A Falange Felina

Apesar dos pesadelos, no dia seguinte acordei com apetite suficiente para enfrentar um bom café da manhã mexicano, com direito a huevos rancheros, ou seja, ovos fritos com molho de pimenta, acompanhados de tortillas, guacamole (pasta de abacate) e frijoles refritos, isto é, tutu de feijão. Enquanto tomava o café, repassei as manchetes dos jornais: todas noticiavam a violenta morte do famoso traficante Cornelio Escobar. Polícia e jornalistas eram quase unânimes em atribuí-la a traficantes rivais, com exceção de um ou outro que via ali o dedo da Drug Enforcement Administration.

As gêmeas chegaram logo depois, e, surpreendentemente, o carro vermelho já tinha sido consertado: não havia mais marcas de balas. Começamos a longa viagem de quase dois mil quilômetros até a Riviera Maia, no extremo sul do México. As moças se revezavam no volante, nem sempre respeitando os limites de velocidade, mas pareciam bastante seguras no que faziam. Mais ou menos no meio da viagem, fizemos uma interrupção para que eu visitasse os sítios arqueológicos olmecas, onde a informação delas me ajudou a visualizar ainda melhor os quadros traçados na narrativa de Ibrahim al-Dajaj.

Durante as longas horas de estrada, Luz foi contando alguns dos aspectos mais interessantes da história da corporação dela. Começando pelo Egito, onde, conforme narrara Ibrahim, as sacerdotisas de Bast tinham sido reorganizadas por Ramsés, na forma de uma corporação especializada em espionagem, infiltração, sabotagem e similares. Na qual as operações de campo, desde aquela época remota, eram desempenhadas por mulheres, cabendo aos homens da corporação apenas atividades de análise, planejamento, apoio e logística. No jargão adotado hoje pelo grupo, elas são as operadoras e eles os auxiliares, mesmo sendo eles, em certos casos, figuras de grande importância dentro da corporação.

Durante a era de ouro da corporação de Bast, os gatos eram tratados com imenso respeito. Em caso de incêndio, uma das obrigações dos bombeiros era vigiar para que gatos não entrassem na zona de chamas. Matar gatos, mesmo acidentalmente, era crime punido com a pena de morte. Quanto um gato morria, a família guardava luto, e os gatos eram mumificados como os humanos. No sítio arqueológico de Beni Hassan, oitenta mil múmias de gato foram descobertas. Mesmo gatos do povo eram mumificados, mas tratamento especialmente luxuoso era dispensado aos gatos dos ricos, cujas múmias eram enterradas com potes de leite e até ratos mumificados.

O centro do culto era a cidade sagrada de Bubastis. Heródoto escreveu que o santuário de Bast, embora não fosse o maior ou mais opulento do Egito, era o que dava mais prazer aos olhos. Milhares de peregrinos o visitavam a cada ano, e, segundo o mesmo Heródoto, homegeavam a deusa com grandes festas e celebrações. O templo era habitado por enorme população de gatos, mantidos pelas doações dos peregrinos; mas tantos eram, que periodicamente uma parte era sacrificada, para evitar a superpopulação, e suas múmias vendidas como relíquias aos mesmos peregrinos. Tal esquema seria muito invejado pelos sacerdotes de Anúbis, tidos como precursores da Confraria de Csífodas.

Despertou também a irritação de outros povos e religiões. O profeta Ezequiel colocou estas palavras na boca do Senhor: 16. Meterei fogo ao Egito. Sin se retorcerá no sofrimento. No será estraçalhada e Nof será assaltada em pleno dia. 17. Os jovens de On e de Bubasta tombarão sob a espada e sua população será deportada. (Ezequiel, 30) Segundo Luz, estes versículos mostram como os formadores de opinião de Israel sabiam da importância estratégica das precursoras da Falange.

A queda veio, finalmente, quando Cambises atacou o Egito. Os soldados egípcios relutavam em enfrentar os persas, cujos escudos tinham a imagem de um gato. Segundo Luz, estratagema inspirado pelos Inimigos, que nunca as perdoaram, e nunca deixaram de tentar trazê-las de volta ao Lado Escuro, como também tentavam com os Asmodeus.

Apesar disso, os gatos continuam sendo tidos em alta conta, no Egito de hoje e no mundo islâmico em geral, contrastando com a baixa consideração que a cultura islâmica tem pelos cães, tidos como animais impuros. Conta-se que Maomé tinha um gato predileto, chamado Muezza. Certa vez, o Profeta ia vestir uma túnica para fazer orações, quando viu que Muezza estava dormindo sobre uma manga da túnica. Preferiu cortar a manga da túnica, do que acordar o gato. Quando o Profeta retornou das orações, Muezza acordou e fez uma reverência para ele.

Comentei que essa história poderia ter influenciado a decisão de Khadafi de recrutar na Falange sua guarda de amazonas, pois ele é um muçulmano devoto, e, além disso, identificar-se com um episódio da vida do Profeta lhe seria politicamente conveniente. Luz respondeu que, de fato, isso tinha sido lembrado pelo tal sábio imã conselheiro, que, por acaso, também era auxiliar. Fiquei então sabendo que, tal como alguns sacerdotes da Grande Fênix, os auxiliares também eram, às vezes, clérigos de outras religiões.

Perguntei se o status da mulher no mundo islâmico afetava em alguma coisa as operações da Falange. Luz respondeu:

— Não somos militantes feministas, somos uma corporação guerreira. E, de qualquer maneira, o mundo islâmico é vasto, e os costumes variados. As guardas de Khadafi, por exemplo, se vestem como mulheres militares de qualquer outro país. Mas, em lugares que há códigos de vestuário para mulheres, como o uso de véus, tomamos partido disso, pois nos ajudam em operações encobertas.

Lembrei-me de um passeio no Marrocos, em que o guia alertava os turistas para tomarem cuidado com as garotas que escondiam os rostos com véus, pois muitas delas eram ladras. Obviamente, ter apenas os olhos visíveis é uma grande vantagem para essa profissão, e certamente o seria mais ainda para as operadoras, especializadas em ações encobertas.

Luz também acrescentou que outro fator contribui para o respeito à Falange no mundo muçulmano: a crença de que elas são dotadas de poderes mágicos. A crença no mau olhado, por exemplo, existe em todo o mundo, mas é particularmente forte no mundo islâmico, onde são muito comuns os amuletos tidos como protetores contra ele: a mão espalmada azul, citada com freqüência no Quarteto de Alexandria, ou o olho azul chamado de nazar na Turquia. Comentei:

— Eu achava que essa ligação do olho azul com o mau olhado lembrava o tempo dos Cruzados, até hoje lembrados no mundo islâmico pelas atrocidades, e muitos dos quais tinham os olhos azuis.

Luz respondeu:

— Isso reforçou a lenda, mas, na realidade, ela parece ter começado no Egito antigo, onde o Olho de Hórus era o mais poderoso dos amuletos, presente em tantos monumentos. Criou-se a lenda de que nós, as guardiãs de Bast, éramos capazes de fazer mal a pessoas e animais, ou até de matá-los com um simples olhar. Sempre incentivamos essas lendas, pois elas induzem mais temor e respeito. Mas o fato é que desde aquela época dominamos a arte dos venenos que podem matar de forma fulminante ou lenta, conforme se queira, e sem deixar vestígios. E a arte da infiltração sorrateira, que nos permite colocar esses venenos nos lugares onde sejam mais úteis.

Não pude deixar de ficar incomodado em ver alguém falar de uso de venenos com tanta naturalidade, principalmente uma bela mulher. Ela deve ter percebido, pois acrescentou:

— Guerra é guerra. O que é pior, veneno ou bombas? Além do mais, nem sempre é preciso fazer realmente alguma coisa concreta. A credulidade humana é poderosa, e, muitas vezes, basta que o alvo acredite ter sido vítima de mau olhado, para que a profecia se realize. E nem sempre o veneno passa despercebido. Por isso, surgiu também a lenda de que somos capazes de nos transformar em gatos, para levar o veneno até as vítimas, ou, em alguns casos, até chupar o sangue delas. Como você vê, até com as lendas de vampiros nossos mitos se misturaram.

Acrescentou que, em outras versões, quem se transformava em gato era o Diabo, a quem as feiticeiras eram acusadas de adorar. Geralmente tratava-se de um gato preto, o que deu origem à fama de portadores do azar desses animais. Mas, para entender melhor o que a Falange tinha a ver com a associação entre feitiçaria e satanismo, freqüentemente ressurgida na história da Cristandade, era preciso falar da história européia da corporação. Continuou:

 — Do Egito, espalhamo-nos para os mundos grego e romano. Eram povos que tinham antigas tradições de feitiçaria, e, além disso, gostavam de gatos. Com toda a civilização que se atribui aos gregos e romanos, eram culturas onde as mulheres sofriam mais restrições do que no Egito. Por isso, nossas irmãs muitas vezes tinham que adotar a profissão de cortesãs, a única categoria de mulheres que podia chegar a ter mobilidade, riqueza e poder no mundo greco-romano. É claro que as operadoras efetivas sempre eram profissionais de alto nível, que cuidavam de políticos e generais; afinal, eram esses os alvos estrategicamente interessantes. Vez por outra, podia ser útil seduzir um marinheiro ou soldado raso para conseguir informação ou infiltração, mas isso ficava por conta das estagiárias, como no caso de El Ricardón.

Do mundo greco-romano, a Falange se espalhou para os territórios adjacentes. E nesses novos países encontraram clãs similarmente dedicados aos felinos, pois eles, como os pássaros e serpentes, servem de totens para povos de todo o planeta. Se isso significa que esses totens surgiram durante nossa origem comum, é assunto para os antropólogos, pois as lendas da corporação nada diziam, alegou Luz.

Por exemplo, os celtas tinham a lenda do Cat Sith, um gato fantasmagórico que na realidade seria uma bruxa ou uma fada. E o gato era o animal sagrado de Freya, deusa germânica do amor e da beleza, que se dizia ter uma carruagem puxada por quatro gatos alados do tamanho de cavalos; por isso, era costume dar-se gatinhos como presentes às noivas. E o poder dos gatos seria atestado pela crença de que Fenrir, o monstruoso lobo que devorará Wotan no Ragnarök, o Fim do Mundo, é mantido preso apenas pelo Gleipnir, uma tira fina feita pelos anões, usando como material o som de um gato caminhando.

  Sobre a força das feiticeiras guerreiras nas sociedades célticas e germânicas, narra Julio César, no De Bello Gallico, que o líder bárbaro Ariovisto deixou de comparecer a uma batalha a conselho de suas feiticeiras. Naturalmente, explicava-se como conselho de profetisa o que era apenas boa inteligência militar.

As feiticeiras nórdicas, conhecidas como Völva, desligavam-se da família, e percorriam os territórios, acompanhas de um séqüito de aprendizes, coletando informação, aconselhando os chefes guerreiros, e sendo muito bem remuneradas por isso. A Saga de Eric, o Vermelho conta como os vikings assentados na atual Groenlândia chamaram uma Völva poderosa para resolver o problema da fome que assolava a colônia. A feiticeira comeu um prato especial feito de corações de muitos tipos de animais, e, juntamente com suas aprendizes, passou um dia executando danças mágicas. Dizem que isso resolveu o problema. Isso, ou o fato de que ela poderia ter, em suas viagens, coletando informação adequada sobre as possíveis fontes de alimentos.

Mas é claro que, se alguns líderes guerreiros se beneficiavam dos serviços de inteligência das feiticeiras, outro tanto era prejudicado. Além disso, as riquezas que elas acumulavam despertavam cobiça de alguns. Esses fatores se combinaram para que as primeiras grandes perseguições às feiticeiras acontecessem ainda na Europa pagã.

Quando o Cristianismo se espalhou pela Europa, também parecia que as perspectivas das feiticeiras não eram nada boas. Os missionários trataram de declarar Wotan, Freya, Belenos, Tutatis e companhia como sendo demônios associados a Satã, e as feiticeiras não eram distinguidas de druidas e outros tipos de sacerdotes. Na mesma época, a Ordem da Grande Fênix teve que se tornar underground, como tantos outros cultos pagãos.

Um problema para os pregadores da nova religião é que, ao mesmo tempo em que associavam as antigas crenças com o Diabo, tinham que denunciar as práticas dessas crenças como embustes e superstições. Santo Agostinho tentou resolver o dilema, explicando algumas mágicas eram reais e outras ilusórias, mas ambos os tipos eram coisa do Tinhoso.

E foi aí que as astutas feiticeiras acharam uma brecha na teologia cristã. Passaram a trabalhar para convencer os governantes cristãos de que, uma vez que as práticas mágicas eram ilusórias, suas praticantes eram inofensivas. E, de fato, nos primeiros séculos da Idade Média, essa acabou por se tornar a posição oficial da Igreja. Carlos Magno chegou a decretar a pena de morte para quem acreditasse na existência real da feitiçaria.

Assim, as feiticeiras passaram cada vez mais a trabalhar como curandeiras e praticantes da magia popular, resolvendo no varejo problemas de falta de saúde, dinheiro ou amor. Os generais deixaram de recorrer aos serviços delas, e a tradição de inteligência militar passou a ser guardada apenas nas narrativas secretas das praticantes mais ilustres. Entretanto, algumas grandes operadoras continuaram a freqüentar os círculos do poder, e a deixar suas marcas na História.

Na opinião de Luz, a mais ilustre das grandes operadoras da Idade Média teria sido Eleanor de Aquitânia. Lembrou que ela participou de uma Cruzada ao lado do primeiro marido, Luís VII da França; as audazes ações das operadoras que formavam seu séqüito deram origem aos rumores de que Eleanor comandava um batalhão de amazonas. Luz prometeu para alguma ocasião futura mais comentários sobre as peripécias de Eleanor, inclusive de suas relações com Luís VII e com o segundo marido, Henrique II da Inglaterra. Ambos os casamentos seguiram o que se chama de modelo bíblico: começaram com um homem e uma mulher no Paraíso, e terminaram com o Apocalipse.

Eleanor demorou a produzir um herdeiro masculino. O primeiro morreu na infância, e o segundo se revoltou contra o pai. Ter tomado o partido do filho custou a Eleanor dezesseis anos de prisão domiciliar. Quando notou que Ricardo, o herdeiro seguinte, tinha certas tendências, tratou de apresentá-lo aos Enviados de Asmodeu, os descendentes dos sacerdotes de Set, velhos aliados da Falange. Com isso, em vez de ser mais um rei efeminado qualquer, ele se tornou Ricardo Coração de Leão, até hoje o herói das lendas de Robin Hood.

Mas guerreiros como Eleanor e Ricardo, como a Falange e os Asmodeus, são o que são por causa da parcela deles que é nutrida pelo Lado Escuro. Essa parcela inevitavelmente se manifesta, volta e meia. Até hoje, no mundo muçulmano, Ricardo Coração de Leão é uma espécie de bicho papão, e as mães ameaçam as crianças desobedientes: o rei Ricardo vai te pegar. Eleanor e família se equilibraram a vida toda entre o Bem e o Mal: já beirando os oitenta anos, idade absurdamente avançada para a época, Eleanor ainda fazia longas viagens e articulações políticas e militares, para proteger João-sem-Terra, o filho mais novo e último sobrevivente da dinastia. João até hoje tem péssima fama e, tal como o Cardeal Richelieu, passou pela suprema humilhação de virar vilão de desenho animado. Mas, como disse Churchill, “a nação britânica e o mundo de língua inglesa devem mais aos vícios de João do que aos trabalhos de soberanos virtuosos”.

     

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