigos, que, infiltrando-se nas estruturas das igrejas cristãs, lançaram ataques ferozes contra nossa Ordem e nossos aliados, em nome da Santa Inquisição. Tal como as feiticeiras da Falange, muitos de nós fugiram para as Américas, onde entramos em contato com outros grupos de perseguidos pelos Inquisidores. Entre eles, as diversas nações indígenas, cujas religiões eram vistas como obras do Diabo. Tendo em vista as muitas práticas cruéis dessas religiões, os Inquisidores não tinham tanto trabalho para convencer disso a maioria dos colonizadores, ou mesmo muitos dos nativos.

Os sistemas de escrita meso-americanos, com seus hieróglifos cheios de figuras monstruosas, eram alvos fáceis de quem neles queria enxergar feitiçaria e satanismo. Uma parte considerável da cultura maia se perdeu quando a maioria dos códices, nos quais os maias registravam em couro ou tecidos os seus mitos e acontecimentos históricos, foi consumida nas fogueiras da Inquisição. Sobreviveram apenas os registros gravados em pedras ou cerâmica, em monumentos que a floresta tropical já engolira séculos antes da chegada dos espanhóis. Esses teriam, na maior parte, que esperar a arqueologia do Século XX para serem redescobertos.

O mais famoso desses Inquisidores foi o Bispo Diego de Landa, que admitiu ter queimado vinte e sete códices, número que, segundo outras fontes, foi cem vezes maior. Ele próprio escreveu: Achamos grande número de livros, e como só continham superstições e falsidades do Demônio, queimamo-los todos, coisa que (os maias) sentiram extraordinariamente, e que lhes causou muita aflição.

Muitos e muitos maias, tanto nobres quanto plebeus, foram torturados e executados por ordem do Bispo. Como a Inquisição era proibida pela Coroa espanhola de agir contra os índios, considerados infantis demais para serem culpados de heresia, Landa foi chamado à Espanha e julgado por Inquisição ilegal. Mas os Inimigos protegiam os seus, e Landa conseguiu convencer seus juízes de que estava combatendo sacrifícios humanos, e acabou por ser absolvido e promovido.

Longe de ser um ignorante, Landa escreveu sobre os aspectos que achou relevantes da cultura maia, e muito do que se sabia até o Século XX vinha desses escritos. Criou um sistema de transcrição do maia em alfabeto latino, com o objetivo de evangelizar os maias no próprio idioma deles, mas, nesse processo, acabou por difundir a teoria de que os maias tinham uma escrita alfabética. Graças a isso, a maior parte das inscrições maias permaneceu sem ser decifrada, até meados do Século XX.

Entretanto, como lhe foi narrado por Don, os agentes de nossa Ordem descobriram que uma Encarnação acontecera no auge do Império Maia. Isso tinha relação com os esforços dos Inimigos para destruir a memória da civilização maia, e tratamos de agir na direção oposta. Graças aos esforços de nossos agentes, alguns dos códices mais importantes chegaram a Madri, e foram colocados sob a proteção de Carlos V. Quando o Império dos Habsburgos se dividiu em uma parte espanhola e uma alemã, os códices ficaram nesta última, e o Século XX foi encontrá-los em um museu de Berlim.

Em 1945, quando as tropas soviéticas entravam em Berlim, os códices foram achados por Yuri Knorozov, um soldado do Exército Vermelho que era estudante de Egiptologia na Universidade de Moscou. Criou-se depois a lenda de que Knorozov os salvou das chamas que devoravam a Biblioteca Nacional alemã, mas o próprio Knorozov relata que achou os livros devidamente guardados e empacotados pelos cientistas alemães. Com esses cuidados de preservação, estudiosos de ambos os lados conseguiram salvar muitas preciosidades culturais da destruição da guerra.

De volta à Universidade de Moscou, Knorozov usou o conhecimento que tinha dos hieróglifos egípcios para escrever uma tese de doutorado em que refutava Diego de Landa, mostrando que a escrita maia era silábica e não alfabética. Uma vez constatado isso, a transcrição feita pelo bispo até se revelou útil para a decifração.

Inicialmente, o trabalho de Knorozov foi recebido com incredulidade no Ocidente, onde muitos estudiosos julgavam que a escrita maia usava um sistema ideográfico puro, em que os glifos representavam conceitos e não unidades fonéticas. A Guerra Fria não ajudava: muitos desacreditavam Knorozov pelo fato de que a propaganda soviética apresentava os trabalhos dele como resultantes da aplicação dos princípios do Marxismo-Leninismo. Mas o trabalho de Knorozov foi sendo aceito, na medida em que os princípios por ele formulados permitiam a decifração da maioria das inscrições, e começaram a aparecer referências consistentes a fatos históricos, em monumentos situados em locais distantes entre si. O próprio Knorozov só veio a visitar pessoalmente os sítios arqueológicos mais no final da vida, quando a Guerra Fria já tinha terminado.

Eu mesmo cheguei à região dos maias no início dos anos setenta, movido por dupla motivação: como arqueólogo, eu também estava interessado no levantamento da história dos maias; como membro da Grande Fênix, esperava descobrir mais sobre a Encarnação Maia. Julgávamos que a combinação desse conhecimento com os dados que tínhamos da Encarnação Norte-americana nos ajudariam a nos preparar para a futura Encarnação Sul-americana, que sabíamos próxima. Como também Don lhe contou, os vestígios da Encarnação Norte-americana tinham sido descobertos no deserto americano, na época dos testes das primeiras bombas atômicas. Eu estava em contato com minha colega Janet Nightingale; ao fazer um levantamento de sítios arqueológicos do deserto americano, que poderiam vir a ser prejudicados pelos testes nucleares, ela tinha sido a pessoa que descobriu esses vestígios.

O método com que eu pretendia trabalhar usava todas as técnicas normais da arqueologia, com um ingrediente adicional. Eu pretendia combinar a decifração das inscrições maias com o conhecimento transmitido de boca em boca, pela longa tradição dos feiticeiros maias. Através dos contatos da Ordem, sabíamos que Juan Balam era um dos feiticeiros mais reputados e que, além disso, tinha profundo conhecimento de muitos dos mais relevantes dialetos maias. De fato, na primeira parte de meu trabalho, ele foi meu guia e intérprete, enquanto eu pesquisava os sítios maias do México.

Mas muitos dos sítios mais importantes estavam na Guatemala, e isso era um problema. A partir de 1960, esse país viveu trinta e seis anos de uma das guerras civis mais ferozes do Século XX. Os Estados Unidos, dispostos a tudo para evitar uma nova Cuba no continente, armavam ditadores e grupos para-militares, principalmente na Guatemala, El Salvador e Nicarágua; do outro lado, guerrilheiros resistiam tenazmente. Quando, no caso da Nicarágua, os guerrilheiros sandinistas chegaram ao poder, passaram a enfrentar os contras e os dissidentes da guerrilha. As populações indígenas eram quem mais sofria; os maias da Guatemala, suspeitos de abrigarem guerrilheiros, eram freqüentemente chacinados.

Juan e Dolores não podiam entrar comigo na Guatemala, onde eram bem conhecidos dos para-militares e da repressão, e tinham a cabeça a prêmio. O fato de que sou cidadão britânico não me dava maior segurança; pelo contrário, a Guatemala odiava os britânicos por causa da ocupação de Belize. Quando este país se tornou independente, apenas o receio da represália britânica impediu a anexação de Belize pelos gualtematecos, mas não foram poucas as vezes em que o ditador de plantão ameaçou uma invasão semelhante à dos argentinos nas Falklands. O pior desses ditadores, o general Ríos Montt, chegou a superar Pinochet e Videla em número de mortes, proporcionalmente à população do país. Convertido a uma seita evangélica fundamentalista, dizia que o cristão tinha que ter a Bíblia em uma das mãos e uma metralhadora na outra, e chegou a executar alguns prisioneiros durante uma visita de João Paulo II, só para fazer uma desfeita ao Papa.

Teodora propôs aos pais me acompanhar nas viagens à Guatemala. Embora relutantes, concordaram que era uma oportunidade para que ela exercitasse o treinamento nas táticas da Falange, que tinha recebido de Dolores. Assim, durante esse tempo, ela não só foi minha intérprete e guia, com o conhecimento dos dialetos e das tradições maias, que aprendera com o pai, como também minha guarda-costas, com o treinamento recebido da mãe.

Na época, eu e a mãe de Don já tínhamos tomados rumos diferentes, uma vez que os interesses dela estavam todos na Europa, e eu estava cada vez mais empolgado com o trabalho na América. E Teodora e eu acabamos tendo as gêmeas. Quando cresceram, elas resolveram que Gloria me seguiria na Ordem da Grande Fênix, e Luz seguiria os passos da mãe, avó e bisavó, na Falange Felina. O medalhão com o grifo, que ambas usam, representa essa união: metade águia, metade leão, o grifo simboliza essa linhagem híbrida.

Depois de alguns anos de trabalho, consegui levantar o quadro que descreverei a seguir. Tirando os detalhes específicos da Encarnação, quase tudo o que vou lhe contar é corroborado por outras fontes da arqueologia conhecida. Infelizmente, não pude assumir a prioridade científica de várias de minhas descobertas, para evitar a divulgação de fatos que não interessava à Ordem que fossem de conhecimento público. Foi uma decisão difícil, mas necessária, principalmente porque esse trabalho acabou por me levar à posição de Arquigalo. Mais tarde, quando Don me sucedeu nesse posto, aconselhei-o a abandonar a carreira acadêmica antes que nela tivesse investido muito.

A combinação de minha pesquisa com a de Janet Nightingale, que estudou profundamente os olmecas, permitiu corroborar os principais aspectos da narrativa da expedição do faraó Necao, e deduzir o que aconteceu a partir dali. Durante alguns séculos após a Encarnação do Deserto, o Clã da Águia dirigiu um próspero reino olmeca. Como conta aquela narrativa, parte do Clã da Serpente se submeteu, e a Serpente Emplumada, símbolo da união dos clãs, se tornou a máxima divindade daquele povo.

Mas todo Império tem apogeu e decadência. O mundo olmeca dependia muito do extenso sistema de canais de irrigação. Ao longo dos séculos, o sistema foi sendo comprometido por depósitos de aluvião, ao mesmo tempo em que mudanças climáticas trouxeram secas cada vez maiores. Trezentos anos depois daquela Encarnação, a população da região caiu drasticamente; muitos dos sobreviventes emigraram para o Norte, e terminaram por construir uma grande civilização em Teotihuacán, onde edificaram todo aquele conjunto monumental em que se destaca a grande Pirâmide do Sol.

As mesmas mudanças climáticas, por outro lado, trouxeram nova prosperidade ao Sul, onde os Maias, tendo absorvido muito da cultura olmeca, construíam suas cidades-estados. Mas ali o Clã da Serpente ressurgia, disposto a não se deixar vencer novamente. Junto com eles, os sacrifícios humanos; é possível que alguns dos fenícios da Expedição fossem ocultamente Servos da Serpente, que não tenham retornado à pátria, e sim permanecido naquele mundo, para contaminá-lo pelo gosto do sangue humano.

É possível reconhecer na Civilização Maia alguns traços característicos dos Inimigos. Longe de serem bárbaros ignorantes, os Inimigos sempre foram detentores de notáveis conhecimentos técnicos e científicos. Do mesmo modo, algumas das ciências maias, principalmente a Astronomia e a Matemática, superavam o conhecimento contemporâneo da Europa, e a organização política e social era comparável à do mundo greco-romano. Mas tudo isso estava a serviço de uma ideologia que tinha na Guerra e no Poder os valores máximos.

A destruição da maior parte dos códices maias pelos Inquisidores ajudou a criar uma imagem dos antigos maias como um povo sábio e pacífico, em contraste com as práticas sanguinárias dos astecas, bem conhecidas de todos. Essa imagem perdurou até meados do Século XX, quando a decifração da escrita maia permitiu traçar um quadro bem diferente.

No mundo maia, as guerras eram intensas, crônicas e sem fim. Nunca se criou um Império Maia unificado, uma Pax Maya, porque a floresta tropical limitava drasticamente as possibilidades de transporte e agricultura. Dentro de uma área geográfica não muito grande, a densidade populacional chegava a ser comparável, em certos lugares, à das metrópoles atuais. Durante mais de um milênio, as cidades-estados lutavam entre si, cidades subordinadas se revoltavam contra as capitais, plebeus se revoltavam contra nobres ou estes lutavam entre si.

No início do Período Clássico, nos primeiros séculos da Era Cristã, as guerras maias seguiam um padrão peculiar. De maneira geral, o objetivo das guerras não era o de arrasar cidades ou massacrar populações inteiras, e sim incorporar os recursos dos vencidos ao acervo dos vencedores. O objetivo de cada rei era capturar e torturar os reis adversários, muitas vezes com aprovação dos súditos desses, sempre oprimidos pela voracidade dos nobres. Alguns reis capturados eram mantidos vivos por muitos anos, cortando-se um pedaço deles em cada cerimônia importante.

Quando não tinham um rei inimigo cativo para torturarem, os reis impressionavam o povo torturando-se a si mesmos. Um sacrifício habitual, ilustrado em muitos monumentos e praticado até por algumas rainhas, era passar por um buraco na língua uma corda com espinhos. Outro sacrifício dos reis, muito popular entre os súditos, consistia em perfurar o próprio pênis com um ferrão de arraia; cerimônia que, combinada com o consumo de certas drogas, costumava colocar os reis em transe, conferindo-lhes o dom de visões e profecias. Isso também algumas rainhas faziam com a própria vulva.

Os escritos eram instrumentos da propaganda dos reis, e era comum que os reis vencedores mandassem quebrar os dedos dos escribas vencidos, em lugar de matá-los. Incapacitá-los para o exercício da profissão era algo considerado como uma demonstração adequada do poder dos vencedores, além do que servia de castigo adicional à nobreza vencida, pois os escribas eram geralmente recrutados entre os parentes dos reis.

O conceito de Guerras das Estrelas[1] ilustrava como os maias casavam os conhecimentos científicos com a superstição e a guerra. Grandes confrontos militares eram sempre programados para ocasiões consideradas astrologicamente propícias. As mais importantes aconteciam quando o planeta Vênus estava mais brilhante no céu matutino, e os maias sabiam prever essas datas com grande acurácia.

A reputação guerreira do Clã do Jaguar levava a que a maioria dos reis procurasse se identificar com esse clã. Pata de Jaguar foi um nome usado por muitos dos reis maias mais importantes, o que inspirou o nome do personagem principal do Apocalypto de Mel Gibson. Por sinal, uma das liberdades artísticas tomadas por esse filme é a de apresentar sacrifícios humanos em massa de vítimas plebéias, coisa que só viria a acontecer na época dos astecas; entre os maias, essa honra era reservada à realeza. Além do óbvio erro astronômico de colocar um eclipse solar em plena lua cheia; erro elementar que maias jamais cometeriam, eles que sabiam muito bem calcular eclipses. De fato, um dos principais códices maias, o Códice de Dresden, contém um tabela de eclipses, além das efemérides de Vênus e Marte.

Toda essa combinação de conhecimento com sede de sangue e poder nos lembra os Inimigos. De fato, com todo o alarde que faziam de devoção ao Clã do Jaguar, os reis maias eram primariamente fiéis ao Clã da Serpente. No início do Século VI, quando se aproximava a época da Encarnação, surgiu uma superpotência do mundo maia: Calakmul, o Reino da Serpente. Durante mais de um século, Calakmul guerreou contra a outra superpotência, a ainda mais famosa Tikal. Foi no cenário da guerra entre essas potências, as maiores cidades da América da época, que a Encarnação aconteceu.

[1] O termo inglês é Star Wars. Pela explicação, vê-se que a tradução em português, nesse caso, deve ser Guerras das Estrelas e não Guerras nas Estrelas.

     

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