Sul do Brasil, 1950

Naquele dia, quase todo o Brasil ainda estava de luto, por causa da perda da Copa do Mundo, em pleno Maracanã. Menos naquela fazenda do Sul, onde braseiros assavam boas carnes, como costela, matambre, e principalmente gordas picanhas (mas chuletas não). O chimarrão passava de boca em boca, e rolavam muita cerveja e vinho de garrafão. Comemorava-se a entronização do primeiro Vida Longa brasileiro.

O jovem fora escolhido pessoalmente pelo Chefe, o Camarada Indigestão, dentre vários candidatos fortes. Fora devidamente treinado em seus ofícios e artes pelo antecessor, o último Vida Longa africano, que agora se dedicaria a fazer filhos nas irmãs e primas do sucessor, para misturar as duas poderosas linhagens e aperfeiçoar-lhes a principal característica. Pensava o Camarada: um programa genético bem ao gosto do Führer, embora, é verdade, não envolva arianos. Mas é pela causa, e isto são os trópicos.

O Camarada Indigestão recebia cumprimentos pela passagem de bastão dos Vidas Longas, e pela recente promoção a coronel. A maioria dos presentes pertencia o NOS, ou seja, o Núcleo dos Observadores de Sabonete, assim chamados pela destreza na apanha de sabonetes caídos. Alguns diziam que o N era de Nazistas ou Nacional-socialistas, mas, com a guerra terminada há tão pouco tempo, não era prudente associar-se abertamente aos derrotados. Muito menos usar o original alemão, de sigla NÖS, com trema no o: nicht öffnen Schwulheit, algo como não saia do armário.

Seja como for, os Camaradas membros do NOS usavam as Três Facas cerimoniais, ganhas em sucessivas competições nos chuveiros das organizações a que pertenciam. Apenas os mais hábeis conseguiam chegar ao escalão superior e receber a Quarta Faca.

Foi a Quarta Faca que o Chefe bateu no copo, para chamar a atenção de todos. Começou seu discurso, do alto de uma espécie de palco:

— Prezados Camaradas, infelizmente a Pátria Amada foi novamente derrotada, desta vez no campo de batalha do Maracanã, em guerra que a todos nós já parecia ganha. Ao longo deste quinze anos em que temos contado com os préstimos do Vida Longa...

Os presentes ergueram os copos e cuias, e gritaram um másculo Hip! Hip! Hurra!  O Chefe sorriu, e, depois de breve pausa de efeito, prosseguiu:

— ...cedido a nós pelos amigos alemães, graças aos préstimos de nossos Patrocinadores. E a força do Vida nos tem dado alento. Seja nas vitórias, como quando ajudamos a esmagar os comunistas, pouco depois da chegada dele, ou quando ajudamos Getúlio a implantar o Estado Novo e a Ditadura sonhada por nós. Seja nos reveses, como quando os camaradas integralistas foram derrotados, em 1938; quando Getúlio se vendeu aos americanos e caçou os agentes do Eixo; ou quando ele, por sua vez, deixou que a Ditadura fosse derrubada. Pois bem. Hoje, assume um novo Vida Longa, nascido sob o Cruzeiro do Sul. Espero que todos logo tenham oportunidade de comprovar que nosso produto nacional é tão bom quanto o seu similar importado!

Outro delírio da platéia, mais Hurras, um coro pedindo Vida Longa!  Vida Longa! Vida Longa! Mais uma pausa retórica, e o Camarada Indigestão continuou:

— Tudo no devido tempo, meus Camaradas. É exatamente o que ensinam os Patrocinadores, e é precisamente o tema da mensagem deles, que venho transmitir-lhes.

Uma última pausa, para aguçar a expectativa.

— Dizem eles o seguinte, e vocês sabem como eles acertam sempre; o que, aliás, não admira, pois são eles que fazem as coisas acontecerem. Nas eleições deste ano, Getúlio voltará. Mas, desta vez, de turma nova, dos desprezíveis democratas aos comunistas, respeitáveis mas inimigos. O Brasil entrará em novo período turbulento, e os militares serão cada vez mais chamados a intervir. Até que, não demorará tanto, a Ditadura voltará! E, com ela, NOS!

Durante longos minutos, os gritos de Viva a Ditadura! se alternaram com os de Vida Longa!. Mas não bastava ao Chefe:

— Perdemos a Copa do futebol, mas hoje ganhamos um título mundial, que há milênios pertencia à África! Brasil!!!

O sistema de som ecoou: ...sil! ...sil! ...sil! Os Camaradas fizeram um coro de É campeão! É campeão!,  até que o Chefe os interrompeu, com um berro meio de animador de auditório, meio de pastor carismático:

— Os Camaradas querem Vida Longa? Pois aqui está ele, em toda a sua magnitude! Vai que é sua, Vida!

No fundo do palco, abriu-se um par de cortinas. A banda que animava a festa soou um Taram! e o novo Vida apareceu, vestido com uma espécie de roupão de seda, dizendo com um largo sorriso:

— Bom dia, meus amigos!  Vida Longa é mais do que um nome, é um jeito de ser! Vida Longa é força! Vida Longa é entusiasmo! Vida Longa é alegria! Agora em sabor chocolate!

O Camarada Indigestão berrou, quase histérico:

— Mostre a eles, Vida! Agora!

Vida abriu o roupão e, por um momento, houve um Ohh! abafado, de decepção. Era grande, mas alguns já tinham visto maiores. Podia-se ler a tatuagem: Vida!

O sorriso do Vida se tornou mais malicioso, e ele olhou para a banda. Lá, um Camarada com certificado de Trinador começou a trinar a música Coronel Bogey; aquela marcha que, alguns anos depois, ficaria famosa com o filme A Ponte do Rio Kwai. Vida Longa começou a marchar, sem sair do lugar. Quando a banda entrou depois do solo de trinado, passou a usar o prodigioso método de concentração que os Vidas Longas anteriores tinham aprendido com o Pensador, para hastear, não a bandeira, mas o próprio mastro.

Os Camaradas Portadores das Três Facas formaram uma linha, lado a lado, dando-se os braços, e também passaram a marchar no mesmo lugar; primeiro em passo de ganso e depois, quando os metais da banda entraram em fortissimo, lançando as pernas para cima, como no cancã. Nos acordes finais, podia-se ler no estandarte de Vida Longa, em letras garrafais: Viva a nossa turma de adoradores do glorioso Nazismo, eterna e heroicamente unida!

Foguetes e rojões espocaram. Caiu uma chuva de purpurina verde e amarela. Sete araras treinadas desceram em formação, pousando na haste de Vida Longa. E, dessa vez, não ficou pezinho algum de fora.

     

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